“O desejo de ensinar”: mesa-redonda com Graciela Brodsky, Inés Sotelo, Fabián Naparstek, Silvia Pino e coordenação de Alejandra Breglia
RESUMO
Neste artigo, encontramos o produto de uma mesa redonda que teve como objetivo propor e desenvolver o lugar do ensino da psicanálise na universidade hoje. A discussão incluiu professores universitários e psicanalistas da Associação Mundial de Psicanálise, que compartilharam suas percepções e questionamentos por meio de discussões, possibilitando uma abordagem que destaca a importância de despertar o desejo de saber dos estudantes universitários, para além da comunicação de conteúdo. Os participantes propõem transmitir a «perplexidade» que sustenta o interesse em continuar a buscar os aspectos «incompletos» do conhecimento como forma de dar continuidade à pesquisa. Pode-se concluir que encontrar maneiras de «não esmagar a curiosidade» dos estudantes que escolheram seus cursos universitários é de grande importância para a comunicação da psicanálise na universidade hoje.
Palavras-chave: ensino, universidade, psicanálise, conhecimento, psicologia, atualidade
RESUMEN
En el presente trabajo, encontramos el producto de una mesa redonda que tuvo como objetivo proponer y desarrollar el lugar que ocupa la enseñanza del psicoanálisis dentro de la universidad en el presente. Esta mesa contó con la participación de docentes universitarios y psicoanalistas de la Asociación Mundial de Psicoanálisis (AMP), quienes a través de la conversación exponen sus elaboraciones y preguntas, permitiendo un enfoque que destaca la importancia de la provocación de los estudiantes universitarios a un “querer saber”, más allá de la comunicación de contenidos. Los integrantes de la mesa proponen la transmisión del “desconcierto” que mantiene el interés en seguir buscando aquello “descompleto” del saber; esto como una forma de continuar con la investigación. Se puede concluir que encontrar la manera de “no aplastar esa curiosidad” de los estudiantes que han escogido sus carreras universitarias, resulta de gran importancia para la transmisión del psicoanálisis dentro de la Universidad en la actualidad.
Palabras clave: enseñanza, universidad, psicoanálisis, saber, psicología, actualidad
ABSTRACT
This article presents the outcome of a roundtable discussion focused on clarifying the role of psychoanalysis in university education at present. University professors and psychoanalysts from the World Association of Psychoanalysis (WAP) participated, exchanging insights and questions. The main conclusion is that psychoanalysis should be taught in a fashion that awakens students’ desire for knowledge, by emphasizing curiosity, inquiry, and openness to uncertainty rather than simply transmitting content. The concept of «perplexity,» or interest in the incomplete aspects of knowledge, is proposed as central to inspiring ongoing research. The discussion highlights the need to avoid stifling student curiosity, which is crucial for effectively communicating psychoanalysis in today’s universities.
Keywords: teaching, university, psychoanalysis, knowledge, psychology, contemporary times
Introdução
No âmbito do XVI Congresso Internacional de Investigação e Prática Profissional em Psicologia – “Contribuições da Psicologia no século XXI”, organizado pela Faculdade de Psicologia da Universidade Nacional de Buenos Aires, realizou-se, no dia 29 de novembro de 2024, em uma sala repleta de jovens estudantes e graduados entusiastas, a mesa-redonda “O desejo de ensinar”, com a convidada especial Graciela Brodsky e os docentes Inés Sotelo, Fabián Naparstek e Silvia Pino, com a coordenação de Alejandra Breglia, docente da casa e analista membro da EOL e da AMP.
A atividade visava trazer reflexões para a conversação sobre a atualidade do ensino da Psicanálise na Universidade, a partir da perspectiva que o livro de Graciela Brodsky (2023), Los psicoanalistas y el deseo de enseñar, ilumina, no qual ela conversa com outros psicanalistas.
Recordemos que Freud, em uma carta de 16 de março de 1919, que escreve em Viena ao médico Lajos Lévy, enfatiza a pertinência de incorporar o ensino da Psicanálise na formação dos médicos e nas Ciências Humanas no geral, destacando que:
A fecundação dessas outras disciplinas pela psicanálise certamente contribuirá para forjar um vínculo mais sólido entre a medicina e os ramos de saber da filosofia e das artes, no sentido de uma universitas literarum […] É verdade que este ensino somente poderia ser ministrado de forma dogmática, em aulas teóricas […] cabe considerar a objeção de que dessa forma o estudante de medicina jamais aprenderá realmente a psicanálise. Isso é verdadeiro se pensamos no efetivo exercício da psicanálise, mas para os propósitos em vista é suficiente que ele aprenda algo sobre e com a psicanálise (Freud, 2010[1919], p. 380-381).
Anos depois, Jacques Lacan (2010[1978]), no seu texto “Lacan a favor de Vincennes”, propõe explorar a antipatia histórica entre os discursos analítico e universitário, e o faz precisamente dentro da Universidade. Abrindo uma pergunta crucial: “Como fazer para ensinar o que não se ensina? Foi por aí que Freud caminhou.” (Lacan, 2010[1978], p. 31), o autor acentua que se confrontar com o impossível não desemboca na impotência, mas renova o ensino.
Qual é o impossível do nosso tempo, que não são os tempos dos nossos professores da Psicanálise? No que o ensino da Psicanálise favorece a formação do psicólogo? De qual maneira se enriquecem mutuamente dois modos de saber diferentes, como são a Universidade e a Psicanálise?
Em síntese, “O que ensino? Por que ensino? Como ensino?” são questões que Jacques-Alain Miller (2023, p. 9) coloca em pauta. Elas são também as perguntas que serão colocadas a trabalho nesta rica conversação entre psicanalistas que sustentam seu vivaz desejo de ensinar.
