A angústia na experiência analítica do século XXI

Ricardo Seldes

Analista Membro (AME) da Escuela de la Orientación Lacaniana (EOL) e da Asociação Mundial de Psicanálise (AMP). Docente do Instituto Clínico de Buenos Aires e do Mestrado em Clínica psicanalítica do IDAES- UNSAM. Diretor de P.A.U.S.A. – Psicoanálisis Aplicado a las Urgencias Subjetivas de la Actualidad.
Email: ricardoseldes@gmail.com

RESUMEN

A partir de las referencias de Freud y Lacan, la conferencia aborda la angustia en la contemporaneidad, interrogando su causa y su función en la clínica. Se examina la particularidad de la angustia, distinguiéndola de otros afectos, como la tristeza, el miedo, el pánico y la nostalgia, y destacándola como el afecto por excelencia en la práctica analítica, el afecto que no engaña, señal de lo real. Se investiga la relación fundamental de la angustia con el cuerpo y la sexualidad, situándola en torno a pérdidas libidinales, a la no aplicación de la libido y a la irrupción del objeto en la escena como plus de gozar. Mediante una viñeta clínica se ilustra el momento en que la angustia señala el goce y posibilita una experiencia distinta con la palabra. Para concluir, se apunta que el deber ético del psicoanalista es abordar la angustia que llena la falta del Otro, haciéndola hablar.

Palabras clave: psicoanálisis, angustia, práctica clínica, siglo XXI.

RESUMO

A partir das referências de Freud e Lacan, a conferência aborda a angústia na contemporaneidade, interrogando sua causa e sua função na clínica. Examina-se a particularidade da angústia, distinguindo-a de outros afetos, como tristeza, medo, pânico e nostalgia, destacando-a como o afeto por excelência na prática analítica, o afeto que não engana, sinal do real. Investiga-se a relação fundamental da angústia com o corpo e a sexualidade, situando-a em torno de perdas libidinais, da não aplicação da libido e da irrupção do objeto na cena, como mais-de-gozar. Por meio de uma vinheta clínica, ilustra-se o momento em que a angústia sinaliza o gozo e possibilita uma experiência diferente com a palavra. Para concluir, aponta-se que o dever ético do psicanalista é abordar a angústia que preenche a falta do Outro, fazendo-a falar.

Palavras-chave: psicanálise, angústia, prática clínica, Século XXI.

ABSTRACT

Drawing on Freud and Lacan, the conference addresses anguish in contemporary times, interrogating its cause and its function in clinical practice. It examines the particularity of anxiety, distinguishing it from other affects such as sadness, fear, panic, and nostalgia, and highlighting it as the affect par excellence in analytic practice, the affect that does not deceive, a sign of the Real. The relationship between anxiety, the body, and sexuality is investigated, situating it around libidinal losses, the non-application of the libido, and the irruption of the object into the scene as an excess of jouissance. Through a clinical vignette, the moment is illustrated in which anxiety signals jouissance and enables a different experience with the word. In conclusion, it is argued that the ethical duty of the psychoanalyst is to address the anxiety that fills the lack of the Other, making it speak.

Keywords: psychoanalysis, anxiety, clinical practice, 21st century.

A angústia e sua causa

Inventamos um belo título para esta conferência, uma proposta de investigação sobre a prática que, ao mesmo tempo, é algo sobre o qual não sabemos a abrangência que poderá ter, pois o século XXI, ao menos para mim, é tão incognoscível como misterioso. É uma época de múltiplas criações técnicas de inteligências humanas, artificiais, e de acontecimentos rápidos que tornam obsoletos os objetos que nos acompanham diariamente, aqueles que quase fazem parte dos corpos.

Estou longe de criticar essa modalidade de vida que vem se intensificando e que compromete nossos corpos, que são parte deles, que nos indicam as horas, enquanto medem nossas funções cardíacas. Eles sabem sobre nossa atividade física, lembram onde a memória falha, exigem-nos propósitos esportivos que deveríamos realizar. Um supereu que cuida de nós e que nos comanda, após solicitar nosso profundo consentimento.

Não me aprofundarei em mais detalhes conhecidos, já que nosso tema não é determinar as condições do século em que vivemos, mas perguntar-nos sobre um fenômeno clássico, essencial da experiência analítica e o que esta nos ensina.

Há um bom uso da angústia?

