Editorial
Projeto Digaí-Maré

Nesta edição de Territórios Lacanianos vamos apresentar a vocês o Digaí-Maré: um projeto de atendimento psicanalítico em grupo que acontece há oito anos, em uma grande favela da cidade do Rio de Janeiro. Este trabalho é sustentado por vários colegas da Seção Rio e apesar de se desenvolver em um formato nada usual – sem os recursos dos quais nos servimos nos consultórios particulares, como o pagamento, a privacidade e o tempo lógico – busca orientar-se pelo ensino de Lacan de forma a experimentar a psicanálise sem se desviar dos seus princípios.

No texto assinado por Rodrigo Lyra, um dos coordenadores do projeto, vocês poderão acompanhar um resumo da história do Digaí, ter uma ideia muito precisa das questões essenciais que emergem do dispositivo grupal e ainda verificar de que maneira os seus participantes trabalham para elaborar e articular teórica e clinicamente as consequências extraídas desta rica experiência.

O vídeo sobre o projeto, com suas imagens e depoimentos consegue transmitir de maneira muito viva o que acontece por lá. Vocês verão a casa aonde funciona a clínica do Digaí no bairro de Nova Holanda, na favela da Maré, as ruas, as casas, seus moradores, e os participantes do Projeto. Nos breves depoimentos poderão perceber o entusiasmo e o cuidado com que cada um dos que estão engajados neste projeto tratam dos temas que emergem desta clínica tão peculiar na sua íntima relação com a psicanálise de orientação lacaniana.

Andréa Reis Santos e Glória Maron

Digaí-Maré *
«Se nessa corrida para a verdade é apenas sozinho, não sendo todos, que se atinge ao verdadeiro, ninguém o atinge, no entanto, a não ser através dos outros». Jacques Lacan [1]

O Digaí-Maré surgiu ano de 2005, quando dois membros da Escola Brasileira de Psicanálise, Ana Lucia Lutterbach e Marcus André Vieira, aproveitaram a interlocução com uma importante ONG atuante, na Maré, na área da educação para lá experimentar os usos do discurso analítico.

Juntaram-se a eles diversos outros, tanto membros da Escola quanto colegas em diferentes momentos de sua formação. O corpo de supervisores clínicos é formado hoje pelos membros Cristina Duba, Glória Maron, Paula Borsoi e Ondina Machado. Coordenam atualmente o Corpo Clínico Andréa Reis Santos (EBP), Vânia Gomes e Rodrigo Lyra. Muitos outros membros da EBP contribuíram e seguem contribuindo para esclarecer essa experiência.

Compõem atualmente o corpo clínico, Bruna Guaraná, Ana Beatriz Zimmerman, Gricel Osório, Sandra Landim, Anna Luisa Almeida, Clarisse Arantes, Adriana Faria e Simone Bianchi, além de estagiários da PUC-Rio.

De volta a 2005. À demanda de atendimento psicanalítico para os moradores da Maré recebidos pela ONG (especialmente as crianças), respondemos com um dispositivo inusual em nosso campo: o atendimento em grupo.

Era uma aposta que, como sempre, só tem seus efeitos recolhidos a posteriori, mas havia, decerto, boas razões para sustentá-la, visto que, no ambiente social da Maré, o senso de comunidade mostrava muita força.

Antes de seguir, uma palavra sobre esse lugar tão especial. A Maré é, na verdade, mais que uma favela; é um bairro, composto por um complexo de 16 favelas, de fronteiras invisíveis, circundadas pelas principais vias de acesso ao centro do Rio de Janeiro. Lá moram ao menos 130 mil pessoas, que convivem com as principais facções de tráfico de drogas e um Batalhão de polícia, além de muitas escolas e alguns poucos aparatos de saúde pública. Qualquer carioca já passou incontáveis vezes por seus contornos, mas a proximidade entre a janela do carro e seus muitos barracos não reduz, para quem está do lado de cá, a sensação de ver  um território totalmente estrangeiro. Ir à Maré foi, antes mesmo que lá a psicanálise nos ensinasse algo, uma transformadora vivência de cidadãos.

Desde o início, uma pergunta nos desafiou: a pertinência social do trabalho em grupo não constituiria, por outro lado, um impasse para a incidência da psicanálise?

Já no momento de criação do Digaí, vivíamos um importante movimento do Campo Freudiano, onde diversas propostas de psicanálise aplicada estavam sendo levadas a cabo. Estávamos esclarecidos, portanto, sobre os limites dessa empreitada e certos de que a experiência não se propunha a sustentar a longa travessia de uma análise.

Ainda assim, a pergunta insistia: o grupo faz impasse à emergência da singularidade?

Mesmo admitindo que a presença de vários corpos em um mesmo dispositivo é um dado relevante, nos servimos de Freud e Lacan para recolocar a questão. Alguns pontos de partida:

  • Não é propriamente o grupo que faz obstáculo à singularidade, mas sim as identificações e elas já estão presentes na constituição de um único indivíduo. No limite, podemos propor, com cautela, que um indivíduo já é grupal.

Uma consequência dessa percepção foi seguirmos Lacan em seu esforço de dar menos ênfase ao dispositivo e mais ao discurso analítico.