Alejandra Breglia: Nesse livro, Graciela nos coloca muitas perguntas, muitas questões, divinos detalhes que nos levam a pensar justamente em: O que se ensina? O que um psicanalista ensina? E podemos colocar esta questão neste exato momento: o que ensina um psicanalista hoje? O desejo de ensinar… no que se sustenta?
Graciela faz um percurso precioso! Recomendo seu livro, material de consulta para todos os psicanalistas que querem fazer uma formação. Nesse caminho, ela parte de três perguntas: O que ensino? Por que ensino? Como ensino? Além disso, o viés que toma é de artigos de Lacan e de Miller, principalmente “Lacan a favor de Vincennes”[2] (Lacan, 2010[1978]).
Quando li o livro de Graciela, entendi o que significava esse por… é “Lacan a favor de Vincennes”. É um texto que Miller encomenda a Lacan em 1978, quando a Psicanálise na Universidade de Vincennes foi questionada. Por isso, me parece um passo fundamental para retomar esta pergunta: O que está acontecendo com a Psicanálise nas Universidades e o que sustenta o desejo de ensinar, a cada dia, para nós psicanalistas?
Graciela Brodsky, nossa convidada especial, é um enorme prazer tê-la hoje nesta Casa de Estudos. Graciela é psicanalista, membro da EOL e da AMP; é diretora do Instituto Clínico de Buenos Aires (ICdeBA) e é diretora do Mestrado em Clínica Psicanalítica da UNSAM. Além de ter muitos livros e artigos publicados.
Hoje temos o prazer de ter aqui também três amigos: Silvia Pino, titular recente da disciplina Psicanálise Freud I e analista membro da EOL e da AMP; Inés Sotelo, analista membro da EOL e da AMP, codiretora, junto a Graciela Brodsky, do Mestrado em Clínica Psicanalítica da UNSAM e codiretora da Carreira de Especialização da Faculdade de Psicologia da Universidade de Buenos Aires. Finalmente, Fabián Naparstek, psicanalista, membro da EOL e da AMP, titular das disciplinas Psicopatologia 1 e Clínica das Toxicomanias e Alcoolismo da Faculdade de Psicologia da Universidade de Buenos Aires e Doutor em Psicanálise.
O espírito desta mesa é abrir a conversa entre todos eles, que possamos fazer-lhes perguntas, mas sobretudo queremos escutar vocês, os jovens. Certamente, várias perguntas surgirão, pontuações, ou apreciações que vocês queiram compartilhar conosco e são todas, todas bem-vindas. Então, passo a palavra à Inés.
Inés Sotelo: Primeiro, quero agradecer por estar aqui hoje. Graciela – além de tudo que já foi dito – tem uma posição de transmissão muito forte, muito potente; também é uma criadora de coisas incríveis que acontecem, funcionam. Isso é o mais surpreendente. Por exemplo, o Mestrado em Clínica Psicanalítica na UNSAM. Uma invenção que funciona.
Por outro lado, queria agradecê-la porque a tivemos por perto em supervisões e em outros espaços como bússola. Também pelo privilégio de acompanhá-la no Mestrado – que verdadeiramente é – o que gosto de afirmar.
No livro, encontramos muitas referências fundamentais; no entanto, queria começar por um detalhe precioso: O que provoca os estudantes? Por que os estudantes se interessariam pela psicanálise hoje?
Essa questão sempre se apresenta para mim, especialmente quando vemos, por exemplo, a sala transbordando de jovens, tal como vimos nas conferências de Christiane Alberti e de Éric Laurent nesses dias de Congresso[3]: os estudantes atentos e presentes até o final, apesar de uma das conferências ter sido virtual. Ao final de ambas, perguntas genuínas e agudas: foi fantástico.
Como não pensar no agalmático do momento?
Voltando ao livro, gostei muito como Graciela, na página 19, logo no início, conta de que forma ela se encontrou com Lacan: “Estava cursando as disciplinas psicanalíticas na faculdade e por coincidência caiu nas minhas mãos algo de Lacan. Lembro-me bem que o impactante foi o fato de que ele não falava dos pacientes, e sim dos seus colegas, os analistas” (Brodsky, 2023, p. 19). Retomarei esse achado inicial. Gosto de pensar que alguém pode chegar a este lugar de tantos anos de estudo, de trabalho, de percursos, a partir do desconcerto.
Considero que é um detalhe que precisamos destacar, já que aqui há muitos jovens. Como abordar o desconcerto mais do que a certeza? Talvez estejamos mais acostumados aos estudos, a fazer provas, aprender informações, dar respostas. Seguramente isso precisará ser feito, mas me parece interessante poder aproveitar aquilo que não esperamos e que pode nos levar a perguntas singulares e genuínas, como as que escutamos na quarta-feira. Esse ponto me pareceu muito lindo, para articulá-lo à referência ao tédio e ao saber gozoso próprios do discurso universitário.
É uma linha interessante para pensar por que, finalmente, o que nos questiona em relação aos estudantes é: como provocá-los, como conseguir que deixem o telefone, por exemplo. Como fazer com que perguntem? Esse é o desafio para mim em cada aula.
Graciela Brodsky: Obrigada pelo convite, obrigada por estar aqui, na minha Casa. Na minha Casa, não a reconheço tão impecável e sem cartazes. Minha Casa. Penso que aquilo que provoca os estudantes é a mesma coisa que provoca os pacientes: querer saber. Se alguém não quer saber, é muito difícil avançar, tanto em uma análise como em uma carreira… Há algo no sofrimento que cada um tem, que o leva a procurar um psicanalista e que tem a ver com o desconcerto. Quando em um concerto se sabe o que se toca, quando muitos instrumentos diferentes parecem um, ou seja, estão em um concerto, irá se escutar um concerto. Diferentemente, um desconcerto supõe que algo desafina, que algo não fecha… enfim, é o que não vai bem. Então, o desconcerto é isso, é algo que nos incomoda, que não soa bem. Na vida há coisas que nos incomodam, que não soam bem e que nos fazem sofrer… Alguns conseguem tirar isso da frente, como quem arranca um dente, outros querem saber o porquê, e esse querer saber o porquê é o motor que nos faz estudar, ler e escutar.