Estamos acostumados a nos orientar no caso a caso e dificilmente podemos fazer generalizações, mas há um saber em psicanálise que se acumula e do qual podemos deduzir algumas orientações.

Ao falar dos neuróticos, no capítulo 25 das Conferências introdutórias à Psicanálise, Freud (2014a) menciona a angústia como o sofrimento mais horrível, um estado afetivo enigmático, algumas vezes tão intenso que pode nos levar a tomar as mais loucas decisões. Também apontará que não é necessário ser neurótico para experimentar a angústia realista e localizará que as oportunidades em que se apresenta dependem do nosso saber (em maior ou menor medida) e dos nossos sentimentos de poder a respeito do mundo que nos rodeia. De todas as maneiras, ele concluirá que o desenvolvimento da angústia nunca é o adequado e que não se trata de interrogar-se a respeito do sentido, mas, fundamentalmente, por sua causa (Freud, 2014a).

Ao analisar suas diversas formas, Freud advertirá que não devemos perder de vista o nexo entre a angústia e a ameaça de um perigo, definindo-a como um ataque gratuito que é “incompreensível tanto para nós como para o doente” (Freud, 2014a, p. 530).

Na histeria, os sujeitos não sabem como dizer o que é aquilo diante do qual se angustiam, por isso o associam com qualquer fobia que esteja à mão, como morrer, enlouquecer ou sofrer uma síncope (Freud, 2014a). Localizaremos a causa em questões libidinais, em um acúmulo de libido que teve sua aplicação normal restrita e que, então, se deslocará para processos somáticos. À primeira vista, dirá Freud (2014a), não se discerne o modo como, a partir da libido, a angústia é gerada. Só se comprova na prática que em alguma parte falta libido e em seu lugar observa-se angústia (Freud, 2014a). A respeito dos obsessivos, que parecem isentos à angústia, ela aparece de forma horrível se, por exemplo, eles forem impedidos de executar sua ação cerimonial ou abandonar alguma das suas compulsões, o que demonstra que a angústia estava encoberta pela ação obsessiva, a serviço de evitar a aparição do afeto doloroso (Freud, 2014a). Podemos afirmar que uma formação sintomática substitui a angústia e que essa é causa do sintoma. A angústia, enquanto sinal, descrita por Freud (2014c) em “Inibição, sintoma e angústia”, traz outro enigma para resolver: se a angústia é causa do recalque, e este do sintoma, qual é a causa da angústia?

As vizinhanças da angústia

É difícil saber por onde começar a nos interrogarmos sobre o que é a “natureza da angústia” (Freud, 2014c, p. 53). Como Freud (2014c) já indicou, não é coisa simples de apreender. Podemos começar com o que não é a angústia, e encontraremos com o que gosto de chamar as vizinhanças da angústia.

Existem vários afetos diferentes que são confundidos ou chamados diretamente de angústia ou ansiedade, e ao interrogar o que vem a ser, descobrimos que se aproxima mais ao que nomeamos tristeza, depressão, ou o que geralmente se localiza como Panic attack, ou seja, nos encontramos simplesmente com o medo.

Talvez sejam os temas mais típicos das consultas atuais. Freud (2014b) se aproximou da tristeza como o sentimento que traz consigo um total desligamento do presente e do futuro.

A tristeza interrompe a ação do tempo e, quando relacionada à nostalgia, torna-se um exemplo claro de uma “fixação afetiva do passado” (Freud, 2014b, p. 300).

A angústia, ao contrário da nostalgia, põe em movimento o tempo, é o que permite ao sujeito marcar um antes e um depois. É o primeiro ponto no qual nos autorizamos a propor a angústia como sinal do real. É o afeto que nos força a sair do furo do tempo eternizado.

Como podemos nos aproximar e falar da questão da angústia, quando o conceito nunca irá nos revelar muito sobre esse sentir desprazeroso que se experimenta? É mais uma dor, raramente com um sorriso nos lábios, talvez mais com as lágrimas que, de repente, vêm aos olhos.

