Aquilombamentos e restos que se transmitem na cor*
Aquilombamentos y restos que se transmiten en color
Aquilombamentos and remains transmitted in color
CLEYTON ANDRADE
EBP-AMP e Universidade Federal de Alagoas
andradecsy@gmail.comr
RESUMO
O texto aborda o problema da transmissão e de sua relação com a contingência e com o intraduzível. Para isso se vale dos efeitos encontrados no Brasil após uma década de políticas de cotas que resultou em uma entrada considerável de estudantes antes excluídos dela. A entrada de negros modifica a universidade e os significantes do Outro, e não só aqueles que passam a ter acesso a ela. Esse movimento duplo mostra que tornar-se negro não é uma operação meramente identitarista, ao contrário, é o resultado de uma asserção radical ao enfrentamento de uma política da identidade. Esse texto procura mostrar que a ressignificação racial, passa por um movimento de aquilombar-se, que é coletivo e inclui o Outro. O inconsciente não tem cor. Mas dizer isso não implica que a cor seja contingente. Ao contrário, o Outro pode ser insistentemente violento tendo sua mira sempre no mesmo lugar
PALABRAS CHAVE: Racismo Negro | Transmissão | Contingência | Quilombo
RESUMEN
El texto aborda el problema de la transmisión y su relación con la contingencia y con lo intraducible. Para eso, utiliza los efectos encontrados en Brasil, después de una década de políticas de cuotas, que resultaron en una entrada considerable de estudiantes antes excluidos de la universidad. El ingreso de los negros modifica la universidad y los significantes del Otro, y no sólo a quienes acceden a ella. Este doble movimiento muestra que devenir negro no es una operación meramente identitaria, por el contrario, es el resultado de una afirmación radical para enfrentar una política identitaria. Este texto busca mostrar que la resignificación racial pasa por un movimiento de aquilombar-se, que es colectivo e incluye al Otro. El inconsciente no tiene color. Pero decir esto no implica que el color sea contingente. Por el contrario, el Otro puede ser insistentemente violento, apuntando siempre al mismo lugar.
PALABRAS CLAVE: racismo negro | Transmisión | Contingencia | Quilombo
ABSTRACT
The text addresses the problem of transmission and its relationship with contingency and with the untranslatable. For this, it uses the effects found in Brazil, after a decade of quota policies, which resulted in a considerable entry of students previously excluded from the university. The entry of blacks modifies the university and the signifiers of the Other, and not just those who gain access to it. This double movement shows that becoming black is not a merely identity-oriented operation, on the contrary, it is the result of a radical assertion to face an identity politics. This text seeks to show that racial re-signification goes through a movement of aquilombar-se, which is collective and includes the Other. The unconscious has no color. But saying this does not imply that color is contingent. On the contrary, the Other can be insistently violent, always aiming at the same place.
KEY WORDS: Black Racism | Transmission | Contingency | Quilombo
Al lector hispanohablante: Como el texto mismo lo enseña, Quilombo en portugués no tiene la acepción de lio, como en español. En Brasil ha ganado en los últimos tiempos nuevos significados. Del lugar donde se asentaban los esclavizados huyendo de los amos, hoy se designa una relación con la tierra que pone en segundo plano la propiedad para dar lugar a un modo de producción por fuera de la explotación colonial capitalista. En este sentido pasa a ser utilizado en portugués como verbo y no solamente como sustantivo.
Sobre os efeitos das políticas de ações afirmativas
A universidade pode ser um lugar onde encontraremos os jovens interessados um a um na psicanálise. Também é um lugar de encontros coletivos produtores de subjetividades, de condições de possibilidade para identificações eventualmente inéditas, bem como de possíveis efeitos sociais e políticos acerca de uma identidade provisória num espaço de luta. Sim, a universidade é também um espaço de disputa e enfrentamento político, inclusive no campo epistêmico e epistemológico.
Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em 2011, eram apenas 11% de alunos pretos e pardos matriculados nas universidades brasileiras. Com a adoção de uma política de ações afirmativas em 2013, que muitas vezes é chamada de forma reduzida de “política de cotas”, já em 2016 esse percentual subiu para 30%. A lei preconiza que 50% das vagas devem ser destinadas a candidatos negros, indígenas, estudantes de escola pública, pessoas com deficiência e com baixa renda. Portanto, é uma lei que se insere numa política ampla de acessibilidade.
A universidade, além de espaço de formação acadêmica é marcado também com contextos de luta no campo social e político com relações de força e espaços de constituição de corpos políticos. No Brasil, os movimentos estudantis antirracistas têm se constituído como lugares relevantes para uma conquista de espaço. Não raro, avessos às epistemologias europeias incluindo a própria psicanálise. Muitos desses alunos ficam em silêncio e não participam dos conteúdos de psicanálise. Felizmente não todos. Mas uma questão pode ser formulada a partir desse desinteresse, e por vezes rechaço, de jovens negros e negras pela psicanálise.
O encontro com a universidade passa, também, por impasses muitas vezes já experienciados, embora ainda necessitando de um novo tratamento pela linguagem. Outras discursividades não hierarquizadas oferecem condições de possibilidade para a introdução de novos significantes, novas vivências, bem como o exercício prático de produzir saberes sobre o racismo, a negritude, desigualdades sociais, direitos humanos.
A introdução de novos significantes, giros discursivos, e sobretudo a possibilidade de revisitar os laços sociais através de outra perspectiva, pode ter efeitos transformadores. Relançar um novo olhar para a própria história, para as relações e suas posições pode ter como resultado a apreensão de algo que, embora familiar, na história, pode vir sob o manto do desconhecimento. A descoberta de uma possibilidade antes inaudita e inarticulável pode resultar num processo de apropriação daquilo que, de tão familiar, insistia em se apresentar como infamiliar. Apesar de sabermos que uma experiência de análise é importantíssima nesse contexto, as experiências coletivas não podem ser minimizadas para essa população, por razões históricas impossíveis de serem ignoradas.
A acessibilidade de estudantes negros e negras na universidade modifica a universidade e modifica os próprios estudantes. Nessa direção, políticas de ações afirmativas viabilizam muito mais que reservas de vagas no ensino superior. Viabilizam a possibilidade ao acesso a novas e diferentes formas de vida.
A inserção de pessoas negras na universidade gerou impacto na produção do conhecimento, efeitos sobre as pesquisas que passaram incluir perspectivas racializadas. Uma abordagem combibliografia, perguntas e desenvolvimentos epistêmicos de fundamentação eurocêntrica e branca podem encontrar dificuldades de se manterem inertes ao longo do tempo.
A negritude pode desacomodar a psicanálise?
Originalmente pensada como uma corrente literária que agrupava escritores negros numa valorização da cultura negra de países africanos ou de populações afro-diaspóricas, posteriormente passou a ser usado por movimentos negros como ponto de partida para críticas de práticas colonialistas de segregação e violência. Logo se tornou uma rede de significantes usados para construir laços com uma tradição a ser inventada quando impossível de ser recuperada. Essa rede de significantes muitas vezes erguida a partir de uma letra extraída do campo da cultura e sobretudo do real do corpo, tem seus efeitos e ressonâncias quando encontra com um outro que se dispõe a ouvir essas vozes.
Algo semelhante pode se dar com a chegada de negros à psicanálise. Seja em qual lado for do divã. Ou será que os efeitos que as universidades públicas brasileiras apontam não se aplicam à psicanálise? As mudanças operadas no interior do espaço acadêmico não fizeram com que a universidade deixasse de ser universidade, tal como creio que a presença de questões étnico-raciais na psicanálise não a transforme em sociologia, ou lhe retire o que faz dela mesma uma psicanálise lacaniana. O debate com a linguística, com a matemática, com a filosofia, não fez com que a psicanálise se tornasse uma delas.
