Conversação sobre “A angústia na experiência analítica do século XXI”

Antônio Teixeira, Bárbara Afonso, Cleide Monteiro, Heloísa Bedê, Marina Recalde, Olívia Viana, Ricardo Seldes, Vinícius Lima y participantes.

RESUMO

Esta conversação reúne as apresentações da mesa “A angústia no século XXI”, organizada pela FAPOL na UFMG, a partir de pesquisas sobre juventudes periféricas, sexuação e prática clínica. Bárbara Afonso aborda a função subjetiva da angústia como possibilidade de interrogação sobre a vida em jovens negros envolvidos no tráfico. Vinícius Lima problematiza as masculinidades fora do universal, explorando o lugar de resto ocupado por certas masculinidades no laço social e sua articulação com a angústia. Heloísa Bedê investiga o gozo não-todo na sexuação como uma irrupção que, por ultrapassar a fantasia fálica, pode ser angustiante para alguns seres falantes. Olívia Viana analisa pesadelos recorrentes de adolescentes privados de liberdade, destacando o sonho como espaço clínico de elaboração da angústia frente ao real da morte. O debate evidencia a angústia como bússola clínica, báscula entre desejo e gozo, no encontro com sujeitos marcados por formas de exclusão social.

Palavras-chave: angústia, clínica, sexuação, política, juventude

ABSTRACT

This conversation brings together presentations from the panel “Anxiety in the 21st Century,” organized by FAPOL at UFMG, based on research on marginalized youth, sexuation, and clinical practice. Bárbara Afonso addresses the subjective function of anxiety as a possibility of questioning life among black youths involved in drug trafficking. Vinícius Lima problematizes masculinities outside universality, exploring the place of a remainder occupied by certain masculinities in the social bond and their relation to anxiety. Heloísa Bedê investigates not-all jouissance in sexuation as an irruption that surpasses phallic fantasy and may thus become a source of anxiety to some speaking beings. Olívia Viana analyzes recurrent nightmares of adolescentes deprived of freedom, highlighting dreaming as a clinical space for working through anxiety facing the real of death. The debate discloses anxiety as a clinical compass, between desire and jouissance, for subjects marked by social exclusion.

Keywords: anxiety, clinic, sexuation, politics, youth

RESUMEN

Esta conversación reúne las presentaciones de la mesa “La angustia en el siglo XXI”, organizada por FAPOL en la UFMG, a partir de investigaciones sobre juventudes periféricas, sexuación y práctica clínica. Bárbara Afonso aborda la función subjetiva de la angustia como posibilidad de interrogar la vida en jóvenes negros involucrados en el narcotráfico. Vinícius Lima problematiza las masculinidades fuera de lo universal, explorando el lugar de resto que ocupan ciertas masculinidades en el lazo social y su articulación con la angustia. Heloísa Bedê investiga el goce no-todo en la sexuación como una irrupción que va más allá de la fantasía fálica y que, por ello, puede volverse angustiante. Olívia Viana analiza pesadillas recurrentes de adolescentes privados de libertad, destacando el sueño como espacio clínico de elaboración de la angustia ante lo real de la muerte. El debate muestra la angustia como brújula clínica, uma mediación entre deseo y goce, en el encuentro con sujetos marcados por formas de exclusión social.

Palabras-clave: angustia, clínica, sexuación, política, juventud

Antônio Teixeira

Daremos início à mesa “A angústia no século XXI”, com a participação de Bárbara Afonso, Heloísa Bedê, Olívia Viana e Vinícius Lima. A conversação contará com as intervenções do professor Ricardo Seldes e de Cleide Monteiro.

Agradeço à Fernanda Otoni e ao Gilson Iannini pelo convite para coordenar esta mesa e agradeço a presença de todos.

Quando a morte traça destinos: e a angústia, como se apresenta?

Bárbara Afonso

Os adolescentes envolvidos com o tráfico de drogas se encontram em uma trama tanto subjetiva e pulsional, quanto política e social. Seguindo a concepção de biopoder em Foucault, o filósofo Mbembe (2016) desenvolve a ideia de necropolítica. Ele afirma que uma das formas de a necropolítica atuar é através de zonas de exclusão nas quais vidas são conduzidas como desnecessárias e excedentes. O poder necropolítico opera na gestão da morte, separando quem se deixa viver e quem se deixa morrer: jovens das periferias, em sua maioria negros[1]. Os dados do Atlas da violência (2019) são alarmantes: no período de 2009 a 2019, a cada dezessete minutos morreu um jovem negro no Brasil. Frequentemente, esses adolescentes falam sobre um caminho traçado para a morte e a não existência, afirmando seus destinos: “nessa vida, é matar ou morrer”, “pra nós, sobra a morte”. Ao considerarmos que o ato infracional mais diretamente associado com a morte é o tráfico de drogas e tomando esta fala de um adolescente – “A chave da morte é o tráfico”, é possível indagar: a morte operaria como moeda de regulação do viver?

Há casos em que os adolescentes repetem esta máxima como destino do tráfico – “São os três Cs: cadeia, caixão e cadeira de rodas” – e como jargões nos quais não localizamos a angústia. Há apenas um dizer, como se isso não lhes dissesse respeito. Nesses casos, é possível pensar que temos diante da morte uma tendência inegável para colocá-la de lado, “para eliminá-la da vida” (Freud, 1915/2006a, p. 299). Assim, não é possível imaginar a própria morte. “No inconsciente cada um de nós está convencido de sua própria imortalidade” (Freud, 1915/2006a, p. 299). Por isso, haveria essa não implicação? Em outros casos, lemos uma posição mortificada em falas como: “Se eu morrer, amanhã faz dois dias”. Ou seja, de alguma forma é como se ele já se contasse em uma posição de morto, porque, se morre hoje, amanhã faria um dia. Em casos como esse, a emergência da angústia não poderia vir como um despertar permitindo que esse sujeito se indague sobre sua vida?

Temos ainda outro cenário no qual os adolescentes estão em contexto de guerra no tráfico de drogas. É possível pensar com Freud (1915/2006a) que, diante da guerra[2], a morte não tem mais como ser negada como convencionalmente ocorre. As pessoas são forçadas a acreditar na morte e, concomitantemente, a vida recupera seu pleno conteúdo diante da própria possibilidade da sua perda, estando o valor da vida na transitoriedade e na escassez do tempo (Freud, 1916/2006b). Essa dimensão parece importante por recolocar o valor da vida em sua possibilidade de pô-la à prova. Entretanto, muitas vezes, esse caminho pode levar à antecipação da morte. Diante da proximidade real da morte e frente à angústia causada pela perda de um colega, temos adolescentes que saem do envolvimento com o tráfico de drogas querendo “mudar de vida” e outros que entram em um circuito de “revolta” em que o agir e a ideia de “vingança” ultrapassam qualquer possibilidade de entrada no trabalho de luto, operando um circuito de agitações e angústia. Nos contextos de guerra do tráfico e nos quais o sujeito “não tem nada a perder, pode vir até tiro”, sentindo que não houve a inscrição de um lugar no amor do Outro, em que há menos a pergunta e a angústia sobre o desejo do Outro e mais uma certeza do seu lugar de dejeto, a dimensão do destino se apresenta cada vez mais sem saída. Na tragédia moderna, Lacan (1961/1992) afirma que, ao se renunciar à dívida simbólica, “resta uma infelicidade ainda maior, a de que esse destino não seja mais nada” (p. 295). Ou seja, “uma forma de abandono que conduz a extensão desse não-sentido como uma maneira de estar no mundo” (Lacadée, 2015, p. 30).