Voltemos à Conferência 25, quando Freud (2014a) se interroga sobre a angústia nas crianças muito pequenas. Ele dirá que o caso típico e primário, quando a criança se assusta ao avistar rostos estranhos, é porque espera sempre ver o rosto da mãe, a pessoa familiar e amada (Freud, 2014a). A tristeza e decepção, ou a saudade e a desilusão que experimenta diante da perda do amor se transformarão em angústia (Freud, 2014a). Na angústia infantil se encontra reproduzida a condição desse primeiro afeto que acompanha o ato do nascimento, e isso é o fundamental: trata-se da separação da mãe (Freud, 2014a). É o primeiro dos perigos com os quais o sujeito deve se confrontar na vida, inevitavelmente sofrê-los provavelmente de modo traumático (Freud, 2014a). É o que constitui a hostilidade própria do sujeito da palavra (Freud, 2014a). Freud (2014a) concluirá que a angústia infantil, como a neurótica, é gerada a partir de uma libido não aplicada que substitui o objeto de amor, do qual se sente falta, por um objeto externo ou uma situação.

Talvez, um dos momentos mais fortes do encontro com o real seja a angústia diante da perda do amor. Segundo Strachey (1976), na introdução que ele faz de “Inibição, sintoma e angústia”, há uma relação muito estreita entre a perda do objeto de amor e a sexualidade feminina. É um fio condutor para pensar o que se chama a erotomania feminina, muito evidente e persistente em algumas análises, em que a angústia produz reações muito diversas (Strachey, 1976).

Em 1974, a revista Panorama perguntou a Lacan: “O que leva as pessoas a começarem uma análise?” (tradução nossa). Ele respondeu:

O medo. […] o homem tem medo quando não compreende e as coisas vêm até ele, inclusive as que quis. Sofre por não compreender e aos poucos entra em estado de pânico. É a neurose. Na neurose histérica, o corpo fica doente por medo de estar doente, sem estar realmente. Na neurose obsessiva, o medo coloca coisas bizarras na cabeça, pensamentos que não se pode controlar, nas fobias há formas e objetos que adquirem significados diversos e espantosos (Granzotto, 2015, p.1, tradução nossa).

A pista que temos é pensar na relação que existe entre o medo e a angústia. Há uma relação direta? Um é causa da outra? Um capítulo fundamental do Seminário 10 (2005), A angústia, o capítulo XII – “A angústia, sinal do real”, aula de 6 de março de 1963 –, esclarece essa relação entre eles.

Lacan (2015) falou da angústia como o medo do medo.

Qual relação existe entre a angústia diante dos perigos externos à Realangst e os perigos interiores, os pulsionais?

O estado de pânico, que surge entre a angústia e o medo, tem, ao meu entender, uma causa: é um medo, mas de nada, algo que se situa fora do nosso corpo.

Uma característica da angústia é que ela não é muito fácil de descrever. Em todo caso, a angústia se constata. E o que isso quer dizer? Que se trata de uma experiência inefável? Não entendo assim. O medo do medo, dizia Lacan (2015). Muitos desses medos, muitas dessas angústias, no nível de onde percebemos, têm alguma coisa que ver com o sexo.

Parte do que Lacan (2014) afirma que Freud já dizia: a sexualidade para o animal falante, que se chama homem, não tem nem remédio e nem esperança. Um dos deveres do analista, Freud dizia, é encontrar nas palavras do paciente o nó entre a angústia e o sexo, esse grande desconhecido (Lacan, 2014).

O que não engana

No Seminário 10, no capítulo “O que não engana”, Lacan (2005) afirmou que a angústia está enquadrada e que será sempre pouco todo o tempo que se dedique às nuances desse enquadramento. Entendo que se trata tanto na própria prática, como na construção epistêmica que realizamos da angústia.

Desse modo, expresso minha posição de que a importância da angústia na clínica psicanalítica é a de tentar interrogá-la para extrair sua certeza. Quando o fazemos, é porque supomos que é possível uma passagem pelo simbólico e, inclusive, pelo imaginário e que, em todo caso, sempre nos encontraremos com algo particular.

A relação entre os sintomas e a angústia nunca pode ser teorizada fora do caso particular. Daí a importância de se deter para explorar o detalhe clínico, como é que a angústia é lembrada, esse momento que é narrado e é também “rebelde à descrição, há algo que não suporta, que a descrição saia do caso particular” (Leguil, 2013, p. 261, tradução nossa).

François Leguil (2013) apontou que Freud mostra como, quando na psicose a angústia não pode ser enquadrada, o sujeito a interpreta como influência da má vontade do Outro gozador, quer dizer, encontramo-nos com a dimensão paranoide diante da dificuldade de enquadrar a angústia no tratamento e obviamente, na própria vida.

