Nota Editorial
Virgínia Carvalho
Analista Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). Docente da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Doutora e mestre em Estudos Psicanalíticos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
E-mail: virginiacarvalhopsicanalise@gmail.com
No Seminário 20, Lacan nos recomenda não fazer obstáculo ao discurso universitário, o qual ele propõe escrever “univercitério”: todos unidos no universo de Citera, na tentativa de “difundir a educação sexual”, visando a uma melhoria na relação entre os sexos, o que do lado do analista só pode provocar o mais besta dos sorrisos. Citera é uma ilha do sul da Grécia, conhecida como o local de nascimento de Vênus, deusa do amor. Essa referência, assim como o quadro de Antoine Watteau, Pèlerinage à l’île de Cythère (Peregrinação à Ilha de Citera), serviram de inspiração para a criação da revista, em 2018, sob a editoria de Mariana Gómez.
Desde então, Cythère? Revista da Rede Universitária Americana, a RUA, se estabeleceu como uma “revista universitária” escrita por psicanalistas das Escolas da Fapol e da Associação Mundial de Psicanálise. Com textos em castelhano e em português, ela se propõe a transmitir os conceitos, a teoria, a eficácia clínica e a política da psicanálise de orientação lacaniana de maneira rigorosa e precisa, enfatizando sua construção epistêmica.
Uma “revista universitária escrita por psicanalistas” do Campo Freudiano – não estaríamos diante de uma contradição em termos, já que o universitário e o psicanalítico não se fundem? Aprendemos, com Lacan, em seu Seminário 17, O avesso da Psicanálise, que ou estamos no discurso universitário, ou estamos no discurso do analista, e que quando flutuamos entre os discursos, à côté de la plaque, estamos no campo da debilidade.
Nesse sentido, Cythère?, uma revista que tem uma interrogação em seu título, não se propõe a uma imiscuição de discursos. Não se trata de tentar fazer caber a psicanálise na burocracia mercadológica da universidade, nem tampouco que ela possa se servir da universidade para ampliar sua audiência. Manter a extimidade entre o discurso universitário e o discurso do analista é fundamental. E, como indicou Fernanda Otoni, atual presidente da Fapol, “a presença da psicanálise na universidade é uma questão de Escola” – o que nos remeteu à imagem evocada por Jacques-Alain Miller em 2017, em sua conferência intitulada “Questão de Escola: proposta sobre a Garantia”: “[…] a Escola é um ser ambíguo, que tem asas analíticas […] e patas sociais” (p. 2). Ali ele nos indica que o discurso analítico “abre espaço para o incomensurável, isto é, para o fator (a) que sempre se intercala no cálculo” (p. 5).
Não poderíamos, então, tomar a extimidade entre o psicanalítico e o universitário como um exercício de tradução, diante do encontro de diferentes línguas? Nessa perspectiva, Cythère? não é apenas uma revista direcionada àqueles psicanalistas que trabalham na universidade ou àqueles universitários interessados por psicanálise. Trata-se de um espaço privilegiado para o novo e o heteros, que pode advir daqueles que habitam o campo vivo da universidade. Por essa razão, Cythère? está em condições de fazer avançar a própria psicanálise nas surpresas que encontra diante do questionamento dos estudantes, das perguntas que ensejam pesquisas científicas, ao interrogar as “novas palavras”, modismos e soluções inventados no contemporâneo para dar conta do mal-estar na cultura.
Para responder à altura do desafio de nos servirmos de Cythère? como um exercício de Escola, esta equipe editorial buscou trazer o vivo do encontro dos corpos nas universidades como uma das rubricas deste número 7. Em “Acontece na Universidade”, temos a chance de ler as ressonâncias das conferências proferidas por Christiane Alberti, “A psicanálise para a juventude”, e por Éric Laurent, “A psicanálise como resposta ao real de hoje”, ambas realizadas na Universidade de Buenos Aires (UBA). Também podemos aprender com a conversação sobre “A angústia no século XXI”, realizada na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que contou com a participação de Bárbara Afonso, Olívia Loureiro Viana, Heloísa Bedê, Vinícius Lima, Antônio Teixeira, Ricardo Seldes, Cleide Monteiro e outros participantes. Da mesma maneira, a transcrição do debate ocorrido na UBA, em uma mesa-redonda sobre “O desejo de ensinar”, com Graciela Brodsky, Inés Sotelo, Fabián Naparstek, Silvia Pino e Alejandra Breglia, nos permite experimentar a força do encontro com a psicanálise no âmbito da universidade.