Os impasses aparecem quando pensamos nos casos clínicos. C. cumpre uma medida de internação provisória, passou ao ato recentemente e tentou se matar[3]. Conta que está sendo muito difícil: acorda no meio da noite e vê o jovem que assassinou olhando-o. Fica angustiado e afirma: “Deve estar querendo morrer de novo”. C. relata: “Às vezes, penso: ‘Nossa, eu matei um menino de 16 anos…’ Mas, fazer o quê? Ele estava do lado errado da guerra”. C. mostra as marcas de bala no corpo, as cicatrizes, e chama meu olhar para ver as diferenças e limitações dos seus braços e pernas. Digo a ele sobre a importância de cuidar do seu corpo agora. C. conta que precisará fazer uma cirurgia para isso e conclui: “Estraguei minha vida quando entrei para o crime. Eu tinha 11 anos […] Não há mais como sair, estou em guerra, sabem quem sou”. E conclui: “Quem mata também vai morrer”. A emergência da angústia e do objeto olhar pode fazê-lo perguntar sobre a vida. C. se lembra: “Eu frequento a Umbanda, as entidades me protegem e falam para eu sair do tráfico”.

Dessa maneira, podemos localizar diferentes respostas dos jovens envolvidos no tráfico para lidarem com a angústia e com o real da morte.

Masculinidades fora do universal: angústia diante do resto?

Vinícius Lima

Podemos localizar a contribuição central de Lacan para o tema das masculinidades na formalização da lógica que organiza as sexuações masculinas a partir de uma estrutura não ingênua do universal e sua exceção fundadora: todos iguais, isto é, castrados, na condição de que haja ao menos um que diz não à castração. Com a função fálica, o universal masculino é a castração (os homens são todos castrados), mas seu complemento fantasmático é a aspiração a uma virilidade excepcional, mítica, que vem figurar a perda de gozo imaginarizada pelo mito de Totem e tabu (Freud, 2013) (o pai primevo que gozaria de “todas as mulheres”). Assim, se a castração masculina é a regra, então a virilidade tem uma estrutura de fantasia (Miller, 2011).

Essa lógica do todo e da exceção se assenta, portanto, na existência mítica de Um – o pai gozador, o verdadeiro viril – que diz não à castração. É por haver uma exceção que podemos constituir um universal, ao preço de manter excluído de sua postulação qualquer particular que negue sua universalidade formal. Lacan ficou conhecido pelo axioma provocativo de que “Não há A mulher” (Lacan, 2008, p. 98); rapidamente, costumamos nos perguntar: e O homem existe? Responde Lacan (2009), no Seminário 18: temos “enormes dúvidas”… Se a existência dessa exceção viril é mítica, então temos dúvidas se O homem, o todohomem, existe. No entanto, isso não impede que um sujeito possa sustentar o status simbólico do todohomem, pela via de um assentimento formal a essa estrutura da universalidade, que só pode vir acompanhada de uma impostura, pois, se a regra masculina é a castração, a virilidade fica vinculada ao registro do semblante, já que “não há virilidade que a castração não consagre” (Lacan, 1958/1998, p. 742).

No Seminário 18, Lacan diz: “O homem é uma função fálica na qualidade de todo homem. Mas, como vocês sabem, há enormes dúvidas incidindo sobre o fato de que o todo homem existe. É isso que está em jogo – ele só pode sê-lo na qualidade de todohomem [touthomme], isto é, de um significante, nada mais” (Lacan, 1971/2009, p. 132-133, grifos do autor). Assim, esse arranjo da virilidade como aspiração neurótica à posição de exceção – “querer ser o maioral”, como nomeia um analisante – só pode se sustentar por uma filiação formal à estrutura do gozo fálico, pois, do ponto de vista material, nenhum ser falante se integra de todo à norma, à medida instaurada pelo falo: o universal tem uma estrutura de ficção na medida mesma do mito do pai gozador – o que não impede essa estrutura de incidir discursivamente sobre as subjetivações dos homens. Então, a lógica masculina formalizada por Lacan – essa do todo pela exceção – dá conta de uma estrutura “mito-lógica” (Moreira, 2018, p. 11), cuja validade formal explicita o funcionamento violento do universal masculino na linguagem e na cultura, mas não escreve o que se passa no nível da existência particular de um ser falante, no registro da singularidade de seu gozo. Se, do ponto de vista do universal, pode-se afirmar, quase como um imperativo, que “homem não chora”, quando avançamos para o nível do particular, podemos subverter a afirmação e indagar: mas algum homem não chora?

Nesse ponto, compartilho um achado recente da pesquisa de doutorado em curso: essa lógica masculina, que começa a ser trabalhada junto aos fundamentos da sexuação no Seminário 18 (Lacan, 2009), só acede à formalização pela qual ficou mais conhecida no Seminário 19 (Lacan, 2011). Este inaugura essas fórmulas do todo e da exceção (Lacan, 2011). Mas há também, antes, uma outra fórmula para a masculinidade que é menos conhecida, escrita por Lacan (2009) no Seminário 18: ⋽ x Фx, não existe um x que satisfaça Фx. O x aqui é o lugar do sujeito, qualquer um que se inscreva na função fálica. Do ponto de vista material, não é “com um x existente” que a função fálica pode escrever-se (Lacan, 1971/2009, p. 131). Nenhum x existente, nenhum sujeito existente, está à altura de responder inteiramente pelo falo, pela função fálica.

Esse ponto se articula com a interrogação lacaniana do universal, que não assegura a existência do particular: no nível da lógica, pode-se afirmar, sem grandes problemas, que todos os lobisomens são mamíferos ou que todos os unicórnios têm chifres, mesmo que jamais se tenha visto por aí um exemplar de sua classe (Teixeira, 2015). Lacan (2009) reconhece a hiância entre o universal e a existência, entre o universal e o particular, que faz com que um sujeito jamais se submeta integralmente às tentativas de universalização do gozo fálico, já que, por estrutura, nem tudo do gozo se reduz ao falo. Por esse motivo, só se adentra o universal mantendo-se um “pé” fora dele. Aqui, podemos fazer um giro no tocante ao quantificador existencial da sexuação masculina ao tensionar a existência mítica do pai da horda, do pai gozador da ficção, com a existência em seu registro ôntico, a existência material de um particular que não se subsume de todo na regra fálica que o constringe.

Como consequência, se a estrutura do universal se assenta sobre uma ficção, com uma validade formal que não encontra necessariamente um correlato material, então cada um se torna exceção à sua maneira, isto é, cada ser falante existe por fora dessa estrutura do universal, apenas não o sabe (ainda), pois prefere repousar na segurança da identificação como Um entre outros, em meio ao conjunto masculino de todos (supostamente) iguais. Mas, ainda que cada um seja no fundo exceção (o que, inclusive, implodiria a possibilidade de se fundar um conjunto universal de “todos os homens”), alguns homens, em particular, parecem ser eleitos para encarnarem, no laço social, uma figuração da Alteridade do gozo, como se constituíssem masculinidades de exceção em relação à postulação de uma norma masculina que, no entanto, jamais se encontra plenamente realizada como tal, mas ganha consistência por meio desses gestos de exclusão.

É o que encontramos, por exemplo, nos escritos de Édouard Louis (2018), um escritor e homem gay que, crescendo como um menino afeminado num vilarejo francês, retoma a frase que lhe diziam na escola: “É você o bicha?” – frase da qual riam todos ao seu redor. Ou ainda, nos escritos de Frantz Fanon (1952/2008), psiquiatra e homem negro martinicano que, trabalhando em uma cidade da França, se vê alvo do olhar de uma criança que diz: “Olhe, mamãe, um preto!” – momento que é seguido pelo acontecimento de um corpo que se desmonta, conectando-se com várias situações de racialização prévias que o fazem enunciar que “o negro não é um homem”.

Nesse sentido, as masculinidades fora do universal – apesar de dizerem respeito a cada masculinidade quando tomada pela via da existência material, no nível do particular – parecem se constituir de forma mais explícita por homens cuja posição de objeto para o outro se torna mais exposta no laço social, frequentemente, pela via dos insultos que demarcam o traço de diferença desses “alguns homens” em relação à postulação universalizante de uma certa norma masculina – homens que supostamente não confirmam a regra fálica, que de alguma forma parecem dizer não a ela.

Concluo com uma pergunta: frente às masculinidades fora do universal, haveria aí um pano de fundo de angústia diante dessa exposição da condição de resto que, no fundo, toca a cada um?