Isso nos leva a assinalar que a diferença mais direta entre a angústia e o sintoma é que na angústia não há mensagem. E além disso, que em si mesma, não há uma mensagem do sintoma como poderíamos pensar, a angústia, apesar de ser uma experiência dolorosa, é algo que permite ao sujeito a possibilidade de uma abertura, é uma bússola que diz que algo deve mudar.

Com o sintoma, sabemos bem disso, pode-se ter uma complacência com ele, um uso até de funcionamento, que faz com que o sujeito ame seu sintoma mais que a si mesmo. Quando alguém está angustiado, nunca sabemos de que se trata, é uma ideia que gostaria de sustentar como questão fundamental.

Quando surge a angústia? Miller (2013) responde que é quando não podemos nos orientar pelo simbólico.

O que isso nos sugere? Há algo na experiência analítica que nos leva a interrogar especialmente esse momento particular em que se produziu a angústia, dentro das sessões ou fora delas. Buscamos localizar como se desencadeia a angústia, assim como fazemos com as psicoses.

Isso me leva ao último ponto que quis trazer para abrir a problemática e que supõe uma conexão entre a angústia e o fenômeno elementar. É a certeza. Lacan (2005) nos propõe diferenciar a angústia dos outros afetos, é o afeto que não engana, o que conduz a uma certeza. É o afeto por excelência na prática analítica.

Em Lacan (2005), encontramos a definição de angústia em um apólogo: é a espera de que algo ocorrerá. Estamos no teatro, na cena do mundo, apagam-se as luzes, a cortina está prestes a ser levantada (Lacan, 2005). Trata-se de um brevíssimo momento de angústia, sem o qual ninguém poderia captar o valor trágico ou cômico daquilo que sucederá (Lacan, 2005). Esta é a bússola. Os elementos constitutivos estão todos ali: temos um enquadre significante, uma espera, o campo propício para que apareça o afeto correlativo a essa espera do Outro. A angústia é essencialmente um corte, sem o qual o significante, seu funcionamento, seu sulco no real é impossível. Mas isso que é só um instante, que imediatamente fica elidido por ficarmos tomados na encenação, demonstra o que acontece quando o enquadre simbólico falta ou quando o enquadre significante aparece demasiado próximo, o Heim, o hóspede, mas sob sua outra dimensão, o mais estranho, o objeto.

A constituição do hostil é o primeiro recurso frente ao desamparo. Há angústia, dirá Lacan (2005), quando surge no enquadre o que já estava aí, o hostil enquanto tal, o que está em casa, o Heim, o familiar. Essa é uma das posições de Lacan (2005): dizer que o surgimento do sinistro, do abominável no enquadre é o que constitui o fenômeno da angústia. É produto do corte da cadeia significante, ou seu surgimento é aquilo que a corta, é a urgência que revela um caráter entre superegoico e hostil. A angústia é assim quando a ação toma emprestada sua certeza, e atuar é arrancar da angústia sua certeza, operar uma transferência de certeza.

Tomamos, então, a relação que podemos estabelecer entre a angústia, a certeza e o enigma. A angústia não engana porque não diz o que é o objeto, se relaciona com a falta no Outro, e tampouco diz o que ela é, não sustenta seu discurso. A certeza é o lado denso do significante e da sua significação. No enigma do desejo do Outro o sujeito perde a possibilidade de deslizar no seu terreno. Como disse Heidegger (2015) em O ser e o tempo: o sujeito se angustia quando não está na sua casa. Localizamos a relação do sujeito com a causa e com sua casa, como destaca Miller (2013). Quando o familiar se torna muito estranho, é melhor fugir; quando se acredita que se está em casa e os signos do Outro te mostram o contrário, melhor colocar a barba de molho.

Nossa posição como analistas é tentar melhorar a posição do sujeito, dosificar sua angústia, já que a certeza e a espera por um perigo, que anunciava Freud (2014a), são a mesma coisa na angústia, é uma ameaça que não cessa. Desangustiar sob transferência permite que o analisante possa extrair o que lhe concerne do sofrimento da certeza. Não se trata nem de sugestionar e nem de dar sentido ao sem-sentido; em todo caso, se é possível, sintomatizá-la melhor.

