A psicanálise como resposta ao real de hoje
Éric Laurent
Psicanalista Membro (AME) das seguintes escolas que compõem a Associação Mundial de Psicanálise (AMP): ECF, ELP, SLP, EOL, EBP, NEL, NLS. Doutor o terceiro Ciclo de psicanálise, cuja disciplina estudou com Jacques Lacan. Presidente da Associação Mundial de Psicanálise (AMP) no período 2006-2010. Ensina na Seção Clínica do Departamento de Psicanálise de Paris VIII.
Email: ericlaurent@lacanian.net
RESUMO
A presente conferência propõe uma leitura da psicanálise como resposta ao real de hoje, considerando-o como aquilo que faz sintoma, o que se repete, que se impõe, sobre o que o sujeito falante não tem controle e que o faz sofrer. Mas é, ao mesmo tempo, no que o sujeito crê. A resposta da psicanálise a esse real, através da palavra, interrogando a conexão do sujeito com o sintoma, permite a Lacan esclarecer as novas formas do mal-estar na civilização, denunciado por Freud, e também delimitar seu fracasso a partir de um programa civilizatório que acentua o imperativo do supereu em sua forma insaciável. A conferência busca, então, extrair duas consequências dessa perspectiva de definir uma conduta a partir do impossível. A primeira, referida à função do pai após o patriarcado; a segunda, situando a importância para a época da solução trans.
PALAVRAS-CHAVE: real; sintoma; mal-estar na civilização; patriarcado; solução trans.
ABSTRACT
This lecture proposes a reading of psychoanalysis as a response to today’s real, considering it as that which produces a symptom – something that repeats, imposes itself, escapes the control of the speaking subject, and causes suffering. Yet it is also what psychoanalysis believes in. The psychoanalytic response to this real, through speech and by interrogating the subject’s connection to the symptom, allows Lacan to shed light on the new forms of discomfort in civilization, previously denounced by Freud, and to delineate its failure through a civilizing program that intensifies the superego’s imperative in its insatiable form. The lecture seeks, therefore, to draw two consequences from this perspective of forging a conduct from the impossible. The first concerns the function of the father after patriarchy. The second highlights the relevance of the trans solution in our era.
Keywords: the real; symptom; discomfort in civilization; patriarchy; trans solution.
Durante minha última visita presencial à UBA para uma conferência internacional, em 2019, pouco antes da pandemia, apresentei o que está em jogo para a subjetividade contemporânea na era do sinthome tal como foi descrita no ensino de Lacan. Hoje, a tentativa é a de prolongar aquela conferência, cinco anos depois e após muitas rupturas. Nesse momento em que a UBA está ameaçada, devo enfatizar ainda mais até que ponto as diferentes visitas que fiz à sua Universidade, desde 1981, e a acolhida que sempre recebi têm sido momentos privilegiados para mim na transmissão da psicanálise.
Antes de continuar, vou explicar meu título e trazer uma precisão sobre o que falamos quando falamos do real no sentido de Lacan. Trata-se do real para o sujeito falante, isto é, aquilo que para ele faz sintoma, o que se repete, o que se impõe, sobre o que não tem controle e lhe faz sofrer. É, também, aquilo em que crê. A psicanálise responde a esse real, oferecendo-se para decifrar essa crença através da palavra. Como dizia Lacan (1975, pp. 109-110): “Aquele que nos chega com um sintoma, crê nele. Se nos pede ajuda, nossa assistência, é porque acredita que o sintoma é capaz de dizer algo e que basta apenas decifrá-lo”.
Essa conexão do sujeito com o sintoma permite a Lacan esclarecer as novas formas do mal-estar na civilização, denunciado por Freud (1930/1976). Constata o fracasso do programa da civilização para reprimir as pulsões. Tudo o que este programa fez foi acentuar o imperativo do supereu em sua forma insaciável. Exige cada vez mais, e o programa de renúncia e mortificação é interminável. Lacan confrontou-se com um supereu diferente daquele que Freud conheceu: o supereu da época permissiva. Esse supereu é igualmente insaciável, não cessa de exigir: Goza!