Da intrusão ao estrangeiro: tessituras entre angústia e sexuação

Heloísa Bedê

Primeiramente, eu queria agradecer a todos os envolvidos nesse esforço de poder bem-dizer a angústia de hoje, considerando o convite que Ricardo Seldes faz.

Fernanda Otoni nos convidou para esta mesa – A angústia na experiência analítica do século XXI – e propôs que tentássemos extrair uma pergunta das vísceras que articulasse o tema da pesquisa e a angústia. Com isso, em detrimento dos detalhes da minha pesquisa, que conversa sobre o estatuto clínico da linha que separa um lado e outro da sexuação, voltarei ao ponto da clínica a partir do qual essa pesquisa surge, que me toca, que reverbera.

Uma vinheta clínica:

Gosto do meu corpo assim: fortaleza. Trato minha ansiedade na academia, o TDAH com remédio e o tédio no TikTok. A receita perfeita, fala sério! Só que, de vez em quando, vem essa angústia que nem parece minha, do nada. Abre um rombo no peito e me devasta… me derrete… Não sei o que fazer com isso.

Dentre os testemunhos que compõem o horizonte clínico da prática psicanalítica, me chamam a atenção relatos como esse. Às vezes corpo-fortaleza, às vezes corpo-derretido. O ritmo da passagem de um ao outro é marcado por esse “do nada”, que assinala a entrada de algo do gozo que se manifesta por meio de ‘defrontes’ esporádicos com a angústia. Mas, afinal, de que se trata essa sutileza clínica que imprime, sobre a rotina do sintoma, tais acontecimentos de ordem indizível em tom de devastação?

Diante do fracasso estrutural no campo da sexualidade de fazer valer uma proporção ou uma complementaridade entre os sexos (Lacan, 1972-1973/2008), cabe a cada ser falante (independentemente de sua identificação generificada) inventar uma forma de se virar com esse furo. E, nesse virar, desenham-se os modos singulares a partir dos quais cada um aparelhará seu corpo para o gozo – modos que Lacan irá logicizar por meio de suas fórmulas sexuadas.

Teríamos, então, segundo a sexuação, duas posições de satisfação não complementares entre si. O gozo fálico, ou masculino, refere-se àqueles que, na promoção de um corpo-fortaleza, esforçam-se para que o furo não tenha vez, tamponando-o com o script da fantasia e com a rotina do sintoma. O gozo não-todo fálico, ou feminino, por sua vez, refere-se àqueles que acessam, esporadicamente, uma satisfação que permite conjugar o gozo fálico a seu mais além, uma vez que não se submete inteiramente ao roteiro autístico do falo. Seus testemunhos, à la “corpo-derretido”, não conferem consistência identificatória para que o ser falante possa ali permanecer, fazendo-o Outro para si mesmo em acontecimentos inenarráveis, marcados pela contingência e, portanto, apenas localizáveis em sua dimensão de encontro com o corpo, seja sob a forma de devastações, arrebatamentos, falta de consistência corporal ou mesmo êxtases.

Um relato:

Se aprendi alguma coisa com o passe é que o feminino não é a estação de chegada da análise, não é a terra prometida uma vez transpostos os limites da lógica fálica. […] que eu tenha tentado mantê-lo à distância, que eu tenha tentado esmagá-lo, que eu tenha fantasiado com fechá-lo em um frasco, que eu tenha me obstinado a interpretá-lo, a traduzi-lo, nada disso me impedia de encontrá-lo (Brodsky, 2021, p. 6).

O testemunho de Brodsky (2021) sobre o início de sua análise parece bem próximo ao que nos ensina, com certa frequência, a clínica das neuroses: a fantasia de se poder fechar o feminino em um frasco, e, ainda assim, no cotidiano, encontrá-lo por aí, escorregadio às constrições da métrica fálica. Visto que essa clínica nos apresenta sujeitos geralmente bastante dedicados a que todo seu gozo seja tratado por meio do falo (isto é, tratável na academia, localizável no TDAH, drenável pelo TikTok), não é incomum relatos que aproximem, no nível da experimentação, as manifestações do gozo não-todo fálico e o afeto de angústia. Alguns fragmentos de relatos da clínica: “Me sinto invadida por isso”, “Não adianta fugir, acontece”, “Pura invasão de angústia”

Embora na clínica das neuroses tenhamos, com certa frequência, essa aproximação, não há, por definição, uma sobreposição necessária entre angústia e feminino. Isso fica especialmente evidente em alguns testemunhos de passe, cujos relatos incluem, em algum momento do percurso analítico, uma passagem a um bem-dizer o feminino, com encontros com o gozo não-todo articulados a experiências de vivificação ou mesmo ao campo do amor: “A mulher não existe e nem é possível de tornar-se mulher de uma vez por todas. O impossível não é eliminável, todavia, uma vez que certo cálculo foi realizado, ela pode encontrar a cada vez um saber-fazer com isso” (Holk, 2018, p. 167).

Temos, então, o gozo feminino como esse pano de fundo sobre o qual se formam as mais singulares fronteiras (quando se crê demasiadamente no falo como defesa ao gozo feminino), os mais singulares oceanos (quando se ensaia prescindir do falo e dos semblantes rumo à difamação e ao extravio) e litorais (quando, talvez, se sustenta a heterogeneidade entre essas duas modalidades de gozo, conjugando seus avanços e recuos sobre o corpo). Isto é, trata-se uma satisfação, feminina, que está posta para cada ser falante à sua maneira, de modo que parece ter algo no fazer de cada um com o gozo que conduz a diferentes experimentações, desde as mais angustiantes às mais vivificantes. Então, me parece que, a depender do que cada um faz com isso, isso pode ter efeitos mais ou menos angustiantes. Diante dessa vastidão de efeitos, a pergunta insiste: de que se trata, então, a comum aparente proximidade das irrupções do gozo não-todo na clínica das neuroses com a angústia?

Sabemos que a angústia, grosso modo, pode ser lida como a falta da falta, isto é, uma aparição do objeto fora do enquadre (Lacan, 1962-1963/2005), um advento do real que implica uma ruptura do enquadre tal qual fornecido pela fantasia do sujeito. O gozo feminino, por sua vez, trata de uma satisfação que, por se dar de formas contingentes – ou seja, não previstas e não perenes –, reenvia a aparente necessidade fálica à sua dimensão de puro encontro. Por exemplo, diante da irrupção do feminino, na vinheta que eu trouxe, temos um sujeito que passa da fortaleza ao derretimento, “do nada”.

Seria possível pensarmos, então, que o gozo não-todo fálico – nisso que atrapalha a circunscrição fálica do gozo à fantasia, nisso que atrapalha que o corpo seja todo fortaleza – operaria de modo parecido, ainda que não coincidente, com a angústia? Teria o gozo não-todo uma vizinhança com a experiência de angústia devido ao fato de suas manifestações também fazerem vacilar o enquadre fantasmático do sujeito? Seriam as irrupções do gozo não-todo na clínica das neuroses, assim, uma possível desestabilização do encadeamento norme-mâle da realidade discursiva?

Independentemente da resposta a essas questões, na clínica, parece possível constatar que, quanto mais rígidas são as abordagens do sujeito para tentar represar as irrupções desse Outro gozo, mais devastadoras parecem ser as reverberações de tais irrupções e mais severas parecem ser as respostas superegoicas a isso: “parece uma invasão… uma ruptura de barragem, não sei. Quanto mais tento me proteger, quanto mais me fecho – e haja proteção [risos] –… quanto mais me fecho, mais isso transborda. Mais esbarro, mais me esparro nesse impossível”[4].

Com Lacan (1972-1973/2008), vimos que o gozo não-todo não se dá sem sua parcela de estrangeiridade, uma vez que encarna uma alteridade radical para cada ser falante. Entretanto, há uma diferença qualitativa importante entre ser estrangeiro (aquele que não é referido àquele lugar ou que está de passagem) e ser intruso (aquele que adentra um território sem permissão ou consentimento). Esse último parece ser, muitas vezes, como o gozo feminino se apresenta nas neuroses.