A chegada de jovens negros à psicanálise, seja nos consultórios, seja na condição de analistas, pode produzir resultados de formulações de questões e problemas pouco usuais. Isso pode gerar um mal-estar que não será resolvido com afirmações peremptórias de que o inconscientenãotemcor, ouosujeitonãotemcor. Seoindivíduonãotemraçacommarcadores biológicos, sendo raças uma questão de discurso, isso deveria interessar a psicanálise. Se isso não se deu após séculos de escravização negra nas Américas, ao menos após a experiência europeia dos campos de extermínio de judeus, sabemos que muito trabalho se deu. Temos décadas de reflexões sobre a incidência da solução final perpetrada pelos nazistas, sobre a segregação e sobre o antissemitismo no interior do debate psicanalítico. Qual o caminho que temos a respeito dos trezentos e oitenta e oito anos de escravização no Brasil, por exemplo? Por que uma questão é acolhida entre nós psicanalistas e outra não? Por que ao debater a shoah, o antissemitismo, a violência dos campos de extermínio estamos falando de psicanálise e quando discutimos os efeitos de quase quatrocentos anos de escravização sobre corpos hoje, soa como “não psicanálise”? Só não parece justo exigir o nível e o volume de mais de meio século de produção que se depurou ao longo desse período, com perguntas ainda neófitas, sobretudo ainda sem respostas refinadas.
A presença da negritude na universidade, que se constitui, muitas vezes, em decorrência da entrada na própria universidade, pode ter, e geralmente tem, um efeito traumático sobre esta. Não que isso seja um problema a ser evitado. Ao contrário, é muitas vezes a oportunidade de colocar em movimento e tornar dinâmico, alguns segmentos que podem correr o risco de funcionarem como um automaton acadêmico. A presença de cores de corpos universitários circulando pelo campus, tecendo narrativas, fazendo parte da política estudantil como formas de presença para a além da sala de aula, produz reconfigurações ou ao menos desacomodação de discursividades estáticas, uma vez que não só o saber com sua referência central é interrogado, como a própria universidade e, sobretudo, a branquitude. Principalmente em decorrência de uma identidade estrutural da universidade como sendo historicamente um espaço branco, não só criado, mas colonizado pela branquitude. Foi preciso que a negritude se constituísse no interior da universidade, para que a própria universidade reconhecesse sua branquitude.
Aquilombar-se e quilombismo
O argumento igualitarista, de que somos todos iguais, usado como fundamento para a meritocracia no acesso às universidades públicas, incorre tanto na recusa de uma política diferencialista, quanto na inobservância do caráter essencial de politização da cor e do pertencimento racial. A racialização das identidades não é uma página amarelada da nova edição revisada da teoria científica das raças. É um dos saldos inequívocos do que a civilização pode fazer com processos históricos como a escravização e a Shoah. Tais acontecimentos traumáticos tornam indigesta a percepção de que a dimensão histórica e discursiva das raças condena corpos e vidas, justamente por efeito de discursos racistas. Afirmar a relevância de uma politização da cor é operar de modo antirracista.
Dizer que não existe racismo no Brasil, não é um enunciado meramente moral de intenções igualitárias. É o sintoma do próprio racismo brasileiro. Negá-lo é afirmar com sorriso, com polidez e cordialidade o bem, para fazer o pior.
O ingresso na universidade pode de fato produzir um embranquecimento, sobretudo por ser um espaço não só colonizado, mas também colonizador. Contudo, como afirma Rodrigo E. Jesus (2021), os espaços universitários “também se revelam como espaços de ressignificação da identidade racial e engajamento político, principalmente, quando esses estudantes se encontraram coletivamente” (:28). Tais encontros se dão tanto nos movimentos estudantis, nos coletivos, como também em núcleos de pesquisa, ensino e extensão (ibid). A ressignificação racial, e no caso que destacamos aqui, mais especificamente entre estudantes negros e negras, passa por um movimento de aquilombar-se. Ou seja, o processo de tornar- se negro e negra, não é um percurso somente individual, mas, também, e, essencialmente, coletivo. Em outras palavras, inclui o Outro.