Esse imperativo pode ser ouvido no consumismo sem limites, na pornografia generalizada, na procura do prazer mais poderoso, da droga definitiva, d’A Substância (Fargeat, 2024) – como está representada no último filme de Demi Moore. Nessa perspectiva, temos fenômenos clínicos cada vez mais acentuados, que se alternam entre as adições mais frenéticas – pensemos nos escândalos de gozo conhecidos sob os nomes de Harvey Weinstein, Puff Daddy, La manada, ou, na França, Pellicot – e nos isolamentos do mundo mais marcantes, como a dessocialização adolescente em todas as suas nuances, desde os hikikomoris[1] japoneses, até os assexuais e uma ampla variedade de ascetismos. Seguimos, dessa maneira, os dois caminhos da pulsão – excessos e retenções –, violência contra as mulheres ou contra si mesmo.
Esses dois movimentos, essa pulsação, participa da crença no gozo sem fim. Diante dessa crença, Lacan opõe a crença no sintoma como partenaire e diz que nossa época pode ser a da crença no sintoma. O sintoma partenaire, como foi chamado por Jacques Alain-Miller (2008), como meio de gozo, dá forma e um ponto de parada à busca desmedida do gozo, civiliza-a.
Lacan (1972-1973/1985) começa seu seminário Mais, ainda dizendo ao seu auditório que irá supô-los na cama: “uma cama de pleno uso, uma cama para dois” (p. 10) e depois contrapõe o Um do amor e do significante ao Um do gozo. No plano do gozo, como sublinha Jacques Alain-Miller (1998, p. 104), “[…] a relação do parceiro supõe que o Outro torna-se o sintoma do falasser, isto é, torna-se um meio de seu gozo […] um modo de gozar primeiramente do inconsciente, do saber inconsciente, da articulação significante […] em segundo lugar, é um modo de gozar do corpo do Outro […] o corpo do Outro é tanto o corpo próprio como o corpo de outrem”. O corpo do outro é meio de gozo do corpo próprio. E disso vamos ter que nos “desembaraçar” (Miller, 2008).
A identificação com o sintoma define um savoir faire, ou um savoir y faire com o parceiro sexual como meio de gozo no encontro sempre contingente entre os corpos (Lacan, 1976, p. 6). No “se virar com isso” (débrouillage), Lacan inclui tanto as práticas eróticas de manipulação dos corpos, a maneira como os marcamos, quanto a maneira pela qual extraímos os objetos pulsionais, os objetos a, do corpo do outro. Mas esse saber fazer com o sintoma não exclui a crença no “meio de gozo” que é o corpo falante do outro.
O partenaire sintoma fala, está “animado por uma vontade de falar” (Miller, 1997, p. 10). E isso é muito sensível, especialmente do lado feminino, em que o partenaire sintoma toma a forma da erotomania, de um estilo erotomaníaco. Nesse sentido, a perspectiva do sintoma parceiro reúne o gozo do próprio corpo e o corpo como lugar do Outro.
Freud (1905/1976) estabeleceu que a libido masculina, ligada ao falo, estava marcada por uma falta radical, a castração. Essa falta revelou-se como o ponto de real do mito da relação com o pai do complexo de Édipo e o de Totem e tabu (Freud, 1913/1976), autorizando o acesso a todas as mulheres. Lacan generaliza a castração freudiana assinalando que o encontro-desencontro entre os sexos no nível do significante se estabelece pela relação com o significante fálico. Chama-o de ponto de mito na relação entre os sexos. A identificação feita por Freud da libido masculina com o instrumento fálico faz com que, citando Miller novamente, “os seres sexuados [tenham] uma relação diferente com o falo segundo sejam homem ou mulher” (Miller, 2008, p. 410, tradução nossa). Essa é uma versão, a versão freudiana do não há relação sexual.