Para concluir, podemos nos interrogar: seria uma direção clínica para esses casos operar, cada um a seu modo, uma torção na passagem da intrusão ao estrangeiro?

Parar para sonhar: a irrupção da angústia nos pesadelos de adolescentes assombrados pela morte

Olívia Viana

Este texto é fruto do início de uma pesquisa de doutorado que nasceu da minha prática clínica em um projeto que se chama “Desembola na ideia”[5].

Na experiência clínica com adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa, o tema dos sonhos e, principalmente, dos pesadelos, é recorrente. São inúmeros os relatos de sonhos de morte durante o período de privação de liberdade nos Centros de Internação Provisória (CEIP), onde os adolescentes ficam acautelados por até quarenta e cinco dias, aguardando a sentença judicial referente ao ato infracional cometido.

As formas como esses sonhos se apresentam são diversas, mas há, em geral, a presença do horror e uma proximidade com o registro do Real. São sonhos em que o sujeito mata ou, principalmente, morre, vivenciados com detalhes em relação à violência, à crueza e à forma como o corpo é atingido – tiros, cortes, membros e pedaços arrancados, sangue, dor. Quando há uma narrativa que se desenvolve em torno do ponto de horror, são cenas em que os sonhadores se encontram assustados, armados, em fuga, perseguidos pela polícia, por inimigos, por assombrações ou pela própria morte encarnada. O sujeito acorda com o corpo tomado pela experiência do sonho − suores, palpitações, choros, gritos, angústia − sinais “da ordem da irredutibilidade do real” (Lacan, 1962-1963/2005, p. 178): “Só estou tendo sonho ruim aqui dentro, só sonho que estou matando os outros. Nunca sonho que estou morrendo, só mato, toda noite, acho que isso não é bom sinal”; “Direto eu levo tiro em sonho, acordo achando que morri”; “Sonhei que a morte andava atrás de mim, eu corria pro beco, mas ela aparecia do outro lado”; “Aqui eu sempre sonho que estou morrendo”; “Sonhei que estava cortando a garganta do cara que tentou me matar. Eu sentia a pele dele entrando na lâmina, ele sufocando, o sangue jorrando”; “Sonhei que levava um tiro, sentia a bala queimando, acordei com o peito doendo, sem respirar”; “Sonhei com polícia correndo atrás de mim, tentando me matar”[6].

Constantemente, tais relatos vêm seguidos de uma observação sobre a especificidade daquela vivência − a maioria dos jovens afirma não sonhar ou sonhar muito pouco quando está em liberdade: “Lá fora a gente não sonha porque não dá tempo. É muito corre… não dá pra parar pra sonhar”; “Quando estou lá fora, acordo antes de terminar de sonhar, porque fico só pensando em corre”. O corre aqui é uma gíria que se refere ao trabalho no tráfico de drogas. Não se trata de um significante qualquer, dado que esses sujeitos frequentemente vivenciam confrontos armados e diversas outras situações de violência, estando inseridos no grupo de maior risco de morte do país – jovens negros, de periferia, envolvidos com o universo do crime. Assim, o corre é literal, e eles vivem fugindo, correndo da morte – seja no período de vigília, quando estão em liberdade; seja nos sonhos, quando estão presos.

Em seu Seminário 10, Lacan (1962-1963/2005) afirma que a angústia do pesadelo “é experimentada, propriamente falando, como a do gozo do Outro” (p. 73). Ele retoma a etimologia latina do pesadelo como incubus, que se refere a esses demônios que se colocam contra o corpo do sonhador até o sufocarem – “esse ser que nos comprime o peito com todo o seu peso opaco de gozo alheio, que nos esmaga sob seu gozo” (p. 73)[7]. No pesadelo, trata-se menos de uma dúvida sobre o desejo do Outro e mais de uma certeza de que o Outro quer algo do sujeito, o que leva à emergência da angústia, que surge, então, como índice da irrupção do objeto a, que se desponta como resto irredutível da operação significante entre a demanda e o desejo do Outro, remetendo a um ponto de horror, de insuportável.

Assim, embora o sonho traumático não seja “reservado aos neuróticos de guerra ou aos acidentados graves, mas […] comum a todos os sujeitos” (Koretzky, 2023, p. 86), há uma particularidade na sua ocorrência nesses adolescentes. A morte se apresenta em sua literalidade, em um “retorno do mesmo, retorno fixo e idêntico de uma imagem que remete a uma situação traumática” (Lacan, 1962-1963/2005, p. 83). Se o racismo se fundamenta na “vontade de assassinato daquele que encarna o gozo que eu rejeito” (Laurent, 2014, s.p.), podemos dizer que o pesadelo, como mobilizador da angústia, apresenta o destino mortífero traçado para esses jovens, o lugar da morte anunciado no campo do Outro.

Entretanto, faz-se importante ressaltar que a experiência do sonho é localizada pelos adolescentes como uma particularidade do momento de privação de liberdade. Trata-se, dessa forma, de uma manifestação do inconsciente, vinculada à experiência de estar com a liberdade restrita, à espera de uma decisão judicial, em um momento de suspensão. A angústia precipita o endereçamento dos relatos de sonhos para alguém que escuta, para o espaço da conversação. Temos, portanto, nesse acontecimento, um momento precioso de possibilidade de intervenção clínica.

Mobilizada por isso, teço algumas perguntas: seria possível, com a abertura da via-régia do inconsciente, fisgar, nesses relatos, a dimensão da vida? Quais as possibilidades de intervenção clínica a partir dos relatos endereçados pelos jovens? Onde localizar o singular, o particular e o universal dessas experiências oníricas? Como interpretar essa emergência do inconsciente durante o período de internação provisória? Como ler a presença reiterada da morte nos sonhos desses adolescentes? Como intervir em direção à possibilidade de parar o corre para poder sonhar, em direção à possibilidade de sonhar em liberdade, em direção à possibilidade de poder sonhar com a vida?

Conversação

Marina Recalde: Agradeço a vocês pela perspectiva clínica que desenvolveram e que retoma muito bem o que foi a conferência de Ricardo Seldes, há pouco, e a conversação. Evoco o que Ricardo trouxe hoje, para justapor aos casos, ao citar Jacques-Alain Miller (2013), que a angústia surge quando não podemos nos orientar pelo simbólico. Pareceu-me que isso dá uma volta a mais em relação à angústia como afeto que não engana, porque se a angústia surge quando não podemos nos orientar pelo simbólico, finalmente, será um passo necessário para poder orientar-se pelo simbólico. Então, ao escutar esses casos, graves, frases terríveis, o caso dos três “C” me pareceu uma concentração… de algo horroroso como destino para um sujeito e que foi impactante. E pensava, se precisamente, a angústia, quando existe, é o melhor que pode nos acontecer. Quer dizer, nos relatos, nos sonhos, inclusive nos pesadelos, porque é o que vai permitir, retomando o que dizia hoje Ricardo, poder construir uma orientação pelo simbólico.

Cleide Monteiro: Obrigada, Marina. Inicialmente, gostaria de agradecer à Fernanda Otoni pelo convite, dizer que eu gostei muito dos trabalhos de vocês.

Li os textos com a seguinte questão norteadora: o que cada trabalho nos ensina sobre a angústia no século XXI? O que há de novo na experiência de angústia em tempos de subida do objeto a ao zênite social, como antecipou Lacan (2005)? Em seu Seminário 10, Lacan (2005) nos indica que a angústia não é sem objeto e faz do objeto a o fundamento dessa experiência que toca o real do corpo.

Visto que Freud (2014) a chama de exigência pulsional, sinal do real, a angústia é o único afeto que não engana, diz Lacan (2005), nos indicando, dessa forma, um vetor que orienta a prática clínica. Os trabalhos nos indicam a angústia como bússola para acessar os sujeitos contemporâneos, é o ponto onde isso rateia.

Vou comentar o trabalho de Bárbara e Vinícius, depois passo a palavra a vocês e, em seguida, vamos para os dois próximos.