Quilombo não é uma mera categoria social para designar comunidades formadas por descendentes de ex-escravizados vivendo em organizações predominantemente agrárias em espaços rurais. Ou mesmo, como no período colonial, designar comunidades formadas por ex-escravizados foragidos. Quilombo é uma palavra de um idioma africano falado, sobretudo, na região que hoje é a Angola. Kilombo é da língua kimbundu, que faz parte das línguas derivadas do grupo que convencionamos chamar de Bantu. Como se tratava de populações nômades, kilombo designava o acampamento ou local de descanso. Também indicava grupos de jovens guerreiros desenraizados. Hoje em dia quilombo “se transformou” em verbo: aquilombar, aquilombar-se. Nesse sentido, se refere a movimentos culturais e epistêmicos que convidam populações negras a criarem um lugar fora da exclusão. Portanto, aquilombar-se diz de um movimento coletivo de se fazer existir para o Outro. Aquilombar- se é, faço questão de insistir, é uma operação de transmissibilidade. É o ato de tornar possível um certo tipo de transmissão de um intraduzível.
Uma materialidade histórica de segregação e violência não produziu textos e narrativas de vitimização, destas marcas nasceu a necessidade do negro defender não só sua sobrevivência mas, sobretudo, de assegurar a sua existência de ser. “Os quilombos surgiram dessa exigência vital dos africanos escravizados, no esforço de resgatar sua liberdade e dignidade” (Nascimento, 2019: 281). Não foi um mero acidente de um hiato histórico de escravização, ele se transformou de improvisação emergencial para uma formação metódica e constante de construção de formas de vida. De “genuínos focos de resistência física e cultural” se tornou “Objetivamente, essa rede de associações, irmandades, confrarias, clubes, grêmios, terreiros, centros, tendas, afoxés, escolas de samba, gafieiras forma e são quilombos legalizados pela sociedade dominante” (Ibid). A este complexo de significações e a essa práxis afro-brasileira, Abdias Nascimento chamou de quilombismo. É uma metodologia, uma estratégia, uma tática e uma política de sobrevivência e de formas de vida.
O quilombo pode ser um lugar onde as pessoas possam viver mais livremente. No Rio de Janeiro o quilombo ‘é uma favela, é um movimento como Black Rio, ou uma nova escola de samba do subúrbio como o Quilombo de Palmares’. (…) Quatro ou cinco negros reunidos também formam um quilombo. Basta um nego estar com outro negro ou consigo mesmo (Ibid: 130).
Ao invés de combater com desdém os movimentos coletivos antirracistas ou da negritude, nós analistas temos muito a contribuir com esse debate. A experiência tem mostrado a impossibilidade de um assentimento subjetivo de ser negro desvinculado da incidência do Outro. O discurso do Outro priva de subjetividades e formas de vida possíveis, bem como outras modalidades desse discurso pode franquear acessos.
A inclusão da heteroidentificação (a presença de uma banca que irá verificar se há ou não procedência na autodeclaração feita pelo candidato) nos processos de seleção para a reserva de cotas, comporta um elemento fundamental. Por um lado, a heteroidentificação cumpre uma função regulatória diante das sucessivas fraudes que se apoiam, de má fé na autodeclaração. Por outro lado, ela está em consonância com o caráter coletivo do tornar- se negro. O pertencimento é atravessado por constantes negociações no processo de socialização, e, sendo assim, não tem como prescindir do outro e consequentemente, do Outro. Os outros participam do pertencimento racial de cada um. A heteroidentificação não sobrepõe nem substitui a autoidentificação. Muito menos a torna obsoleta.
Uma psicanálise que não precisa ser militante identitária
A psicanálise não precisa tomar uma posição antecipatória diante da questão racial. Por outro lado, pode estar advertida de que são questões que incidem não só na clínica, nos modos de gozo, e na própria forma de pensar epistemologicamente as bases de um saber. E isso já poderia ter efeitos de produção. Não querer saber nada disso sob o semblante do desdém acerca destas questões é um risco concreto. Foi fundamental para a psicanálise de orientação lacaniana se debruçar sobre o autismo há pouco mais de uma década, para marcar sua importância tanto nesta clínica quanto na disputa política em torno deste tema, recusando, por exemplo, antigas formulações como a da “mãe-geladeira”, bem como a interpretação da deficiência. A respeito das questões étnico-raciais seria de bom tom a suspensão das certezas prévias de que já se sabe tudo que se precisa saber sobre esse tema relegando-o à sociologia, por exemplo.