Por que, então, Lacan (2005) fala do que não engana? O que implica a certeza do fenômeno elementar? O fenômeno psicótico nos ajuda a entender isso. Não se trata de opor certeza à realidade e pensar em mundos irreais. Na realidade da sua alucinação, o louco acredita, afirma Lacan (1988, p. 91) no Seminário 3: “O sujeito admite, com todos os rodeios explicativos verbalmente desenvolvidos que estão ao seu alcance, que esses fenômenos são de uma outra ordem que o real, ele sabe bem que a realidade deles não está assegurada, admite mesmo até um certo ponto a sua irrealidade.”

Mas, diferente do sujeito normal, para quem a realidade está bem localizada, ele tem uma certeza: que o que está em jogo – desde a alucinação até a interpretação – lhe concerne. Isso é essencial de captar, já que está claro para nós que um fenômeno elementar implica toda uma escala, que vai da benevolência à malevolência, e significa para ele algo inquebrantável.

Conclusões (sempre) provisórias

Lacan (2005) começou seu ensino apontando que a angústia é sinal do desejo do Outro, que é insuportável. Não é raro captar na clínica esse fenômeno, que põe o sujeito no lugar daquilo que falta à louva-a-deus. Naquilo que ocorre no nível especular que, segundo Miller (2013), na angústia lacaniana, é onde mais se esconde o objeto, esse estranho a que aludimos anteriormente. No século XXI, as conquistas da ciência e da técnica no centro do social estão acompanhadas do direito a gozar, quando não se trata inclusive da obrigação de fazê-lo. A certeza está do lado do que se goza. É por isso que, para Lacan (2005), não é a perda do objeto que causa a angústia, mas sim, quando falta a falta, ou seja, quando o objeto aparece na cena. A angústia faz o objeto aparecer do lado do mais de gozar.

Uma breve vinheta de uma primeira entrevista nos servirá para ilustrar esse momento de interrogar a certeza da angústia.

Uma mulher de meia idade relatou que há poucas semanas seu filho de 21 anos havia morrido. “Mataram ele, levou um tiro.” Este dito foi acompanhado por um breve choro, que ela mesma interrompeu imediatamente, para dar muitos detalhes sobre a responsabilidade que pesa sobre o pai desse filho, seu ex-marido, de quem havia se separado fazia mais de dez anos. Naquele momento, ela deixou seu filho com ele para que não mudasse de bairro, nem de escola. Esse rapaz, ela descobriu anos mais tarde, “estava em más companhias”, e esclareceu: “Era frequentador de uma lan house onde abundavam armas e drogas”. Ela parecia captar muito bem o valor dos detalhes, e precisamente não parecia alguém que falava demais. Conta, então, sem muito afeto, que o filho morreu em um assalto. Até esse momento, poderia tratar-se da dor de uma mãe e pronto. Contudo, notava-se que havia algo mais.

Qual foi o ponto de luminescência dessa entrevista, desse encontro? Esse ponto se produziu quando, com bastante dificuldade no dizer, como quando as palavras dão nó na garganta, relatou que há seis meses, devido a uma observação do seu novo companheiro, ela percebeu que seu filho usava drogas e roubava. Nesse momento da entrevista, observei-a angustiada pela primeira vez, como tentando encontrar o que, para ela, desde aquele momento, há seis meses, havia sido algo indescritível, algo indizível.

Então, disse: “Quando me dei conta, um certo medo de alguma coisa me agarrou, não sei, um temor”, e fez silêncio.

“De que alguma coisa podia acontecer com ele?”, perguntei.

“Não, não, é outra coisa. É que eu não conseguia entender que alguém tão próximo…”, interrompeu-se. Tive que interpretar: “alguém tão próximo e tão estranho ao mesmo tempo”. Levantou a cabeça. Seu olhar se iluminou, com a expressão do rosto mais relaxada. Olhou para mim e disse: “Exatamente, esse não era meu filho. Eu senti algo estranho, era pena, mas…”, parou novamente de falar.

“Diga”, instiguei com firmeza e doçura ao mesmo tempo.

“Senti repulsa por meu filho”, disse. A partir desse momento, o relato se encheu de detalhes, e evidenciou-se esse primeiro tempo do trauma, que consistiu na queda daquilo que a havia sustentado até o momento, a ideia do amor como remédio. A entrevista finalizou quando ela mesma me demandou apoio e um espaço para entender tudo isso. A angústia e a urgência foram localizadas nesse ponto de gozo, de sofrimento excessivo, no qual ela havia ficado paralisada.