Bárbara, esse desafio do trabalho com adolescentes envolvidos com o tráfico de drogas nos convida a pensar sobre a angústia a partir do que acontece com os sujeitos situados nas zonas de exclusão, reduto dominado pela necropolítica. Vinícius termina o texto dele quando alguns sujeitos, fora da masculinidade, encarnam algo dessa condição de dejeto. Parece que é o que você traz, numa perspectiva que você chama de masculinidades fora da lógica fálica. Já Bárbara demonstrou isso a partir de um outro tipo de exclusão desses sujeitos, que são vítimas dessa necropolítica. Você trouxe Fanon, é muito incrível essa passagem de Fanon (2008), quando a criança começa a gritar e a dizer à mãe que está com muito medo, “olha o medo, olha o medo” e isso tem toda uma reação no corpo de Fanon. É muito interessante como você fez essa passagem de sair desse homem que interroga a partir da sexuação para um homem que interroga a partir de um processo de segregação. Achei bem preciosa essa sua colocação. Bárbara traz isso de forma muito crua, o que acontece com o rebotalho do próprio discurso capitalista, esses sujeitos rebotalhos. É uma preciosidade.

Bárbara, lendo o seu trabalho, lembrei muito de Lacan (2005) no Seminário 10. Isso que você nos ensina a partir do trabalho com esses jovens, ao chegar à conclusão de que para alguns a morte não tem inscrição e você lembra que no inconsciente não há a inscrição da morte. Esses sujeitos respondem de várias formas, inclusive alguns, diante da perda de um colega, reverbera a decisão da saída do tráfico. Mas, outros não, estão ali para matar ou morrer. Você vai recolhendo as várias possibilidades a partir das singularidades. Muito interessante a sua proposta de tomar a angústia como instrumento de despertar que leva a esses sujeitos a se perguntar sobre a vida.

Lacan (2005) nos diz no Seminário 10 que o tempo da angústia é imprescindível à constituição do desejo. Ele indica a função da angústia: na hiância entre o desejo e o gozo, a angústia é a mediana (Lacan, 2005). Isso não quer dizer mediadora, mas é a mediana que confronta o sujeito com a exigência pulsional. Isso é muito interessante, como leva a esses jovens a se confrontarem com a exigência pulsional, marcados a partir desse lugar de dejetos, dando a possibilidade, nessa operação, de que algo da causa de desejo possa se constituir.

É através do resto, ‘a’, objeto da angústia, que se abre a dimensão do Outro, como nos indica o fragmento do jovem que cumpre uma medida de internação provisória por haver matado outro jovem. No encontro com a analista, ele fala de um sonho do qual se destaca a dimensão do olhar, objeto através do qual pôde interrogar sobre o que fez com a sua vida. Convoca o olhar da analista para que esta veja as marcas no corpo, as marcas da guerra, e Bárbara diz: “Agora é hora de cuidar do corpo”. Ela sinaliza recuperando a dimensão do falasser político, daquele que tem um corpo. Foi muito precisa essa sua intervenção.

Então, Bárbara, eu relanço uma questão: a angústia é uma mediana entre desejo e gozo; mas existe uma outra mediana que é o amor, só o amor permite ao gozo condescender ao desejo. Como a analista entra aí? A angústia como despertar é o que permite a passagem para o amor, o único que permite ao gozo condescender ao desejo? Então, a angústia pode provocar a entrada de outra mediana?

Vinícius, gostei muito do seu trabalho, ele me instigou muito, fui lá no Seminário 18, exatamente no ponto do seu achado e trouxe o meu. Vou localizá-lo para dialogarmos e para você retomar essa questão.

No Seminário 18, Lacan (2009) introduz a negação do quantificador existencial do lado esquerdo, ou para se pensar o dito lado masculino, lado que é fundado pela exceção, a exceção que funda a regra do todos castrados. Lacan (2009) introduz a negação do quantificador existencial interrogando que proveito podemos tirar disso, no exato momento em que ele introduz também a negação do quantificador universal – ele introduz a negação no existencial e introduz a negação no universal, não-todo fálico. É importante considerar isso e assim eu te interrogo: como o analista opera tendo como orientação a angústia constituída a partir dessa condição de resto, materializada em alguns homens? O que diferencia pensar as masculinidades fora do universal, no lado do existencial, seu achado, e pensá-las a partir do não-todo, este localizado do lado não-todo fálico?

É muito interessante. Recentemente, eu participei de uma banca de doutorado onde aparecia exatamente que essas masculinidades, fora da norma, têm que se pensar pelo não-todo, pela sua articulação com o feminino. E aí você traz esse achado; então, eu queria dialogar com você sobre isso.

Ricardo Seldes: Eu queria continuar com a ideia da guerra. Você falou sobre essa questão; eles estão o tempo todo falando que estão em guerra, achei isso importante. Você mencionou Foucault e ele trabalhou muito sobre a questão da guerra, e, até o fim do século XVIII, as guerras foram guerras de raças. Isso continua. Creio que está sendo dito é que essas são guerras de raças. Você fala sobre a questão dos negros, e nós sabemos que o capitalismo fabrica… temos fábricas de vida, afortunadamente para muitos, mas também temos fábricas de drogas químicas que têm que ser vendidas, que têm que ser compradas. Não só é uma questão de uma oferta que cria a demanda das drogas.

Ao ler o seu trabalho, pensei que o racismo não é somente odiar o gozo do outro, mas que podemos introduzir a ideia de debilidade mental. A ideia de pensar “ou matas ou morres” me parece da ordem de uma debilidade mental. É uma questão que tem a ver com assassinato direto. Uma ideia que, para mim, funciona como uma falsa causa. Então, os adolescentes envolvidos no tráfico de drogas, você disse, se encontram em uma trama social, subjetiva, pulsional e política. Eu achei isso muito bom, pois aparece exatamente o ponto em que nós estamos. Quando você falou desse jovem que fala dos três ‘C’ (cadeia, caixão e cadeira de rodas), eu pensei: para quem isso é horrível? Para quem diz ou para quem escuta? Pois o valor da palavra… creio que não se observa muito o valor da palavra nele, porque a palavra para ele não tem valor, como tem, por exemplo, para você que escuta isso.

Pensei, retomando o que falou Cleide, que possivelmente, nesses sujeitos, não existiu a inscrição de um desejo, sujeitos não desejados. Vocês lembram que Lacan fala que os sujeitos que não foram desejados têm uma tendência ao suicídio, não têm nenhuma outra saída senão matar ou morrer; quer dizer morrer, porque quanto tempo vai demorar, depois de matar, a morrer?

Quando ele fala da guerra, ele fala que matou esse menino porque estava do lado errado da guerra, sem nenhum tipo de pergunta ética, nada, não existe isso. Quando se vê um filme em que se confronta o francês com o alemão, Nada de novo no front[8], na cena em que estão os dois soldados é que se vê a questão: “O que estamos fazendo aqui?”. Em seguida, ‘bum’, o outro é atingido por um tiro. Não existe isso, existe: se não mato, estou morto. Por quê? Porque alguém falou isso, por isso eu falo em debilidade mental, não consegue uma desalienação, uma separação desse dizer.