Nesse clima de abertura para a contingência, a “Seção temática” trabalhou “A angústia da criança”. O tema é ressonante com o XII Enapol e seu “Falar com a criança!”, bem como com as queixas contemporâneas que se apresentam na clínica e no contexto educativo da universidade. Para tanto, contamos com as elaborações de Ricardo Seldes sobre “A angústia na experiência analítica no século XXI”, texto que nos permite entender melhor a ideia lacaniana da angústia como sinal do real. Betsy Arguello também nos apresenta o tema, delimitando “a angústia na infância hoje”, a partir do deslocamento “do corpo em excesso ao dizer singular”.
Na rubrica “Fundamentos”, Roxana Vogler nos convida a percorrer “A psicopatologia da angústia nas crianças”, desde a psiquiatria clássica até o contemporâneo.
A seção “Redes Universitárias” destaca a importância da RUA e da RUE – Rede Universitária Europeia de Psicanálise – para a permanência da psicanálise na universidade. Nessa perspectiva, podemos acompanhar o trabalho “A angústia na criança autista”, de Cláudia Gonzáles, integrante da RUE, e a pesquisa de Inés Sotelo, integrante da RUA, “Urgência: angústia, sintoma e fantasma à luz dos paradigmas do gozo”.
Na rubrica “Radar Acadêmico”, que publica os artigos inéditos produzidos a partir de pesquisas realizadas na universidade e que são encaminhados à revista através de seu fluxo contínuo de submissão de manuscritos, podemos ler o texto de Licene Maria Batista Garcia da Silva e Heloisa Caldas, “Uma leitura psicanalítica das máscaras da solidão”, e o texto de Nicolas Katzer, “Os três de Freud: inibição, sintoma e angústia”.
Os textos da revista vêm acompanhados da surpreendente imagem Iceberg, escultura de Flávio Cerqueira, de 2012. Tivemos a chance de conhecê-la na exposição “Um escultor de significados”, que viajou por várias cidades brasileiras, com curadoria da historiadora e antropóloga Lilian Scwhartz. Sobre a escultura, Flávio escreve:
Um garoto sentado, segurando nas mãos um chinelo, pode parecer um simples gesto executado por qualquer criança. Mas, para mim, essa imagem é uma memória arrebatadora da posição por mim encenada durante alguns dias, esperando a volta do meu pai para casa após sua morte. Este é, sem dúvida, o mais autobiográfico de todos os meus trabalhos. Desde quando produzi a escultura Iceberg (2012), penso o meu trabalho como momentos congelados de uma história, um desejo de pausar um instante vivido e usufruir dele, nem que seja por mais uma única vez.
Nascido em São Paulo, o artista, doutorando em Artes Visuais pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), trabalha com processos de fundição de bronze e tem a figura humana como protagonista de sua poética. Suas obras podem ser encontradas em importantes coleções pelos principais museus do Brasil. Um agradecimento especial ao artista, que nos cedeu o direito de imagem da fotografia de sua escultura Iceberg.
Agradecemos a Jacques Allain Miller pela preciosa orientação e assessoria nesta revista, à Fernanda Otoni Brisset pela aposta incansável, Flory Kruger, à Gabriela Camaly e María Hortensia Cárdenas, que compõe o bureau da FAPOL pela confiança em nosso trabalho; aos conselheiros e colegas de RUA e a cada um dos autores, revisores, pareceristas, leitores, tradutores e todos aqueles que estiveram empenhados neste número que vem sendo trabalhado, cuidadosamente, há bastante tempo, por uma extensa equipe. Convidamos a todos para essa leitura e para que possamos ampliar ainda mais esse campo aberto e fecundo, que se escreve na extimidade entre a psicanálise e a universidade.