Depois está o que obrigatoriamente é preciso fazer, mas se não se consegue despertar o desejo de saber, é muito difícil. Quando digo despertar o desejo de saber, estou incluindo nisso a palavra desejo. Como diabos despertar o desejo? Este é um problema que temos todos: como despertar o desejo em um partenaire? Como despertar o desejo em um aluno? Como despertar o desejo de saber?
Lembro muito bem, porque quando estudava nesta Casa de Estudos, tratava-se da memória, da atenção – a disciplina de Psicologia Geral – e também se estudava Freud, “O Eu e o Isso”, o Complexo de Édipo… O paciente era sempre o objeto de estudo, e a minha surpresa foi descobrir que Lacan não falava dos pacientes, e sim, dos analistas, colocava o analista no banco dos réus, e sua ideia era que se um analista, que se uma análise não funcionava… era preciso pensar na responsabilidade do analista! Não na psicopatologia incurável do sujeito, que se havia algo de resistência, era a resistência do analista. E essa volta de pensar sobre as pessoas do dispositivo analítico – no caso do analista – me pareceu completamente surpreendente, novo, nunca tinha escutado, nem nas disciplinas de psicanálise, nem nas disciplinas gerais. Essa ideia de questionar, de interrogar o analista pela sua ação, a direção do tratamento nas mãos do analista. Realmente, o desejo do Freud, e porque o desejo de Freud foi um obstáculo para a resolução do caso Dora, ou para a resolução do caso da jovem homossexual… Pensava de qual maneira o desejo de Freud tinha sido o obstáculo. Essa maneira de pensar em Freud, como obstáculo, e não como aquele que sabia, pensar o não-sabido de Freud, o que Freud não sabia de si mesmo… e que era o obstáculo para os tratamentos que conduzia. Isso começou a mudar tudo na minha cabeça. E parece que continuamos com isso, de alguma maneira a orientação lacaniana é uma orientação que não vai em direção à psicopatologia. Dá uma volta e retorna sobre o analista. Quando Lacan formula o ato em seus seminários, é precisamente para pensar que a psicanálise se sustenta em um ato, que é o ato do psicanalista.
Então, colocar o foco no psicanalista pareceu-me surpreendente em um primeiro momento, um desconcerto total. É que a aprendizagem, sem um pequeno trauma, não funciona. O pequeno trauma… Lacan é um trauma! [risos]. Não vou dizer que Lacan é um pequeno trauma, é um trauma com letras maiúsculas. E nunca quis ser outra coisa; se quisesse, tinha falado de forma fácil, como em seus primeiros seminários. Mas a leitura de Lacan, não entender nada, é para alguns, não para todos. E, então, uns sentem que isso os faz passar para a página seguinte. Em contrapartida, outros poderiam dizer: “Eu não vou passar um tempo da minha vida tentando decifrar este senhor, que outros o façam…”.
Destaco essa dimensão em que o saber tem algo de trauma, tem algo de que não se entende, não funciona, não anda… esse desconcerto me parece que é um elemento fundamental para despertar o desejo. O desejo sempre está relacionado ao que escapa, não ao que se tem no bolso. Há algo da transmissão do saber na universidade que tem que escapar para que se queira capturá-lo.
Silvia Pino: Nós que te conhecemos e há muito tempo te lemos, sabemos que sua leitura leva essa marca, a marca desse trauma que hoje você precisa claramente, e que, entendo, está presente na sua leitura da Psicanálise, enlaçada sempre ao interesse pela formação do analista e pelo ensino. Parece-me um ato de transmissão, ler o efeito do trauma na própria subjetividade.
Lendo o livro para esta ocasião, encontrei algo sobre o que nunca havia pensado desta maneira: o sintoma como efeito do discurso universitário. Não é muito comum que falemos disso. Isso me pareceu interessante, e me parece que tem a ver com “o desconcerto” como sintoma, que você situou há pouco.
Graciela Brodsky: Tomar um discurso universitário, tal como escreveu Lacan (1992[1969-70]), é de certa maneira o que orienta tudo, todo o livro. O livro está orientado para fazer diferença entre o discurso universitário e a Universidade (Brodsky, 2023). Quando Lacan (1992[1969-70]) fala do discurso, não fala de uma instituição, de um lugar, fala de um discurso. Ou seja, quando em uma análise, no reduto mais íntimo do consultório, fazemos pedagogia, estamos usando o discurso universitário.
E nada diz que na Universidade não se pode fazer algo que toque no discurso analítico e sobretudo o discurso da histérica. Ou seja, o objetivo do seminário era dizer que na Escola pode existir o discurso universitário e na faculdade pode existir o discurso histérico, o discurso do analista (Lacan, 1992[1969-70]). Nada indica a sobreposição do discurso com o lugar, com o lugar geográfico onde esse discurso se desdobra. E quando Lacan (1992[1969-70]) fala do discurso universitário – nesse ponto, é muito interessante a intervenção que está no livro da Cecilia González: ela desenvolve bem de que maneira, quando Lacan fala do discurso universitário, está falando de pessoas, não está falando da Universidade de Paris; está falando de Foucault, de Derrida; está falando do destino da Psicanálise, isto é, se o destino da Psicanálise será tornar-se uma disciplina dentro dos estudos filosóficos, dos estudos literários, ou se a Psicanálise seguirá sendo uma prática. O ataque – é preciso dizer – de Lacan contra o discurso universitário é o ataque contra os universitários, contra os universitários que fazem da psicanálise uma prática teórica, uma prática discursiva e que ignoram por completo a dimensão da práxis psicanalítica como orientadora.
