Por Maria Rita Guimarães

Um pouco, sim! Passamos do instante de ver e já caminhamos, cuidadosamente, ao momento de compreender suas potencialidades e efeitos. Mas, há muito que percorrer. Também, cabe a resposta – por que não? – de que há muito a dizer em razão da bússola que orienta o Observatório: o princípio da psicanálise lacaniana, agora tão bem formulado por Ève-Rose Miller: “Elevar o humano à dignidade do sujeito. Poderia ser uma expressão de nossa ética”[1]: sujeito do inconsciente.

Dignidade, também, está enraizada na ordem jurídica, com a qual interessa ao Observatório estabelecer uma interlocução, pois seu objeto de atenção está no tema da criança judicializada; particularizando mais, no âmbito da Adoção. Aqui, o objeto em foco – criança – revela a dissonância em seu estatuto “de dignidade” entre os dois campos epistemológicos mesmo se considerarmos que, efetivamente, “criança” está na intercessão entre vários saberes, ou seja, entre os variados discursos sociais. Esse fato levou os psicanalistas a levantarem a pergunta ainda no início dos anos 1990.: “O que é uma criança?”[2] Recentemente, J.-A. Miller a retoma, acrescentando: “Não é tarde demais para colocar a questão”.[3]

Sim, a criança é sujeito do direito, mas a ele assujeitado, assim como aos demais discursos. Um sujeito consensuado, digamos.

No Brasil, uma lei fundamental, conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente, é o marco regulatório dos direitos humanos de crianças e adolescentes desde 1990. A partir dela, uma rede de proteção à criança, que se pretende total, foi instituída. Apesar de sua importância, fracassa em lhe possibilitar o que é “um desejo fundamental no ser falante; o desejo de inserção”.[4] Pobreza e precariedade – mesmo que as aceitemos como sinônimas – são multidimensionais e o impacto que produzem na infância mantém as crianças nas franjas da sociedade na condição de “dejetos”, de “supranumerários”. Nesse segmento, encontram-se as crianças destinadas à adoção. O Observatório Infâncias tem trabalhado no sentido de tratar o determinado pela Lei da Adoção à dignidade de uma prática – levada por seus participantes transferidos com a psicanálise lacaniana que trabalham no e com o Judiciário. O significante-mestre da lei da Adoção – “preparação” – referido ao trabalho dos psicólogos/assistentes sociais em fazer a travessia da criança institucionalizada a uma nova família – tem merecido e exigido a necessária subversão trazida pelo ensinamento da psicanálise. E, através dessa prática que pede respeito à criança, cava-se porosidade entre os discursos. Assim, já se produziu efeito local, mas extenso, de cuidadosa torção num normativo. Os chamados normativos não são publicados como as leis o são pelos meios oficiais devido ao seu caráter de regulamentação de procedimentos adstritos ao âmbito estadual, mantendo, portanto, o caráter de “regulamentação interna”. Isso preserva sua fronteira de forma quase sigilosa. Por meio deles, as práticas dos operadores do direito e equipes técnicas se realizam em suas ações na área da infância e juventude. O que a participante do Infâncias pôde inserir de mudança em determinado normativo – seu lugar de profissional lhe dava competência de sugestão à hierarquia decisória – foi promover que a “preparação” dos postulantes a pais adotantes passasse do caráter simplesmente informativo “do que é uma adoção” – na pandemia através de cursos on-line – a encontros presenciais que permitiriam, principalmente, a escuta da causa em jogo na demanda de tornar-se mãe, tornar-se pai. Longe do ideal

do discurso jurídico que aspira a que para cada criança haja uma família, e vice-versa – seja do que jeito que for – Infâncias visa a “uma via inédita, mais precária e, no entanto, mais segura: a salvação pelos dejetos”[5] e a elevar o dejeto à dignidade de sujeito.


NOTAS

  1. MILLER, Rose-Ève. Apresentação na Abertura do Enapol 2019. São Paulo, 2019.
  2. MILLER, Judith (Org.). A criança no discurso analítico. O Campo Freudiano no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.
  3. MILLER, Jacques-Alain. A criança e o saber. CIEN-Digital, p. 9, jan. 2012. Disponível em: <http://ciendigital.com.br>. Acessa em: 5 abr. 2021.
  4. MILLER, Jacques-Alain. Intervenciones en Barcelona, sobre el deseo de inserción y otros temas. Disponível em: <http://www.eol.org.ar/template.asp?Sec=publicaciones&SubSec=on_line&File=on_line/jam/entrevistas_actualidad/especial.html>. Acesso em: 5 abr. 2021.
  5. MILLER, Jacques-Alain. A salvação pelos dejetos. Revista Correio, Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, São Paulo, n. 67, p. 19-26, dez. 2010.