Não posso dizer quanto durou a entrevista; nesses momentos de tanta verdade perde-se a dimensão do relógio e adquire-se a do tempo libidinal, que começa novamente a funcionar. Pensei que ela deveria produzir uma nova decisão, porque a anterior encontrou um obstáculo intransponível.

A análise nos permite aprender algumas vezes. O que nesse caso? Em primeiro lugar, claro, desprendermos do preconceito, dos preconceitos, embora a morte de um filho seja algo insuportável para qualquer um e para quem quer que escute isso, nesse caso, o que foi revelado foram os três momentos em que se produziu a perda.

No primeiro, fica claro o triunfo do amor da mãe: é como uma das mulheres que se apresenta perante o rei Salomão. Trata-se da verdadeira mãe, que renuncia ao filho para que não o dividam em dois. Demos um salto, e passemos ao terceiro momento, o da perda real, a morte do filho, aquilo que a confronta com o inevitável. Mas, se deixamos o sujeito falar, se não tentarmos silenciá-lo, por exemplo, com medicamentos ansiolíticos, encontramo-nos com o relato da perda mais terrível, o momento em que o objeto de amor se transformou em objeto de angústia. É a expressão do rechaço de algo próprio, daquela parte do seu ser que não fazia sentido. Quando saímos do sentido, aí temos o real.

Tive a oportunidade de captar no caso que havia uma palavra privilegiada por ela, ou melhor, para ela. Esse significante era “rechaço”, que estava ilegível e começou a se tornar legível. A partir dessa leitura, ela pode fazer uma experiência diferente com a palavra. Defino a urgência subjetiva como a chance de fazer uma experiência diferente com a palavra, e isso modifica as coisas.

Nosso dever ético, então, é tratar a angústia que preenche a falta do Outro. Assim como disse Lacan (2005), quando a falta falta, quando o excesso da exigência pulsional se impõe, consiste em sintomatizá-la, em fazê-la falar.

A angústia é sinal de que o mundo é gozo e não representação ou vontade por trás da representação. A angústia como sinal do real é um sinal de um gozo que vem do desejo. Em outras palavras, quando há angústia, há gozo, mas em seu horizonte também há desejo.

A angústia é sinal do real mais particular de cada um e do que deve se responsabilizar do seu gozo. Daí que Lacan, na entrevista da Panorama de 1974 (Granzotto, 2015), disse:

Quando escuto falar do homem da rua, das pesquisas, dos fenômenos de massa ou de coisas parecidas, penso em todos os pacientes que passaram pelo divã do meu consultório em quarenta anos de escuta. Não há um só que seja parecido com o outro, nenhum com a mesma fobia, a mesma angústia, a mesma maneira de relatar, o mesmo medo de não entender (tradução nossa).


REFERENCIAS

  • Freud, S. (2014a). A angústia. In Conferências introdutórias à Psicanálise (pp. 422-442). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1916-1917)

  • Freud, S. (2014b). A fixação no trauma, o inconsciente. In Conferências introdutórias à Psicanálise (pp. 297-310). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1916-1917)

  • Freud, S. (2014c). Inibição, sintoma e angústia. In Inibição, sintoma e angústia, O futuro de uma ilusão e outros textos (pp. 9-98). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1926).

  • Granzotto, E. (2015). Entrevista a Jacques Lacan [1974]. El Psicoanálisis. Revista de Escuela Lacaniana de Psicoanálisis, n. 27. https://elpsicoanalisis.elp.org.es/sumario-digital-27/

  • Heidegger, M. (2015). Ser e tempo (12.ª ed.). Vozes; Universidade São Francisco (Trabalho original publicado em 1927)

  • Lacan, J. (1988). O seminário, livro 3: As psicoses (2a ed.). Zahar. (Trabalho original publicado em 1955-1956)

  • Lacan, J. (2005). O seminário, livro 10: A angústia. Zahar. (Trabalho original publicado em 1962-1963)

  • Leguil, F. (2013). La depresión generalizada. In J.-A. Miller. El lugar y el lazo. Paidós

  • Miller, J.-A. (2013). El lugar y el lazo. Paidós

  • Strachey, J. (1976). Introdução [ao texto Inibição, sintoma e angústia]. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 20, pp. 81-173). Imago. (Trabalho original publicado em 1925-1926)