Então, tomar o discurso universitário versus quatro lugares, versus quatro significantes que ocupam os lugares e fazê-lo funcionar é extremamente interessante. Por alguma razão, Lacan (1992[1969-70]) o chamou de “o discurso da burocracia”. É mais interessante pensá-lo como discurso da burocracia do que como discurso universitário, porque é a burocracia colocada em funcionamento em qualquer lugar, e ademais permite ler bem de que maneira o discurso universitário produz sintomas, pois todo discurso tem sua produção.
Se pensarmos nos lugares dos discursos, o saber – escrito por Lacan (1992[1969-70]) S2 – dirigido ao gozo, quando o saber funciona no discurso universitário tem uma função totalmente diferente da função que tem o saber no discurso da histérica, ou no discurso do analista. O saber não é homogêneo. O saber depende de para qual discurso trabalha.
No discurso universitário, o saber trabalha para esmagar o gozo (Lacan, 1992[1969-70]). Essa é a função do saber no discurso universitário. Por isso, o tédio! Entedia porque esmaga o gozo. A questão é como despertar o gozo no saber, como fazer um saber habitado pelo gozo – esse é o desafio do ensino em todo caso. Mas o discurso universitário funciona assim e produz sujeitos barrados, produz sintomas (Lacan, 1992[1969-70]). É um sujeito barrado ou um sintoma que tem uma particularidade fenomenal: está separado do S1, ou seja, são sujeitos que não têm um significante que os represente (Lacan, 1992[1969-70]). Por isso, é possível recorrer à rebelião, dentre outras coisas.
A ideia de sujeitos sem um significante que os represente é interessante para pensar os sintomas contemporâneos, para pensar certa errância, e o que chamamos as psicoses ordinárias. O discurso universitário tem uma dimensão clínica enorme para pensar a solução que pode ser para um sujeito identificar-se com um significante – ainda que seja um semblante – que lhe permite entrar no jogo social, diferentemente de quando um sujeito não tem um significante que o represente, o que determina uma errância. Então, o discurso da burocracia é um discurso extremamente interessante para pensar sua inscrição clínica, não para pensar simplesmente se a Psicanálise deve ou não estar na Universidade, e certamente tem que estar… porque estamos aqui [risos]. Nesse sentido, fazer bom uso do discurso universitário é muito mais interessante do que mergulhar no debate se os psicanalistas devem ou não estar na Universidade. Os psicanalistas têm que ensinar onde há um espaço para ensinar, e onde não há um espaço para ensinar, é preciso criá-lo. Nada nos diz que o único lugar de ensino seja a Universidade. Mas, se eles estão na Universidade, é preciso que façam funcionar um discurso que não mate o gozo da melhor maneira possível. Ainda que estejamos na Universidade, não devemos ficar presos no discurso da burocracia.
Fabián Naparstek: Pela primeira vez, entendo uma das razões pelas quais estou há tanto tempo na Universidade… Foi um longo percurso: estudei e tirei um ano de descanso fora do país, depois voltei e nunca mais saí… é quase um hospital-dia para mim! [risos]. Quando você falava do desconcerto, pelo menos quando eu era estudante, era um desconcertado, me identificava em cada página de Freud… é um fenômeno que me pegou de uma maneira fenomenal. Entendo que isso já não ocorre hoje em dia, ainda mais depois da conferência de Christiane Alberti. Não devemos pensar que quando se fala dos jovens, bem, não se tem que pensar que o jovem de hoje é o jovem que se foi… E, em geral, o que verifico hoje é que, hoje, Freud é mais incompreendido que Lacan. Freud falava muito bem a língua, mas da sua época, não a língua desta época… Assim, eu me via identificado porque falava a mesma língua de Freud, mas não me parece que isso ocorra hoje em dia.
Volto um pouco no tempo, contei isso no momento do meu testemunho, mas talvez valha a pena retomar uma breve cena com meu pai. Ele lia a última página do jornal, onde saíam os obituários, avisos de quem havia morrido naqueles dias. Então, eu me aproximava e perguntava: “O que você está lendo?”. E com ironia, me dizia: “Estou lendo quem não toma mais Coca-Cola” [risos]. Era sua forma de criticar o capitalismo, tinha sua forma de fazer sua crítica. E isso acontecia sistematicamente, especialmente aos domingos, quando o encontrava lendo o jornal. Eu reclamava que sempre repetia o mesmo chiste, e ele me dizia: “É verdade, ou mudo de chiste ou mudo de público”. Bom, me dou conta de que todos os anos conto o mesmo chiste e mudo de público! [risos]. E tenho um problema: sempre ao começar o ano digo a mim mesmo: “Tenho que mudar de chiste, não posso contar todos os anos o mesmo chiste…”.
E esse é meu desconcerto todo começo de ano, é a minha pergunta: o que faço aqui, contando o mesmo chiste todos os anos? Mas isso é o que a Universidade produz. Ou seja, como no meio dessa repetição burocrática de um programa sistemático encontrar algo novo? Para mim, esse é o problema. Ou seja, como a cada autor que tenho que apresentar, fazer surgir algo diferente. Não digo que encontrei solução, mas entendo por que estou aqui, dialogando com meu pai e contando o mesmo chiste a cada vez [risos]. Efetivamente, além do mesmo chiste, há a língua que falamos e isso é uma preocupação que está presente no que apresentei naquele momento: como nós, psicanalistas, falamos?