Não se trata de pensar uma psicanálise negra, muito menos uma psicanálise brasileira que inclua a negritude como um nacionalismo formal. Trata-se sim de interrogar categorias conceituais e instrumentos metodológicos não dogmáticos, de modo a permitir que tanto a clínica quanto a teoria estejam à altura dos problemas que se apresentam.
Freud já recusou a investida de Jung para dessexualizar a libido e para particularizar o inconsciente. Não há inconsciente ariano, semita, cristão, como também não há inconsciente negro, ameríndio ou chinês. Não há dúvidas que repousem sobre a não essencialidade do inconsciente como um axioma primordial para a psicanálise. Então, para não gerar dúvidas, é preciso afirmar que o inconsciente não tem cor, com isso não é branco nem preto. Contudo, esse fundamento não se confunde com eventuais significações que esse enunciado possa produzir para além do axioma que ele fixa. Se desde Freud a psicologia individual é inseparável da coletiva, seus textos culturais e sociais não são disjuntos de sua investigação sobre a clínica psicanalítica. Totem e tabu, Psicologia das massas e análise do eu, Mal-estar na Cultura, Por que a guerra?, Considerações contemporâneas sobre a guerra e a morte, Moisés e o monoteísmo, dentre outros, não são textos sociológicos, históricos ou antropológicos.
Freud se ocupou de uma crítica à política fascista que implicava em duras privações à subjetividade de um povo, sem deixar de indicar as raízes para a intolerância com o outro que acaba por ser o alvo de ódio e violência. Com isso ele não apenas nos deu elementos para uma reflexão cuidadosa sobre o racismo, como inseriu essa posição do psicanalista dentro do campo da ética. Sem desconsiderar a ética do bem dizer podemos afirmar que a ética trágica explicita como o sujeito e o falasser trazem tanto na subjetividade quanto no corpo as marcas de uma impossibilidade de síntese dos impasses do Outro da Cultura, do Outro social.
A categoria filosófica e política da identidade não encontrou o mesmo espaço na psicanálise. No interior de uma teoria do inconsciente encontramos uma complexa trama da constituição individual e coletiva, sob a categoria conceitual da identificação. O caráter ilusório da identidade é descortinado pela inclusão de uma heterogeneidade irredutível às operações essencialistas do idêntico, do mesmo, da similitude, que fazem de A=A um critério para o reconhecimento do verdadeiro. O conceito de identificação coloca em ruínas esse edifício de arquitetura argilosa. Os pés de barro do idêntico como fonte para o Eu foram trincados de modo irreversível. Não se tem como recuar frente ao coletivo de imagens, semblantes, e traços que compõem a diversidade de pessoas que constituem o sujeito. A categoria da identificação estabelece suas bases como o lugar do múltiplo que tornam impossível uma estabilidade identitária e seu essencialismo necessário.
Tornar-se negro a partir de um encontro com coletivos, por exemplo, nas universidades, não faz parte de uma operação indentitarista. Ao contrário, é o resultado de uma asserção radical ao enfrentamento de uma política da identidade. Portanto, trata-se mais de uma crítica a essa categoria. Há um problema, desde o ponto de partida, em ler nestes movimentos negros e antirracistas a expressão de um identitarismo: essa percepção depende diretamente da crença de que não estamos assentados sobre uma política da identidade. Como se a lógica do A=A já não estivesse em curso como princípio de uma sociedade racista.
Quero destacar que não estou dizendo que é uma sociedade racista que promove o identitarismo. Digo que uma política identitária é um dos fundamentos do racismo. Uma política performática do “todos iguais”, do A=A sem restos, terá como destino o ódio ao Outro. Um mestre que disponibilize significantes e semblantes coletivizáveis fará deles objetos individuais para cada um, como nos mostra o imperialismo, o colonialismo, o capitalismo, inclusive na sua forma de neoliberalismo. Neles, uma política da identidade não é uma contingência, é um de seus princípios sem os quais não se sustentariam. O que impõem é uma política sem o Outro.