É uma forma de dizer que só existe relação significante com o falo. Para Freud, o falo era uma solução. Ele assegurava a representação, o visível do sexo. Em contrapartida, para Lacan, o falo, em seu gozo obstáculo, impede que os sexos se falem de maneira conclusiva. Assim, Lacan sustenta que a solução para o beco sem saída da relação entre os sexos é estabelecer, no discurso, um encontro com a relação sexual impossível. Enquanto Freud via a contribuição da psicanálise na introdução do rochedo da castração, Lacan vê, antes, uma solução no fato de restabelecer uma lógica do impossível. Não apenas levando em conta a significação fálica, mas também o par sexual como tal, para além da dialética fálica. Em “L’étourdit” – “O aturdito” –, Lacan (1972/2003, p. 489) propõe “criar uma conduta [sexual] para si”, baseado no impossível e não mais na significação fálica. Gostaria de extrair duas consequências dessa perspectiva de criar uma conduta a partir do impossível.
Primeiramente, sobre a função do pai após o patriarcado. Em segundo lugar, situar a importância, para a época, da solução trans, que é uma das possíveis condutas sexuais.
O pai após o patriarcado
Lacan, em sua redução lógica da função paterna, primeiro pluralizou os nomes do pai e depois considerou que essa pluralização permitia a redução do pai, mais além de seus nomes. O pai é reduzido ao valor da realização de uma variável de uma função, um por um. Essa nova perspectiva é formulada no Seminário 22, intitulado RSI. Cito-o: “Um pai tem direito ao respeito, senão ao amor, apenas se dito amor está orientado por uma pèreversion, uma pai-versão, quer dizer, que faz de uma mulher o objeto a que provoca seu desejo” (Lacan, 1975, p. 107). Cruzam-se, assim, o estilo fetichista do desejo masculino com o mais além da posição desejante, a posição paterna. O pai da pai-versão situa-se no nível da particularidade de seu sintoma, da particularidade de seu gozo, ao contrário de toda a potência que implicava o nome de Deus no mito de Totem e tabu. Na nova perspectiva, o pai não tem acesso a todas as mulheres, é considerado na forma pela qual tem acesso a uma, e isso se faz sem garantia. É suficiente ressaltar que a pèreversion – a pai-versão – consiste em que o desejo do pai esteja ligado a uma mulher como única. Temos aqui uma valiosa indicação para situar o lugar do pai nas famílias recompostas ou supercompostas, para além de toda norma ideal.
No Seminário 19, Lacan (1971-1972/2012) constrói, de várias maneiras, a lógica de um pai que pode ocupar seu lugar depois do patriarcado (Miller, 2022). Ele conclui seu Seminário inventando um novo verbo para caracterizar a posição desse pai. O verbo que inventa é o verbo em francês unier. O pai assim definido seria um pai que unie; em francês, unier é um verbo que joga com a homofonia entre juntar, unir, e negar, nier. Poderia ser traduzido por unegar. O novo pai é um pai que unega, que nega o universal e centra-se sobre a unicidade, produzindo-a. Cito Lacan:
Em tudo isto, não lhes falei em absoluto do pai, porque considerei que isso já lhes tinha sido suficientemente dito e explicado, ao lhes mostrar que é em torno daquele que unia, daquele que diz não, que pode basear-se, que deve basear-se, que não pode deixar de se basear tudo o que há de universal. E, quando voltamos à raiz do corpo, se revalorizarmos a palavra irmão, […] saibam que o que vem aumentando, o que ainda não viu suas últimas consequências, e que, por sua vez, se enraíza no corpo, na fraternidade do corpo, é o racismo (Lacan, 1971-1972/2012, p. 227).