É claro que Lacan inventa uma língua; o que equivale a dizer que para se aproximar de Lacan é preciso, por assim dizer, aprender “lacanês”; ou seja, alguém que saiba falar essa língua, entender as letras, como são utilizadas em cada momento, as fórmulas etc. É preciso ter uma ideia de toda essa linguagem… mas às vezes me dá a impressão de que nos custa sair disso e na transmissão conseguir acessar outro público que não sabe falar essa língua, às vezes sinto que estamos falando chinês. Eu não sei nada de chinês, mas sinto que estamos falando chinês, que o que dizemos parece muito interessante, mas quando acontece isso, não conseguimos chegar a cada um. Temos o sujeito dividido, efetivamente; é talvez a grande vantagem do discurso universitário, produzir um sujeito dividido, mas é preciso uma língua que o sujeito reconheça como própria… Você, Graciela, diz isso muito bem quando fala de Joyce em seu livro. Lacan (2007[1975-76]) diz que, com Joyce, ninguém nunca irá se identificar. Bom, eu me identificava com Freud a todo momento, mas porque ele falava uma língua comum.
Com Joyce, sentimos o desconcerto desde a primeira letra até a última, não se entende nada de nada, mas não é o desconcerto que toca alguém… Interessa-nos o desconcerto que consegue tocar cada um; minha preocupação continua sendo essa, como falar uma língua que toque o sujeito. Porque se não falamos uma língua comum, não é seguro que o sujeito se produza… Isso é em que acredito.
Graciela Brodsky: Estudei o magistério, então sou professora. Professora de ensino fundamental. Fui professora do primeiro grau durante toda minha carreira em uma escola que ficava a duas quadras daqui, no Instituto Independente. Depois, descobri que era propriedade da família Tarrab! Ali conheci Mauricio, que estava no sexto ano. Nessa época, na graduação para ser professora, havia duas matérias. Uma se chamava Pedagogia, a outra se chamava Didática – eram as matérias da profissão, que te preparavam para ensinar algo nas escolas. Pedagogia eram as diferentes escolas, os métodos de escrita, os métodos de ensinar matemática, Pestalozzi, os grandes didatas. Em Didática, tínhamos que preparar as aulas, fazer um plano de aulas com o objetivo de motivar. A palavra era motivação: você fazia o plano das aulas com os conteúdos que seriam trabalhados e depois era preciso dizer como você iria motivar os alunos para que quisessem aprender as besteiras que iria ensinar [risos]. E, então, essa era a parte mais complicada para mim. Como fazer para capturar? Efetivamente, o assunto era a motivação, como despertar? Como despertar a vontade?
Ler Freud hoje, ou ler Lacan, ou ler o que seja… Pode-se ler Freud para saber o que Freud dizia, o que Freud disse no início, o que disse na primeira tópica, na segunda tópica. Pode-se ler Freud para saber isso. É preciso saber isso, é necessário lê-lo, estudá-lo e pronto. Depois podemos nos fazer uma pergunta um pouco mais interessante, e usar isso como um instrumento para. Para entender o quê? Isso me serve para entender o quê? Para que me serve ler Freud hoje? Posso ler, repetir, ser aprovada e tirar um dez… isso é empenho. Mas, para além disso, para que me serve? Se não consigo pensar para que isso me serve hoje… é verdadeiramente o discurso universitário… é para que me serve estudar derivadas e integrais. Não sei para que serve, mas tenho que estudar, estudo, pronto, e nunca mais vou me ocupar com as derivadas.
Para que serve estudar Freud hoje?
Primeiro, se vou criticá-lo, se vou dizer que ele é o patriarcado, que é um machista, como queiram, primeiro tenho que saber o que ele diz. Isso é o “ABC” de qualquer crítica: se vou criticar o capitalismo tenho que saber do que se trata; se vou criticar economistas da atualidade, preciso saber o que dizem, pois, criticar por criticar… é mais fácil criticar a vizinha. Se quero criticar Freud, tenho que saber o que Freud disse, entender… O que Freud disse foi em um contexto vitoriano, e o que foi a revolução que implicou tudo o que Freud trabalhou nessa época, e ver para o que me serve hoje…
Posso decidir que não me serve para nada. Pode ser que me digam que não serve para nada, não sou obrigada, mas ao menos preciso saber o que ele disse para dizer se me serve ou não. Penso que ele serve para entender o mundo contemporâneo, para entender os novos sintomas, para entender as novas sexualidades… Bom, a psicanálise não se propõe entender o mundo como uma cosmovisão, mas se conseguimos entender a pessoa que vem nos falar para entender o que lhe ocorre já é uma grande coisa… e para isso Freud é fabuloso. Assim como Marx é fabuloso para entender a economia dos dias de hoje, independentemente do fato de ter morrido há tempo, não tem nada a ver. Ele ilumina algo da sociedade; Freud ilumina algo da subjetividade. Lacan o usa, o critica, Lacan já vive em uma época diferente da de Freud. Lacan (2008[1972-73]) pode criticar Freud por não ter entendido por completo o que o desejo feminino pode ter de singular. É sua leitura sobre onde Freud se equivocou. Mas, para isso, é preciso entender Freud, entender Lacan e sua crítica.
Acontece que às vezes usamos algo que me parece complicado. Tentamos aplicar um pouco mecanicamente, por exemplo, a famosa fórmula da sexuação para entender o mundo atual. Não é certo que a fórmula da sexuação seja suficiente. Não é certo que tudo esteja dito. Se não, estamos diante da ideia de que, se lemos algo, já está tudo dito, que Lacan disse tudo… Lacan morreu em 1981, estamos em 2024.