  • O contraponto entre identificações e singularidade não é absoluto. O fato de a segunda representar uma ruptura com as primeiras não quer dizer que as identificações devam ser diretamente combatidas no trabalho analítico.

Essa observação se torna especialmente relevante quando nos deparamos com mal-estares difusos, sofrimentos que não tomam consistência de um sintoma, além do problema clínico e social que pode ser resumido no tema da desinserção. A questão passa a ser a do bom uso de identificação.

  • O fato de alguns indivíduos reunirem-se provisoriamente em um dispositivo grupal não significa que a fala circulará como puro esforço identificatório.

Esse ponto nos remete ao trabalho lacaniano de conceber a Escola e seu dispositivo de base, o cartel, como formas de estabelecer uma coletividade permeável às produções singulares. O cartel foi, assim, uma referência primordial para situarmos, inclusive, o lugar daquele que, atravessado pela psicanálise, busca no pequeno grupo fazer valer a função do mais-um. Arriscamos, assim, chamar de «mais-um» o colega do Digaí que atende esses pequenos grupos.

É claro que, a essas poucas ideias, muitas outras se somaram ao longo do esforço contínuo de esclarecer a experiência. Na prática, como é inerente à psicanálise, os fenômenos clínicos são múltiplos e variados. Há grupos que rapidamente empreendem um efeito de cola imaginária, um «somos todos iguais», e a função do «mais-um» se declina mais fortemente na direção da localização de pontos de ruptura.

Em outros, o esforço identificatório dos sujeitos é menor e os diálogos servem muitas vezes para delimitar e extrair um sintoma de um sujeito que havia chegado com uma queixa muita dispersa.

Paralelamente a isso, nos surpreendemos desde o início com verdadeiros efeitos de interpretação que não saíam «da boca» do mais-um. Podiam ser falas de um sujeito a outro ou mesmo – e principalmente – modos singulares de alguém se apropriar e se deixar tocar pela fala de um outro sobre seus próprio enredos. Mais uma lição permanente da clínica psicanalítica se fazia valer de uma forma especial naquele pequeno grupo: a interpretação não é necessariamente do analista, mas sim do inconsciente.

Valendo-nos de ideias como essa, soubemos aos poucos temperar nossa própria tendência de «levar para o atendimento individual» cada um que parecia mais atento ao desejo de saber sobre seu sintoma.

Ao longo desses anos, vimos muitos grupos onde nada de relevante se deu e muitos outros onde os efeitos do atendimento em grupo foram tão impactantes a ponto de calar momentaneamente nossa eterna questão: por que em grupo?

Aprendemos com o tempo a esvaziar os porquês e a extrair as consequências de como os moradores da Maré se serviam da psicanálise. Certamente não estamos ainda «curados», como se vê acima, de buscar, às vezes, justificar nosso «pecado original» de atender em grupo, mas hoje, sem dúvida, fala bem mais alto, para cada um, a voz da incrível chance de experimentar, de localizar, de nos surpreender com os efeitos do discurso analítico quando já não contamos com as mais básicas ferramentas do dispositivo habitual: a privacidade, o pagamento e a longa duração.

O Digaí recebe crianças, adolescentes e adultos. Entre crianças e adolescentes, buscamos formar grupos a partir de idades não muito diferentes, mas não há regras rígidas. Entre os adultos, os grupos são formados após alguns encontros de recepção, mas tampouco há parâmetros muito marcados; vale mais o tato do «mais-um» que os recebe.

A duração dos pequenos grupos tampouco é fixa, mas já aprendemos que os efeitos de aparição e nomeação de traços singulares do gozo de cada um tendem a dissolver o grupo. Respeitamos esses movimentos, pois não haveria como sustentar grupos muito duradouros sem reforçar as identificações, verticais e horizontais.

Embora a parceria com a ONG que nos levou à Maré (Redes de Desenvolvimento da Maré) continue sólida e primordial, o Digaí está hoje suficientemente inserido na comunidade para receber demandas de diversas outros origens, do terceiro setor, dos órgãos públicos e, principalmente, as demandas espontâneas.

Desde 2005, muitos de nós levaram fragmentos de sua experiência do Digaí, sob a forma de trabalhos, às Jornadas e Encontros da EBP e da AMP, e também à cidade.

Em 2008, lançamos um livro que condensava o que havia sido a experiência até então: «Psicanálise na favela: O Digaí Maré e a clínica dos grupos». Duas edições, esgotadíssimas!

Prometemos o próximo livro para breve!

Rodrigo Lyra Carvalho

NOTAS

* «O vídeo e o texto dessa matéria são extratos da matéria publicada no boletim Diretoria na Rede de Outubro de 2013 e correspondem à realidade do projeto na época. A configuração e situação atual do projeto não é retratada.»

  1. Lacan, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: JZE, 1998, p.212.

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TEXTOS DE REFERÊNCIA

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  • MILLER, Jacques-Alain. «A relação de objeto». In: La lettre mensuelle #128, abril de 1994. Traduzido pelo Rodrigo.
  • MILLER, Jacques-Alain. «Sobre o Sujeito suposto saber e o objeto a». In: Correio n°59.
  • MILLER, Jacques-Alain (direction). Situations subjectives de déprise sociale. Collection La Bibliothèque lacanienne. Paris : Navarin éditeur, diffusion Seuil, 2009.