Assim, ao final do Seminário 19, Lacan nomeia ‘o pior’, contra o qual se dirigiu ao longo do ano: o racismo que vê chegar nos anúncios dos anos 70 e suas esperanças. Finalmente libertos dos pais, íamos ter uma sociedade de irmãos com o problema de saber como é que esses irmãos iam se arranjar com as irmãs. Lacan nos lembra que os irmãos não podem existir sem o corpo, sem a inscrição do gozo no corpo, e, por isso, vaticinou uma luta entre comunidades de gozo, o que chamou, à época, o pior. É preciso dizer que, desde 1972, os últimos cinquenta anos têm visto as diferentes facetas da afirmação de Lacan se esclarecerem, até que, hoje, a perspectiva comunitária e a política das identidades nos permitem atualizar a perspectiva de Lacan sobre o pai. O pai que unega é o que diz não ao Todo, ao Todo das mulheres, é o que diferencia, o que não confunde o gozo de todas as mulheres. Aqui é onde, após o patriarcado, entra em jogo a possibilidade de um pai que une e funda, sobre a diferença mesma dos gozos, o universal, através da diferenciação, da não-confusão de todos os gozos. É ele quem suprime o mito de todas as mulheres ou as mulheres Todas.
- A solução trans
Passemos à segunda consequência que podemos tirar desta orientação de Lacan para o real de hoje. É a importância e a fascinação da solução trans, para além do falo, em nossa civilização.
O modo da ex-sistência do pai em sua função é o mesmo que o da inexistência da mulher, que apenas se pode encontrar uma por uma. Ambos são instrumentos que desfazem o mito do Todo. Mas, para que isso aconteça, supõe-se que o lugar do pai e o da mulher devam permanecer vazios, não devem ser encarnados. O pai, como disse Lacan (1974/2003) em seu texto do comentário de O despertar da primavera, deve manter-se como máscara. Uma das tentações de nossa época é buscar uma encarnação da máscara que poderia combinar os dois sexos para nomear o gozo como tal. É aí que reside o fascínio pela solução trans.
Nessa solução realiza-se um desejo de encarnação, que é um erro lógico em duas etapas. Num primeiro momento, diz Lacan, a posição do sujeito transexual apoia-se ou se fundamenta no “erro comum”, o erro lógico de encarnar a diferença sexual, que é puramente um fato de discurso, em um órgão. Cito-o: “[…] a pequena diferença que passa enganosamente para o real por intermédio do órgão” (Lacan, 1971-1972/2012, p. 17). Não é que a solução trans seja um erro, ou, se o for, é como as outras condutas sexuais, participa do erro comum. A particularidade da solução trans é que, em um segundo momento, tendo se submetido ao erro comum, nasce para ele uma paixão particular, segundo Lacan: “Sua paixão, a do transexual, é a loucura de querer livrar-se desse erro, o erro comum que não vê que o significante é o gozo e que o falo é apenas o significado” (p. 17). Lacan fala nesse ponto de paixão e loucura. A liberação desejada pelo transexual aponta ao órgão como medida comum, do qual seria necessário separar-se. O erro lógico é “querer forçar pela cirurgia o discurso sexual, que, na medida que lhe impossível, é a passagem do real” (p. 17). Aqui se lê a distinção entre a passagem “do real” e a passagem “ao real”. A passagem do real, como dizemos ‘a passagem de um tufão’, é o impossível da relação sexual no discurso. O erro lógico é querer inscrevê-lo passando “ao real”.
O sujeito transexual, por sua paixão de passar para o outro lado, essencializa a diferença sexual e faz existir a identidade de um lado e do outro, sem levar em conta a alteridade radical do gozo feminino. Por isso, o transexual que se submeteu à cirurgia não se importa se a prótese peniana ou vaginal produz sensações; não se trata de uma paixão sensual, vai além disso, sempre haverá sensações suficientes. É uma paixão pela encarnação.