Os coletivos negros, antirracistas, fazem duras críticas a esses agentes e a seus princípios. Mesmo que eventualmente não fique explicito conceitualmente, a sua prática evidencia a identificação, tal como formulou Freud, como o lugar do parcial, do múltiplo, das ações residuais. O sujeito não se constitui em sua própria casa, não tem sua sede no país do mesmo, sendo cravejado pelo Outro, pelo heterogêneo, pela diferença, e não pelo si mesmo. É justamente desde aí que teremos que compreender o que se costuma chamar de tornar-se negro. Se alguém de pele parda ou preta pode se tornar negro, esse ato revela que o negro não é o mesmo, é o Outro, o heterogêneo. Ter a pele preta não faz do ser negro algo da ordem do mesmo, muito menos objeto de reconhecimento. O negro é heterogêneo para um sujeito que é efeito de um discurso do mestre racista, seja qual for a sua cor de pele.
Transmissibilidade de um impossível
Ao afirmarem que não se é negro por ter a pele x ou y, os fenótipos x ou y, mas que será preciso tornar-se negro não sem os outros, são estritamente freudianos sem que o saibam. Mesmo tendo a pele preta, o ser preto ou negro não é assunção de uma identidade essencialista, primeiro porque numa lógica em que A=A não existe Outro, não existe o que não é A. Sob efeito do discurso do mestre que prescreve a universalidade de A, não existe subjetividade possível fora daí. Ser “P” será sempre da ordem do heterogêneo, do diverso, do invisível, do precarizado, do diferente que será alvo de ódio e da violência. Para aquele que tem a pele parda ou preta isso não se inscreverá de modo muito diferente. Portanto, deparar-se com o ser “P” para estes, será uma forma de encontro Unheimelich. Para estes, torna-se negro numa sociedade racista será um ato em relação a uma alteridade infamiliar. Tornar-se negro implicará necessariamente o país do Outro.
O episódio relatado por Freud, de uma lembrança em que seu pai tem o chapéu jogado ao chãoeobrigadoasairdacalçadapelofatodeserumjudeu, ésempreumencontrocontingente que terá efeitos particulares e singulares. O trabalho entre a humilhação e o heroísmo esperado embora ausente, estará à cargo do tratamento singular do real traumático e sem sentido. Por outro lado, e sem ser um oposição excludente, temos o acréscimo no campo do laço social, em sua dimensão histórica, em que esse tipo de violência incide naquele homem, não apenas como uma contingência, mas porque ele é judeu. E sendo assim, poderá ser lido como um traço comum aos judeus num discurso do mestre antissemita. Uma coisa é o trabalho intransferível que cabe a cada um, outra coisa que não elimina a sentença anterior, mas vem em acréscimo, é uma significação prescrita e prévia daquilo que se espera de um encontro que poderia ser contingente, mas se impõe como necessário em decorrência de uma dada etnia ou condição social. Há uma transmissão da cultura.
Por outro lado, tornar-se negro não é uma ação identitária, mas sim uma expressão gramatical e estética de um encontro infamiliar acrescido de uma experiência heteróclita em que se identifica com os resíduos desse Outro estrangeiro. Uma experiência em que se busca fazer existir, finalmente, uma transmissão de outra ordem, que não seja violenta e mortífera. Importa menos se o Outro africano funcione como um pai ficcional de uma transmissão, o fundamental está em fazer com que uma transmissão funcione. O aquilombamento tem se mostrado como uma das maneiras que essa transmissão se opera.
Aquilo que é intraduzível, sem sentido, ainda é passível de ser transmitido. Nessa direção a noção de contingência é cara à nossa inteligibilidade. Mas quando o falasser porta um corpo sobre o qual o intraduzível não é resultado apenas da contingência singular, mas por uma ausência material de uma historicidade que sistematicamente não cessa de se inscrever, isso pode ser lido como uma prática de violência estrutural. Se posicionar e não silenciar quanto a isso, é uma questão ética.
* Este texto dialoga com outro feito em parceria, que discute a questão das cotas nas universidades. Link
REFERENCIAS