Nem a sociedade atual é a de Lacan, nem as patologias atuais são as de Lacan, nem a ciência atual é a de Lacan. Não é que Lacan seja obsoleto, é que Lacan permite entender o que não se entende. Isso é efetivamente o que me parece mais destacável, quando um autor permite entender, também permite entender isso que fica fora do seu próprio discurso. Se pudéssemos pensar, além de estudar “o estádio do espelho”, “a subversão do sujeito”, “os quatro discursos”, se além de tudo isso pudéssemos em cada momento nos perguntar: para que isso serve hoje? Levar isso a sério, pensar que tenho nas mãos um instrumento para ler algo que não entendo. Que Freud é um instrumento para ler algo que não entendo. Que a adição, o fenômeno de adição é um fenômeno em relação ao qual Freud disse coisas para entender algo que eu não entendo. Mas Freud não me explica o fenômeno de adição de hoje! Mas o que diz me permite, me dá instrumentos para ler algo que para Freud era completamente distante. Dá-me instrumentos para ler. Então, é essa a dimensão instrumental do ensino de Freud e de Lacan. Poder usá-los para resolver questões; além de usá-los para saber o que dizem, usá-los para resolver questões.
Quando Lacan (1992[1969-70]) fala da decadência do Nome-do-Pai… Podemos pensar que a decadência do Nome-do-Pai, que pode ser um fenômeno social, se refere a que já não se acredita nos semblantes. Os véus caíram demasiadamente e não se acredita nos semblantes. Ao menos não se acredita nos mesmos semblantes, nos semblantes da família, nem nos semblantes da instituição. Quando se pensa que a falta da crença no Nome-do-Pai toca algo que Lacan escreveu como metáfora paterna, e que, se não se acredita no Nome-do-Pai, muito menos se acredita no pai, e que o falo é engraçado; entende-se muito do feminismo contemporâneo, apenas colocando na lousa a fórmula da metáfora paterna e ver que isso sustenta se se acredita no pai, mas retiremos a crença no pai e isso se desmancha. A mãe se transforma em um verdadeiro enigma, sem significação; um verdadeiro matriarcado, o que permite entender também muitos fenômenos da atualidade.
O falo causa graça. Lacan disse isso em 1958, mas é um instrumento para ler a atualidade. Uma vez que se sabe como funciona, pode entender o que isso permite ler da atualidade e o que não. E para isso é preciso continuar estudando. Isso sempre me interessa quando leio, a pergunta é: para que serve? Não de uma maneira depreciativa, mas entender que verdadeiramente tenho na mão um instrumento que pode me ajudar a entender o que me incomoda.
Inés Sotelo: Tenho o privilégio de receber nas matérias optativas alunos que, quando se inscrevem, já sabem com o que vão se encontrar, ou supõem.
Fabián Naparstek: A gente faz o trabalho duro [referência aos professores das matérias obrigatórias].
Inés Sotelo: Sim, é um privilégio. Na verdade, é diferente, são menos alunos em cada quadrimestre, mas com uma orientação. Imagino como docente, partindo do desconcerto e pensar como contraponto o objetivo de cada aula ou de cada disciplina. Na disciplina Clínica da Urgência, os alunos fazem os plantões e vão a outros dispositivos de urgência e tentam, logicamente, buscar um guia na psicopatologia, um esquema para saber onde localizar o paciente. Propor, a partir do que não se encaixa em nossos pressupostos, é precioso também como orientação, como se pode escutar a partir daí, a partir daquilo que não coincide exatamente com o estudado a respeito das estruturas clínicas.
As apresentações atuais do consumo, as passagens ao ato, as escolhas sexuais, os modos de fazer família, de alguma maneira descompletam o saber do psicanalista. Porque esse saber com o qual se vai fazer uma prova se descompleta em cada caso e esse descompletar-se é também se animar com o inesperado. Então, se coloca a questão de como voltar aos textos a partir de, buscando se eles irão me dar pistas, alguma resposta possível, que irá se descompletar em um próximo caso.
Acho que isso é útil para os alunos. Na página 60, você se pergunta – além da referência de a quem Lacan se dirige – nas mãos de quem ficará o futuro da psicanálise: nas mãos dos Badiou, dos Butler ou ficará nas mãos dos praticantes da psicanálise, dos analistas e dos analisados (Brodsky, 2023). O desenvolvimento que você propõe em torno dos discursos também se relaciona com o poder suportar o desconcerto a cada vez. Escutamos que os estudantes transmitem que algumas disciplinas são mais simples porque oferecem a fórmula, o protocolo para intervir em todos os casos, o que facilitaria e liberaria da incerteza e da angústia que provoca a prática.
Nas disciplinas ditadas por psicanalistas, encontram-se com algo do desejo do analista, esse desejo que nos habita, pelo qual se quer, cada vez que se encontra com a clínica, aprender como construir cada caso em sua singularidade.
Ou seja, todos esses conceitos que você foi enlaçando no texto e em sua apresentação, se articulam e são fundamentais para um estudante. Poder, a partir da lógica, construir o caso. Bom, para isso são necessários psicanalistas na Universidade, sustentados em uma determinada posição.
Fabián Naparstek: A fórmula de ler Freud para é fantástica. Poderíamos fazer um seminário… [risos] vai no ponto do que queríamos falar, você o mostra muito bem.
Silvia Pino: No livro, na conversação entre Graciela e Fabián, eles localizam no texto de Miller (2023) “tracionar Freud ao atual”, sintagma que ilumina muito.
Graciela Brodsky: Porque estamos acostumados a falar do retorno a Freud, então é o retorno: do momento atual vamos a Freud para recolher o fundamental do que Freud trouxe etc. E nesse texto, o que aparece é o avesso desse retorno, é tracionar, trazê-lo à atualidade. Ao invés de considerá-lo um senhor patriarcal do século passado, trazê-lo à atualidade e ver o que esse senhor pode iluminar dessa atualidade. E o que não ilumina, porque também não é um iluminado. Quando você falava da época, nós pensamos na nossa época como se fosse uma grande coisa [risos]. Cada época foi uma grande coisa. Em sua época, cada um se encontrava com algo… Freud encontrou-se com uma clínica de mulheres com crises histéricas que nunca mais foram vistas, diante das quais os médicos não tinham a menor ideia do que fazer, mandavam-nas para os banhos turcos, tratamentos desse estilo, e, quando já não sabiam mais o que fazer, porque as pessoas não iam nem para frente e nem para trás, mandavam-nas até Freud para ver se ele sabia fazer alguma coisa… mas não tinham a menor ideia do que fazer.