Trata-se também do que ocorre coletivamente na fascinação pelo paradigma trans: é uma forma de encarnar o mistério da máscara do gozo fálico que se interpõe. Nesse sentido, a solução trans como work in progress, obra em andamento, faz parte de um processo de corporização da infinitude, a realização do imperativo superegoico do gozo por vir. A exigência da transição real mediante hormônios e/ou cirurgias é um processo que nunca se detém, você se converte em Testo Junkie, seja porque você gosta, como Paul Preciado (2018), ou porque se arrepende, como a destransicionista Keira Bell. A substituição do corpo transicionado pelo gozo fálico recusado é uma metáfora que só se estabiliza ad infinitum.
Na transformação suficientemente realizada, o sujeito pode muito bem propor para si o casamento e o ideal da família, o que pode unir os parceiros num ideal partilhado de maternidade[2]. Podemos encontrar on-line um relato desse tipo de trajeto na apresentação das atas de uma mesa-redonda de ativistas transexuais, na qual os participantes se apresentam, por exemplo, desta maneira: “Sou psicólogo britânico, membro da Sociedade Australiana de Psicologia e da Associação de serviço social, conferencista autista, ativista, investigador, escritor e poeta. Sou um pai transexual autista com filhos e netos autistas.”[3] Outro participante apresenta-se assim: “Sou uma doutora queer branca em psiquiatria infantil e pesquisadora pós-doutoranda no Centro de Experts de Disforia e Gênero em Amsterdam. Do ponto de vista pessoal, meu parceiro é uma pessoa autista, diagnosticada tardiamente etc.”. Essas apresentações do eu e da autodeterminação do sujeito mostram como a busca da identidade do sujeito não é apenas perseguida por meios químicos e cirúrgicos, mas a militância também faz parte dela.
O ponto de vista dos entusiastas é ignorar o risco para a homeostase do organismo da transição sem fim, perigos que os médicos suecos do Hospital Karolinska[4] destacaram. A busca da identidade autodeclarada seguirá sendo assintótica. O desejo incessante de criar um corpo que possa lhe responder é uma procura que apenas a morte pode resolver.
Vou concluir assinalando que a política da identidade sexual coloca a ênfase na satisfação e na identificação entre o gozo e o reconhecimento narcisista. A autodeterminação do sujeito em sua identidade sexual garantiria a adequação entre a fantasia e o objeto de satisfação. Assim, a identidade sexual poderia ser definida como um objeto plenamente satisfatório, e é isso que tem sido questionado pelo discurso analítico desde sua fundação, desde a obra de Freud, intitulada “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, um work in progress iniciado em 1905, que sofreu numerosas reelaborações e que revela uma causalidade em dois tempos, marcada por uma ruptura entre causa e efeito.
O objeto ao qual se visa na idade adulta está marcado pelos primeiros encontros com a pulsão na infância – o objeto para o qual a pulsão oral aponta e do qual é separado pelo desmame. Essa causalidade em dois tempos é assinalada por Lacan em seu primeiro comentário do Seminário 4 sobre os “Três ensaios”:
Freud insiste no seguinte: que [de] toda maneira, para o homem, […] trata-se de um objeto perdido, de um objeto a se reencontrar […] o objeto que foi inicialmente o ponto de ligação das primeiras satisfações da criança. É claro que uma discordância é instaurada pelo simples fato dessa repetição (Lacan, 1956-1957/ 1995, p. 13).
O que é irreversível é que o objeto será sempre não encontrado, mas redescoberto (wiedergefunden) e permanecerá marcado por uma discordância entre o objeto descoberto e o objeto buscado. Este é o escândalo do discurso analítico. Não é que Freud tenha falado, de entrada, sobre o sexual. Muitos faziam isso em sua época, ao menos Havelock Ellis e toda uma corrente de estudos sobre a sexualidade. O escândalo revelado por Freud é, sobretudo, que o objeto sexual é fundamentalmente inadequado, dividido, apresenta uma dificuldade essencial de ordem interna. Isso continua sendo o escândalo da nova causalidade introduzida pela psicanálise e continua a ser o que define o real com que se confronta a época e, com ela, o discurso da psicanálise, que não cessa de reinventar novas respostas ao mal-estar do sexual com o qual a civilização continua se deparando.