Vinícius, muito interessante o que você disse sobre a questão da virilidade. Queria pensar a questão de que esses que se colocam desse lado das fórmulas da sexuação, digamos, e que podemos dizer que essa questão da rejeição, que existe em cada um que se localiza desse lado da existência, que não respondem aos cânones estabelecidos, você falou, que são os cânones das normalidades, da norma-macho (norme-mâle). Isso tem a ver com as emissões particulares que cada um faz das suas condições de gozo e do amor. Você fala das condições de gozo e, portanto, eu pensei, por que não falar do amor na questão das virilidades? Por que não pensar nessa questão? Eu estava lendo o que Miller (2008) disse na entrevista, quando perguntam para ele sobre a questão do amor nos homens. Eu achei interessante, porque para amar, como Lacan (2005) diz, é preciso reconhecer a sua falta, a própria falta para oferecer ao outro – se você não aceita a castração, não aceita a falta, não pode amar. Os homens podem fazer disso um semblante divertido, engraçado, ao amar, mas a questão é não deixar se intimidar por isso, ser corajoso frente ao amor; não se deixar intimidar com receio de ficar pouco ridículo ao dar amor a alguém, a uma mulher, que seja. A outra forma que temos, os homens, é a questão da agressividade quando o partenaire, que pode ser um pouco difícil, muitas vezes, quando aparece muito claramente a questão do desejo, como se para se afastar do desejo tivesse que incluir uma reação de agressividade. Ou, ao contrário, quando um homem aparece muito apaixonado por uma mulher, por exemplo, parece sempre um pouco passivo. Então, eu quero propor a você se você não acredita que o amor feminiza os homens da boa maneira.

Carlos Rossi: Interessei-me muito pela sua pergunta: para quem é horroroso o que se escuta? Porque retoma o tema da angústia do praticante. Pensava na perspectiva, talvez otimista, que não sabemos o que é um analista. E nessa clínica, a clínica da borda, da violência, dos corpos, do matar ou morrer, é onde mais aparece esse efeito da angústia no praticante, que dá conta que é preciso inventar a cada vez. Como não se sabe o que é um analista, essa clínica ensina sempre como ser um velho surdo como analista. Inventar, inventar, inventar o tempo todo. Então queria retomar essa questão da angústia do praticante, que me parece um tema central para a formação, é aí onde se apoia, não quando já não há mais angústia. Quando não existe angústia na clínica estamos liquidados. Já sabemos e não há solução.

Antônio Teixeira: Gostaria de fazer um comentário, especialmente ao Vinícius, sobre essa posição do masculino, que é o que a gente pode falar de uma diferença entre haver e existir. “Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay.” Há uma jogada que não existe no jogo de xadrez, que é o movimento horizontal do bispo, quer dizer, o existir é uma regulação discursiva do haver. Então a gente pode dizer que existe o masculino e não existe o feminino. Há o feminino, mas não existe no sentido em que há algo do feminino que faz aversão à regulação do discurso. Eu penso que nessa referência a gente tem uma ideia muito clara do que seria o neutro, que aparece de uma maneira cinematográfica espetacular, do filme que é a versão cinematográfica de A paixão segundo G.H.[9] É o momento da secreção do artrópode que ela tem que se haver ali, que é justamente isso que não tem essa partilha do masculino e do feminino, ou das es, não está colocado nem do lado masculino, nem do feminino.

Chama a atenção o fato de que o feminino, em alemão, se usa o artigo nominativo neutro das weib, e não die. Ou seja, é como se houvesse no feminino alguma coisa que remetesse à antologia do neutro, que eu acho um acesso importante. Em termos de sugestão, eu penso que o Vinícius poderia se beneficiar do filme High Noon, com Gary Cooper e Grace Kelly, não sei se você conhece, Matar ou morrer[10]. É uma história em que o valentão, a virilidade, em que John Wayne faz essa figura brutal da regulação da lei, desaparece para que Gary Cooper, que é o homem frágil, possa ser a sua representação. Acho que isso pode ter alguma coisa que pode ser interessante em sua meditação ontológica sobre o masculino e o feminino.

Fernanda Otoni: Eu também queria entrar um pouco na conversa a partir já da conversação. Chamou-me muito a atenção a marcação que o Ricardo fez na conversa com a Bárbara, quando ele apontou que, de alguma maneira, não saberia de que angústia se trata nessas frases ditas pelos jovens – a Olívia também recupera isso um pouco. Trata-se da angústia de quem fala ou de quem escuta? O Charly recuperou a questão da angústia do lado do praticante, que tem algo ali no que é dito que desperta a angústia no praticante. Aí, de alguma maneira, o Ricardo fez menção de que esses jovens talvez, muitas vezes, não tiveram um Outro do desejo que pudesse de alguma forma incidir aí, para que algo naquilo que ele diz se desperte na relação com o Outro e com a sua própria causa.

Então, me chamou muito a atenção, achei isso muito interessante, porque a angústia do praticante de alguma maneira se articula com o desejo ali em jogo. E é a possibilidade de uma entrada do desejo nessa fala morta e, quando isso se desperta – cito também a conferência do Ricardo –, é a possibilidade de uma abertura da janela para o inconsciente. É a nossa aposta e isso não se faz sem a formação do analista, com a sua própria experiência, para poder ser tocado por aquilo que ele escuta do outro. Então, isso me traz uma dimensão – estou fazendo uma costura com tudo o que essa conversa me tocou aqui hoje, desde o início – sobre a importância da oferta da psicanálise nesse contexto.

Gabriela Grinbaum: Queria fazer uma questão, retomando algo sobre o que Heloísa trouxe, pois me pareceu muito interessante, inclusive como parte de uma epígrafe onde ela situa uma saída contemporânea ou moderna frente à angústia, frente à ansiedade, que rapidamente se instala: o TikTok. Dar-se conta de que isso não poderia ser a solução faz com que a angústia e a ansiedade permaneçam.

Porém, queria trazer uma questão, que me parece que está também, de alguma maneira, em seu trabalho, que é a diferença entre o gozo feminino e o gozo feminino. Não me enganei, isso não é um lapso. É preciso recorrer à análise para tentar, como dizia Ricardo, um enquadre simbólico. Sim, há por um lado o gozo feminino enquanto devastador, aquele que leva as mulheres à loucura; e o gozo feminino, de outra maneira, do lado da citação que você trouxe do testemunho de Graciela Brodsky, no qual está a ideia de que o final de análise para uma mulher é alcançar a terra prometida, ou seja, o gozo feminino.

Então, o gozo feminino é, de alguma maneira, como o colesterol: há o bom e há o ruim. Efetivamente, há algo disso, porque, ao longo de uma análise, por um lado, sim, se chega a algo novo do gozo feminino, o que tentei testemunhar em algum momento, mas também está o gozo feminino que é o pior. É isso. Obrigada.

Antônio Teixeira: Passamos então ao comentário dos outros dois trabalhos.

Cleide Monteiro: Heloísa, eu vou direto à questão do seu trabalho. Eu achei muito interessante essa tentativa de articular, sem sobrepor, como você disse, o feminino e a angústia. Você coloca a fantasia do lado da fortaleza, do lado fálico, e o outro lado, o lado derretido, como você disse, há o litoral, o litoral onde o sujeito circula entre um e outro.

Eu acho muito interessante essa precisão clínica e teórica que Lacan (2005) faz no Seminário 10, de que a fantasia e a angústia ocupam o mesmo lugar na estrutura. Assim, eu fiquei pensando sobre qual o destino da fantasia para um corpo que se localiza mais como corpo que tem o semblante da virilidade, o corpo fortaleza, e aquele sujeito mais imerso na devastação. Freud (2014), no primeiro momento, fala da angústia vinculada à angústia de castração, e Lacan (2005) vai insistir na angústia como sinal de real. O que seria esse sinal de real, pensando nessa articulação da angústia com a castração, a partir de uma possibilidade de pensar na opacidade do gozo? A angústia do lado feminino… coisa que a fantasia talvez não dê conta.

Ricardo Seldes: Eu tinha três páginas para você, Heloísa, mas vou dizer somente que gostei dos quatro trabalhos, de verdade. Quando Miller fala do gozo feminino, ele diz, finalmente, que é o gozo como tal, e o gozo como tal quer dizer que se trata de um acontecimento de corpo. Vou diretamente à questão. O indivíduo é um proletário, nos diz Lacan, que não tem discurso próprio, mas que é sempre um intruso, um intruso no laço social. A segunda coisa da intrusão, que é uma interessante recomendação, quando Miller (2003) fala no curso Experiencia de lo real… em que ele aponta que a intrusão do real no simbólico é a angústia. E isso implica a incidência do tempo na urgência da angústia, isso que estamos falando, a vivificação, fazer de novo existir um antes e um depois – e isso permite ser uma referência também, se quisermos, ao espaço.