Tinha uma clínica que Freud tentava articular ao que era a sociedade vitoriana. Mas essa era a época de Freud; vivia-se em uma época que para Freud era completamente terrível.
Não é que nossa época não é terrível e as outras épocas eram conformes à psicanálise. Nenhuma época foi conforme à psicanálise. A nós, nos parece que essa época com as adições, com o fenômeno trans, o woke, o me too, é difícil. Bom, é a época em que vivemos, nós temos que lidar com isso. É esta época. Não vamos encontrar as histéricas de Freud… não vamos encontrá-las. Vamos encontrar isso. Isso é nossa época. Temos que nos arranjar com isso.
Inés Sotelo: É bom que os que vêm saibam que vão se encontrar com outra época.
Graciela Brodsky: Cada época apresenta sintomas próprios. É interessante pensar por que os sintomas se expandem em cada época, por que há sintomas que se difundem em cada época. Cada época é única.
Fabián Naparstek: Quando você mencionava a fórmula ler Freud para, ela tem uma nuance de tradução, ou seja, se faz um trabalho de tentar traduzir Freud à época atual. Isso quer dizer que quando se está fazendo esse trabalho, se lê o que faz um tradutor, tentar encontrar o termo… Agora me esclarece um pouco mais a língua estranha que pode ser como Freud escreveu naquele momento.
Graciela Brodsky: Efetivamente, existe algo disso, de traduzir; há um elemento de uso, usá-lo para. Sempre me parece engraçado uma dessas histórias que contam na faculdade, alguém em uma aula que falava de Dora e do Sr. K. perguntou por que Dora não o denunciou. Parece um exemplo perfeito do que é a época. Só se pode pensar isso quando se está no ano de 2024, não se pode pensar nisso naquela época. Fazer essa translação… não sei, seria preciso perguntar a Dora [risos]. Ninguém entendia isso naquele momento. São épocas, maneiras de se pensar a si mesmo de acordo com a época. Isso muda, e não podemos aplicar a situação atual a isso. Mas podemos pensar de que modo a posição de uma mulher foi se transformando e utilizar isso, ao invés de ridicularizá-lo, pensar para que isso serve hoje.
Comecemos admitindo que sirva; depois tentamos ver para que serve. Não descartemos sem experimentar antes para que nos serve.
Inés dizia há pouco, retomando a página 60, ‘nas mãos de quem vai ficar?’ (Brodsky, 2023). Nas mãos de vocês! Disso que vocês se ocupam, ou pegam ou deixam cair. Mas se pegam, pensem no que disse Melanie Klein para entender o matriarcado contemporâneo: tem muito para dizer e para entender o fantasma também. Também diz respeito a nós, dizer algo mais sobre nossa época: não podemos pedir a Freud que fale da nossa época, nem a Lacan, diz respeito a nós… vejamos o que fazer com isso.
Participante: Acho que a psicanálise é muito polêmica, porque quando a gente se pergunta o que ensina, ou a partir de onde se ensina, acho que é a partir da causa, a partir de onde isso causou a cada um, o que sustenta essa transmissão é o desejo. Claro, transmitimos conteúdos, mas não haveria transmissão se não se está em relação com a falta. Me parece que isso é fundamental.
Graciela Brodsky: Às vezes, fazemos uma confusão com como chamar: ensino ou transmissão. Cada palavra tem seu referente, mas gosto de “transmissão”, porque penso na transmissão elétrica ou nas ondas da televisão… Quando eu era pequena, estava começando a televisão, era da minha época, não da época da minha avó. Então, quando eu assistia e pulava na cama, minha avó dizia: “Cuidado com os homens, vão ver sua calcinha” – eram os homens da televisão [risos]. Ela não conseguia entender o fenômeno. Essa ideia de que algo se transmite em ondas, de um lado para outro, essa ideia é da transmissão da libido, do entusiasmo; e quando isso se transmite, passam também os conteúdos. Sem isso, os conteúdos são verdadeiramente nada… se transformam em um dever, uma obrigação, sem o menor interesse.
Participante: Pensava na enunciação, uma coisa é o enunciado – a matéria, os conteúdos – e outra é a enunciação – a partir de onde se diz… Aí está a paixão que cada um coloca.
Graciela Brodsky: A diferença entre enunciado e enunciação nos serve precisamente para pensar essas coisas. Não é o mesmo ‘o que se diz’ e ‘como se diz’: o que se diz além do que se diz, que tem um efeito de ressonância. Porque em relação à interpretação e ao ensino, o que esperamos é que ressoe no outro. Mas, como fazer para que algo ressoe?
Queremos escutar o porvir.
Participante: Sou estudante do primeiro ano, não sei do que Lacan fala… mas achei muito interessante a questão de despertar o desejo de saber e me pergunto: como sabemos que sabemos? Ao que chamamos de ‘não saber’? Por exemplo, como estudante, sei que não sei Lacan, mas o que chamamos de não saber? O não saber inconsciente? Os filósofos gregos, por exemplo, em cada época se perguntam o porquê dessas coisas… Sempre queremos perseguir esse não saber que varia em cada época. Como saber que sabemos algo? Creio que isso é algo que nutre a teoria, por exemplo, a virada na teoria da angústia de Freud. E nos deparamos com novos sintomas, inclassificáveis, de cada época. Pergunto-me: qual leitura fazemos a partir da psicanálise?