A repetição está vinculada à causalidade sob a forma de um furo na cadeia dos efeitos, como salientamos na última sequência das últimas Jornadas da ECF, com François Ansermet e Jacques-Alain Miller[5]: “resta essencialmente na função de causa um certo vazio […] existe um furo e algo que vem oscilar no intervalo. Em suma, só existe causa para o que manca (ce qui cloche[6])” (Lacan, 1964/1988, p. 27). É a esse real, em todas as suas formas, que a psicanálise não cessa de responder.
Obrigado por sua escuta.
Debate
Inés Sotelo: Bem, aqui os aplausos soam muito vibrantes, estamos muito emocionados. E, como Fabián Naparstek disse na conferência anterior: os e as estudantes… têm a palavra. Uma aluna perguntou “Onde eles irão nos escutar?”, bem… este é o momento: tomem a palavra!
Estudante: Olá, boa tarde, como vai? Quando o senhor falou da solução trans, algo não ficou claro. O senhor disse que o radical do gozo não é algo sensual, e fiquei com a dúvida se isso implica uma dessexualização do órgão sexual, ou seja, que ele se torna uma zona de queda ou zona dessexualizada.
Éric Laurent: Depende. É uma pergunta muito boa. Depende do que chamamos de sexualidade. Seria muito difícil, quando se vê, às vezes, a insistência, a repetição da insistência de um sujeito trans para ter uma prótese, seja de pênis ou de vagina. Seria muito difícil dizer ao sujeito que não é algo sexualizado, quando considera que sua identidade sexual passa por isso. Mas, ao mesmo tempo, não podemos deixar de notar que essa prótese não trará qualquer satisfação. Não sabemos como fazer isso nesse momento; a cirurgia não sabe como fazer próteses que possam proporcionar satisfação. Pode proporcionar satisfação ao outro e precisamente assim se articula o próprio corpo e o corpo do outro. Então vemos que não há sensação, e, ao mesmo tempo, há uma sexualização. É precisamente isso que nos interessa marcar da posição trans em sua radicalidade, que questiona a relação entre a posição sexuada como tal e as sensações vinculadas ou não a um órgão.
Estudante: Eu tenho uma pergunta sobre o real para Lacan. A princípio, eu entendia o real como aquilo que não tem representação, então o articulava com o inconsciente estrutural freudiano. Mas, se o real, como entendi no início, se repete e faz signo para o sujeito, então, tem que haver uma cadeia significante antes do real? Não entendo bem onde ela se instaura.
É. Laurent: Muito bem, vamos tentar esclarecer isso. É verdade que o real é uma palavra que equivoca em Lacan, ou seja, tem um certo número de definições. Seu ponto de partida, o real que não tem representação, parece-me excelente: é um impossível; o que é impossível de representar, de nomear. Mas, ao mesmo tempo, nesse sentido, o sintoma em sua própria repetição, em sua repetição que não cessa – e que não cessa mesmo após o final de uma análise em que há restos sintomáticos –, tem uma dimensão de impossível no sentido de não cessar de se escrever. Mas não é o todo do sintoma; o sintoma tem uma envoltura formal. Há uma conexão entre o que é o real do gozo, que, efetivamente, não tem representação, o objeto a, fundamentalmente metonímico e fugaz, não tem representação, passa através de todos os esforços de representação. Então, o sintoma tem, ao mesmo tempo, um ponto de real e uma forma imaginária; posso me queixar de um sintoma que tem uma forma imaginária e tem um envoltório significante. Nisso Lacan foi além do que era o mito da pulsão freudiana. Lacan disse que é nosso mito, por quê? Era um mito porque era uma articulação entre algo do nível biológico, dizia Freud, e algo do verbal. Pode-se falar do sintoma como algo que pode ser decifrado. O objeto a é a tentativa de ir além do mito da pulsão, e Lacan, inclusive, conclui que o gozo não tem representação, mas tem uma consistência e essa consistência pode ser escrita. Isso está nos últimos desenvolvimentos, mas vamos ver as etapas, primeiro dar uma forma, um enforme com o objeto a, às manifestações ou, como disse Lacan, às substâncias episódicas do gozo, e, finalmente, ter um modo de escrita, da consistência do gozo, que é outra coisa que a representação, é verdade, é, antes, a escrita da falta de representação.