Cleide Monteiro: Olívia, eu gostei muito do seu trabalho, eu achei fantástico. Eu queria trazer um pouco a dimensão do pesadelo, isso que você pega lá em Lacan (2005) como o gozo do Outro e que se presentifica nos pesadelos desses sujeitos assombrados pelo racismo: “O que é isso?”. Eu achei isso maravilhoso.

A definição do que é esse “corre”: esse “corre” é a gíria do tráfico, mas é o sujeito que não tem tempo subjetivo e é por isso que lá fora eles não têm como sonhar. Na hora que há uma pausa, paradoxalmente, algo do inconsciente acontece, mas acontece de que perspectiva? Na conversação, em uma escuta que se oferece. Então me parece que não é só porque o sonho é um tempo de parar, não, há a presença da psicanálise que oferece um dispositivo de escuta. Então é um sonho vinculado como efeito desse dispositivo de escuta, como o seu texto nos ensina.

A partir do seu texto, também me lembrei dessa entrada em cena do analista, que permite uma passagem dessa angústia constituída, a partir do pesadelo, para a angústia constituinte. É uma definição muito precisa de Miller (2005), quando ele traz a angústia constituinte como via de acesso privilegiada ao objeto a. Parece que a entrada nesse dispositivo clínico provoca um pouco dessa passagem, servir-se um pouco dessa angústia constituinte, ou seja, do objeto que ela produz. Para Miller (2005), a angústia da qual se trata de se servir é aquela que é sinal do real, a angústia constituinte, da constituída para a constituinte. Eu teria outras questões, mas eu vou deixar por aqui.

Ricardo Seldes: Gostei muito também dessa maneira de oferecer a escuta analítica nesse espaço particular dos quarenta e cinco dias de reclusão. Estão en souffrance, estão em espera, quer dizer que existe algo do tempo que volta a se produzir, que se reintroduz nesses sujeitos que estão em um mundo de atos, de ações, de passagens ao ato, de acting – como quiserem chamar –, que correm e correm, pois “correr” é também dar valor, não é traficar.

É algo muito sutil essa questão de que nesse tempo podem sonhar, ainda que o sonho seja traumático, que desperte. Há uma passagem do gozo ao inconsciente que se produz por existir um analista que escuta, que está à espera de que se produza algo. Esses sonhos produzem essa passagem do gozo ao inconsciente, como Lacan (2003) formula em “Radiofonia”, e poderíamos nos perguntar se eles não aguardam, não esperam serem presos para poder sonhar. Porque, finalmente, eles dizem que quando não estão presos não podem sonhar, não tem esse momento de liberdade que o sonho dá, ainda que para eles há um limite muito profundo, que é esse instante de poderem se dirigir a um outro que verdadeiramente, como dizíamos antes, inclui um desejo e lhes permite passar pela dimensão do desejo. Isso me pareceu fantástico para captar esse ócio, lazer palpitante, que permite, en souffrance, deixar o atemporal para ser novamente temporal, ainda que seja por um breve lapso.

Gilson Iannini: O debate está ótimo, mas, para concluir, eu gostaria de passar a palavra para cada um de vocês – Vinícius, Heloísa, Bárbara e Olívia – para fazer um fechamento. Depois, retomo a palavra.

Vinícius Moreira: Foram muitas contribuições valiosas, Cleide, Ricardo, Antônio. E, na impossibilidade de abarcar alguma, nessa fala breve, gostaria de destacar como existe uma constelação nesse terreno interno à nossa comunidade, a multiplicidade dessas configurações.

Pensar o amor nas virilidades, como ponto que pressupõe uma certa travessia do embrutecimento que o apego à fantasia produz, foi algo que me interessou muito no passo breve que dei para chegar ao ponto em que estou agora nessa pesquisa, que é um segundo momento, uma pesquisa de doutorado. A minha pesquisa de mestrado tocou essa ideia de travessia da virilidade, nesse sentido de um certo consentimento com a castração para poder acessar o que se encontra mais além do falo na trajetória analítica dos homens. Mas, ao mesmo tempo, isso me abriu o campo de pensar as masculinidades que não estão abrigadas, dessa mesma forma, sob esse semblante da virilidade, ou que não se amparam da mesma maneira nessa estrutura da virilidade enquanto fantasia. Então, isso abre o campo, como a Cleide sublinhou, desses homens enquanto posição de resto, do que é preciso eventualmente se separar, se destacar disso que chega a partir do laço social, como sendo alguns nomes do pior, nomes do resto, como o insulto “preto” no caso de Fanon (2008), “bicha” no caso de Édouard Louis. São elementos que, de alguma forma, fixam o sujeito, eventualmente, em um lugar de desamor, ou da impossibilidade de contar-se um entre outros. Existe essa passagem em Lacan de que um homem se faz homem por contar-se um entre os outros, por entrar entre os seus semelhantes. Parece-me que há esse gesto de exclusão, em certas situações subjetivas, que produz essa condição à margem em relação ao próprio terreno da masculinidade, a ponto de Fanon dizer “o negro não é um homem” (Fanon, 2008, p.26). Então, há algo que fica nessa borda, percorrendo uma certa constelação desse terreno.

Então, gostaria de agradecer pelos comentários de vocês, porque, de alguma forma, eles também ressaltam essa pluralidade de posições que compõem esse campo. Agradeço pela leitura cuidadosa.

Heloísa Bedê: Eu também gostaria de agradecer pelos comentários. Foi uma surpresa grande poder anotar aqui algo sobre “o colesterol” hoje. Então eu queria agradecer primeiro pelo comentário da Gabriela. Falando um pouquinho daquilo que todo mundo trouxe, de fato existem essas duas formas. Talvez elas não sejam tão radicais, tão separadas assim. É possível transitar entre elas, o que diz da própria estrutura do não-todo, ele tem essa bifurcação de estrutura.

Mas, o que eu acho interessante sobre a fantasia, quando o sujeito chega muito devastado na análise, é o fato de ser preciso quase que fazer essa construção primeiro, falicizar um pouquinho, construir algo da organização da fantasia para depois poder operar alguma coisa, para talvez deixar algo dessa ordem cair.

É interessante porque aí vem o bem-dizer a angústia; não se trata de eximi-la, mas talvez de poder dar um lugar para ela. Nesse sentido, penso em um caso que resume bem isso. Uma paciente que chega se queixando de um buraco no peito que se abria de vez em quando, e, como saída, ela tomava traços do pai, que era um pai bruto, ela usa essa palavra. Tentava embrutecer para se proteger diante disso que acontecia. Quanto mais bruto, mais estrondosas eram também essas manifestações. Em análise, foi possível ir descascando, quase, esse significante e ficar com o gesto que ela faz com o corpo. Quando ela falava do bruto, levantava e erguia o corpo. Ela começou a entender que talvez seja menos o bruto enquanto essa armadura, mas um ponto do amor ao pai o que permitiria a esse corpo ter uma inscrição em um outro lugar.

Então, me interessa muito a estrutura dessas passagens, pensando justamente o feminino enquanto o gozo como tal. Acho que ele é a condição para podermos pensar testemunhos como o da Graciela Brodsky (2021) e, nessa passagem, um bem-dizer com o feminino também a partir daí.

Ana Lúcia Lutterbach: Só uma palavrinha, pois eu acho bom não esquecer que tem o colesterol bom e o ruim.

Antônio Teixeira: Eu acho interessante, pois é uma questão de uma dosagem da angústia, como a dosagem do colesterol.

Bárbara Afonso: Eu gostaria de agradecer a todos. Para mim essa mesa foi essencial, inclusive porque eu já estou com essas questões sobre os adolescentes há muito tempo. O que me ocorreu foi que me deparo cada vez mais com esses adolescentes que têm uma certa certeza desse lugar de dejeto e, cada vez mais, se entregam a esse destino em torno do ponto da morte. Inclusive, é a questão com a qual estou às voltas agora: como pensar essa ideia do destino? Enfim, vou trabalhar um pouco nesses pontos.