Graciela Brodsky: Temos a hipótese de que quando alguém se coloca a estudar psicologia, em algum lugar está atravessado por um querer saber e por um não saber. Não é a mesma coisa quando se estuda outra profissão. Só o fato de escolher Psicologia – quando se poderia escolher outra coisa – indica que existe uma relação entre o que não se sabe e o que se poderia saber. Em determinada época, se dizia: “estudo psicologia para saber o que acontece comigo” ou “porque não entendi minha família”. Na própria angústia da faculdade, da graduação, tem um querer saber, que muitas vezes a graduação se ocupa de amortecer. Porque quando isso se transforma em uma pura transmissão de conteúdos, isso que se quer saber vai ficando opaco. E é tarefa dos que estão responsáveis pela transmissão ou pelo ensino da Psicanálise ver de que maneira não amortecer a curiosidade que de alguma maneira está pressuposta em quem estuda Psicologia; porque ninguém escolhe Psicologia para ficar rico ou para triunfar na sociedade… [risos]. Há um querer saber que devemos supor estar presente.
Fabián Naparstek: Também a fórmula ler Freud para responde à pergunta: como sabemos o que sabemos? Às vezes não sabemos, mas há certo saber que funciona, tem consequências… e isso se verifica na clínica. É o que aconteceu com Freud, especialmente no começo: vinha uma pessoa com um ataque histérico ou uma perna que não funcionava e toda medicina não sabia o que fazer… E com Freud, saíam caminhando. Até que se lesse Freud, demorou mais de vinte anos. A interpretação dos sonhos tinha uma tiragem de aproximadamente duzentos exemplares e em 1920 não haviam sido vendidos, ninguém os lia…, mas, mesmo assim, Freud já era conhecido porque o que ele estava pensando funcionava, tinha consequências. Isso é um valor central daquilo que tentamos transmitir na faculdade. Tem consequências e pode ser utilizado como uma ferramenta para produzir um efeito, que é um alívio para as pessoas que vão ver um psicanalista. Isso é crucial.
Inés Sotelo: Também pensava nos que se formam, quando surge a pergunta: “E agora, o que faço? Se não sei nada”… Então, aparecem as residências, as pós-graduações, a ilusão de que algo disso – ainda que ali se aprenda, se estude e se faça supervisão – irá resolver a questão. Mas com os pacientes, e sobretudo na clínica com crianças, trata-se de uma clínica do desconcerto. As crianças chegam, e ainda que não se atenham ao enquadre, acontecem coisas que têm efeitos. É possível localizar o sintoma e isso tem efeitos… ainda que sempre fique a sensação de ‘o que aconteceu?’.
Lembro que, em uma investigação que realizamos em San Isidro, testamos interpretações inesquecíveis, o que os analistas diziam e o que os pacientes diziam, e não coincidiam, jamais coincidia o que os analistas pensavam a respeito de suas interpretações com o que os pacientes recordavam como memorável.
Graciela Brodsky: Lacan (1986[1953-54]) formulou a ideia do inconsciente como um saber não sabido. Há um saber, mas não se sabe que se sabe. Mas há um saber que funciona, que tem efeitos, e a diferença é esse momento quando algo do não sabido se sabe. Há algo do que você dizia da análise e das interpretações. Isso se vê perfeitamente no dispositivo do passe, quando alguém testemunha sobre sua análise e coloca o que obteve da sua análise a serviço dos outros, saindo do conforto de sermos dois para transmitir algo para o resto. O mais desconcertado é o analista, porque o que um analisante recorta, obteve e transmite da sua análise, as interpretações que mudaram a vida, o inesquecível… O analista escuta e não teve nada a ver com isso! [risos] O analista está como o público, aprendendo algo de um analisante que terminou sua análise e fala da sua análise. Por isso, Lacan considerava importante que o analisante decidisse o final da análise, e não os analistas, porque há uma distância entre aquilo que um analisante obtém como saldo e o que o analista pensa que fez.
Participante: Agradeço por estar aqui, sou aluna do ICdeBA. Destaco isso que vocês trouxeram, de não há que pedir a Freud ou Lacan que falem da nossa época. Creio que às vezes na psicologia se faz uma crítica à psicanálise como ultrapassada, obsoleta, e me parece que é bom se animar a escrever sobre a época atual. Agradeço, já que lá onde só se mede o objetivo e nada da subjetividade… a psicanálise parece necessária.
Participante: O estatuto do sujeito: no discurso universitário o sujeito barrado está no lugar do produto, e no discurso do analista está no lugar a quem se dirige (Lacan, 1992[1969-70]). Então, se o saber amortece o gozo no discurso universitário e isso leva à burocracia, qual é o estatuto do sujeito no lugar a que se dirige o analista ocupando o lugar de semblante?
Participante: Miller (2011) afirma em O banquete dos analistas que Freud teve que lidar com o mal-estar na cultura, e Lacan teve que lidar com o mal-estar da ciência. Efetivamente, hoje é preciso ler as coordenadas do mal-estar da nossa época.
REFERENCIAS
[1] Transcrição por Estanislao Coconier Gatta. Estabelecimento por: Estanislao Coconier Gatta e Roxana Vogler. Revisão no espanhol por Roxana Vogler. Tradução por: Cynthia Gonçalves Gindro. Revisão no português por Tatiana Vidotti, Paola Salinas e Vinícius Lima.
[2] N.T.: Em espanhol, o título do texto é “Lacan por Vincennes”, com certa ambiguidade, o que não ocorre na tradução ao português, visto que o título é “Lacan a favor de Vincennes”.
[3] As duas conferências mencionadas também estão publicadas neste número de Cythère.