Inés Sotelo: Uma última pergunta.
Estudante: Retomo sua resposta anterior. O senhor disse que, no caso da solução trans, a prótese é sexual, sem dúvidas, mas não há satisfação. Minha pergunta é se a satisfação é sempre no corpo. E, se a satisfação não é nesse lugar, pode-se produzir em outro lugar do corpo?
É. Laurent: Também uma excelente pergunta. Não é tanto que não haja satisfação, não há sensação, o que é diferente. O sujeito diz que está satisfeito com isto e, claro, a sensação ou a satisfação pode vir de outro lado, por exemplo, com o uso de drogas. Nas práticas chamadas the chem sex – o sexo químico – tenta-se articular o que é sexual com a satisfação que vem de outro lugar, do corpo como tal sob uma substância. O chem sex é uma maneira de interrogar o laço entre a satisfação sexual e a satisfação como tal do corpo. E essas práticas também nos permitem entender como as coisas se articulam na solução trans e no chem sex. Podemos compará-las e ter uma ideia de como se questiona a articulação entre a satisfação sexual e o órgão, e o mais além do órgão nessas duas abordagens, ou essas duas condutas sexuais, como dizia Lacan.
I. Sotelo: Muito obrigada a todos e a todas, e obrigada aos estudantes, muito boas as perguntas. Vamos embora muito felizes.
É. Laurent: Até breve!
Estabelecimento do texto em espanhol: Ana Cecilia Gonzalez
Tradução: Maria Rita Guimarães
Revisão: Ruskaya Maia
REFERENCIAS
[1] N.T.: Segundo se pode ler na imprensa, trata-se de um comportamento de reclusão adotado pelos adolescentes – ou não tão jovens –, iniciado no Japão, mas espalhado para outros países, tendo chegado ao Ocidente.
[2] Sobre este ponto, remeto-me aos trabalhos de François Ansermet e aos de Dominique Laurent sobre Tecno-Maternidades (cf. Laurent, 2015).
[3] Pode-se encontrar esta apresentação de Wenn Lawson no Blog do ativista Jean Vinçot, acessível em Médiapart de 19 de setembro de 2023, “L‘intersection de l‘autisme et des identités transgenres et non binaires” (tradução livre: “A interseção do autismo e as identidades transgênero e não binárias: Diálogo comunitário e acadêmico sobre investigação e defesa”), Autism in Adulthood, 5(2), 2023.
[4] “Policy Change regarding hormonal treatment of minors with gender dysphoria at Tema-Barn-Astrid Lindgren children’s hospital”, 5 de maio de 2021, e “Sweden’s Karolinska Ends All Use of Puberty Blockers and Cross-Sex Hormones for Minors Outside of Clinical Studies”, 8 de maio de 2021, disponíveis no site da Society for evidence-based gender medicine.
[5] N.E.: 54ª Journées de l’École de la Cause Freudienne, realizadas em Paris nos dias 16 e 17 de novembro de 2024, sob o título “Phrases marquantes”.
[6] N.T.: Nota da versão brasileira: “Ce qui cloche, o que claudica. Preferiremos às vezes o verbo mancar pela possibilidade de jogos fônicos que ele vai oferecer no trato do texto lacaniano […], em troca de outras tantas que ao brasileiro não se apresentam” (p. 267-268).