Mas foi importante para mim o que dissemos sobre o que é a angústia do praticante e o que é a angústia do sujeito. Eu sempre saio com uma questão em torno da palavra, uma vez que me parece ser preciso uma abertura para algo do valor da palavra ganhar uma outra dimensão no simbólico. Quando isso é horrível para quem escuta e, para mim, muitas vezes é… quando isso é repetido com uma fala sem um peso, sem um valor simbólico colocado, penso que é um desafio.

Uma das coisas boas desse encontro aqui é pensar que há sempre um ponto de invenção, tem que ter sempre um desejo decidido de quem pratica para que se possa ter uma abertura ao Outro da palavra e do amor.

Eu queria falar bem rapidinho sobre o caso desse adolescente. Eu consegui encontrar com ele mais umas duas vezes e, na segunda vez, fazendo um recorte bem rápido, ele fala que o coração dele é de ferro. Tudo é de ferro, o coração é ferro. Ele entra em uma lógica só do ódio, estava em um certo conflito com os agentes socioeducativos e queria, ainda assim, falar comigo. Quando ele chega, disse que não queria falar nada, eram eles que falaram que ele queria falar. Então, diz que “no mundão”, como eles falam, “na guerra”, ele era só ódio, que ele estava sempre nesse circuito e que ali dentro ele era só ódio. Então, eu marco para ele, de alguma forma o indago sobre o que se faz com isso, já que ele disse que “se está lá fora ou se está aqui dentro está tudo igual”. Ele começa a falar de paz, “preciso de um pouco de paz”. Retoma o ponto da família, que entra na dimensão do amor, fala da mãe e de uma outra coisa, que é a única coisa que lhe dá um pouco de paz, que diminui um pouco esse excesso do ódio que transborda nele.

Gostaria de agradecer a todos, porque essas orientações foram importantes para eu seguir com a minha angústia, colocando-a a trabalho e não me paralisando, como já foi em outros tempos. Obrigada.

Olívia Viana: Queria agradecer também pelos comentários, achei interessante como essa questão da temporalidade surgiu em ambos os comentários: a instauração de um tempo subjetivo. Creio que isso é algo sobre o que preciso me debruçar um pouco mais na pesquisa. Também achei bonito quando a dimensão do amor surgiu como direção para diversos trabalhos e, nesse sentido, dá para pensar na instauração de alguma transferência, de algum ponto transferencial a partir da oferta.

Vocês falaram dessa mobilização do sonho, o despertar do sonho que a oferta da conversação e do dispositivo analítico possibilitariam. Mas fiquei pensando também no efeito que se tem entre eles, no laço entre eles, por exemplo. Na semana seguinte, depois de uma conversa sobre sonhos, um menino grita quando eu entro, lá de longe: “Ah, a moça que conversa sobre o sonho!”. Outro jovem que não estava anteriormente vem e eles contam que durante a semana compartilharam entre si relatos de sonhos e interpretações. Eu fiquei pensando nessa dimensão de reverberação do amor no laço e agradeço muito.

Fernanda Otoni: A partir do desejo do analista, da oferta da psicanálise, deslocou, mudou de assunto.

Cleide Monteiro: Fantástico! Não estão conversando sobre a guerra, mas sobre sonhos.

Ricardo Seldes: E amor também.

Cleide Monteiro: E laço.

Gilson Iannini: Agora que está acabando, eu gostaria de agradecer. Agradecer à Cleide, fiel escudeira na RUA (Rede Universitária Americana) e falar de uma coisa que discutimos lá, ao longo deste último um ano e meio e que se demonstrou muito bem aqui hoje. Tem um pouco mais de um ano que estamos trabalhando juntos, com uma série de coisas, e uma das conclusões a que chegamos, as pessoas das três Escolas que trabalham na universidade de alguma maneira, é que temos que ter muito cuidado com a forma como falamos, às vezes, nas Escolas, nas instituições, desqualificando o trabalho que é feito com psicanálise na universidade.

Escutamos muito isso: “Ah, isso é universitário”, como se isso não fosse analítico, como se isso não fosse psicanálise. Eu acho que os trabalhos, nessas duas mesas que tivemos aqui hoje, mostram que é possível criarmos dentro do espaço da universidade furos, lugares de exceção, lugares de intervalo, com todas as dificuldades que há para que alguma coisa do desejo do analista surja e que os discursos possam circular, os vários discursos. Não é porque estamos na universidade que o que prevalece é o discurso universitário e não há nada que garanta que, estando dentro do espaço físico de uma Escola, de uma instituição, que ali está o discurso analítico. Ou seja, é muito importante conversarmos um pouco mais sobre essa desqualificação que, muitas vezes, fazemos da universidade, porque o preço que a gente paga por isso, com uma espécie de “fogo amigo”, é muito grande. Apanhamos muito para trabalhar com a psicanálise dentro da universidade em um contexto totalmente adverso. O “fogo amigo” aí realmente não ajuda.

Então, talvez, possamos espalhar um pouco disso, que foi possivelmente um dos pontos mais conclusivos a que chegamos, uma conclusão de mais de cem pessoas que estiveram em nossos eventos em que discutimos isso, e também dessa mesa aqui hoje, com a participação de vocês.

Gostaria de agradecer a todos e a todas que estão aqui, pela possibilidade de abrir esse espaço para a psicanálise na universidade, nesse furo que a gente cria dentro.

Ricardo Seldes: Temos que agradecer a você, especialmente.


REFERENCIAS

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  • Lacan, J. (2009). O Seminário, livro 18: De um discurso que não fosse semblante. Zahar. (Trabalho original publicado em 1971)

  • Lacan, J. (2011). O Seminário, livro 19: …ou pior. Zahar. (Trabalho original publicado em 1971-1972)

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[1]              Segundo o Atlas da violência (2019), foi realizada uma análise do período entre 2009 e 2019. Constatou-se que a cada dezessete minutos morre um jovem negro no Brasil. Já o relatório da Vara Infracional da Infância e da Juventude de Belo Horizonte (2021) trouxe estes dados alarmantes: 84% dos adolescentes e jovens vítimas de homicídio eram negros, sendo 97,37% do sexo masculino.

[2]              Ainda que Freud tenha desenvolvido essa concepção ao se referir à Primeira Grande Guerra, no contexto de vida dos adolescentes negros envolvidos no tráfico de drogas, as violências e as mortes são frequentes. É possível uma aproximação quando temos notícias de que no Brasil se mata mais do que na guerra na Síria (“A violência no Brasil mata mais que a guerra na Síria”, 2017).

[3]              Na expressão dos adolescentes, a tentativa de autoextermínio é nomeada como “pular na tia”.

[4]              Fragmentos clínicos.

[5]              “‘Desembola na Ideia’ é uma gíria juvenil brasileira que nomeia um projeto clínico e social em Belo Horizonte, desde 2008, que conta com uma estrutura de atividades que inclui conversação, ateliês de arte e tratamento psicanalítico individual na abordagem de adolescentes em situação de grave vulnerabilidade, negros e pobres, envolvidos com o tráfico de drogas, com histórico de abuso de substâncias psicoativas e em cumprimento de medidas socioeducativas da Justiça” (Greco, s/d.).

[6]              Fragmentos extraídos de conversações realizadas em um Centro de Internação Provisória em Belo Horizonte, no âmbito do projeto Desembola na Ideia, entre 2022 e 2023.

[7]              Também em português, pesadelo, e em espanhol, pesadilla, há a presença do pesar como força que incide sobre o corpo do sonhador.

[8]              N.E.: Há duas versões do filme, ambas baseadas no romance Nada de novo no front, de Erich Maria Remarque, de 1929: Sem novidade no front, dir. Lewis Milestone, 1930, 152’; Nada de novo no front, dir. Edward Berger, 2022, 148’.

[9]              N.E.: A paixão segundo G.H., dir. Luiz Fernando Carvalho, 2023, 126’.

[10]             N.E.: Matar ou morrer, dir. Fred Zinnemann, 1952, 115’.