A psicanálise para a juventude1

Christiane Alberti

Presidenta da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)

RESUMO

Nesta conferência, Christiane Alberti defende que a psicanálise deve orientar-se para a juventude, abordando seus desafios contemporâneos. Ela evoca Jacques Lacan, que associou a juventude à esperança de sustentação da psicanálise, uma vez que ela é sensível ao discurso dominante e, por isso, pode captar o contemporâneo. Essa questão implica, assim, que a psicanálise não fique dentro de uma bolha que a isole do mundo. Com relação ao mundo contemporâneo, a analista se pergunta como compreender esta época em que a civilização prioriza o fazer e o ter sobre o ser, situação que frequentemente implica uma deslocalização dos sujeitos que buscam satisfação em objetos externos. A partir da psicanálise, o que se propõe é fazer uma construção da interioridade que revele o desejo a partir da palavra. Nesse sentido, a separação entre discursos dominantes e o discurso analítico é essencial para compreender a experiência subjetiva.

Palavras-chave: juventude, sustentar a psicanálise, civilização atual, discurso analítico, desejo.

ABSTRACT

In this lecture, Christiane Alberti indicates that psychoanalysis should focus on young people, addressing their contemporary challenges. She evokes Jacques Lacan, who associated youth with hope for the sustainability of psychoanalysis, since young people are sensitive to the dominant discourse and can therefore grasp contemporary issues. This issue thus implies that psychoanalysis should not remain within a bubble that isolates it from the world. With regard to the contemporary world, the analyst wonders how to understand this era in which civilisation prioritises doing and having over being, a situation that often implies a delocalisation of subjects who seek satisfaction in external objects. From the perspective of psychoanalysis, the aim is to construct an interiority that reveals desire through speech. In this sense, the separation between dominant discourses and analytical discourse is essential to understanding subjective experience.

Keywords: youth, sustaining psychoanalysis, contemporary civilisation, analytical discourse, desire.

«Estou muito feliz de ver um grande número de figuras jovens, pois […] é nessas […] figuras que deposito minha esperança.” Assim dizia Lacan (1978, p. 32) em uma conferência na Itália em 1974, associando juventude e esperança. De qual esperança se trata? A esperança de que falava Lacan não provém de uma visão lírica, romântica, da juventude, inclusive de uma visão idealizada da juventude. Para Lacan, tratava-se de uma necessidade, de uma orientação necessária da psicanálise, diria inclusive de uma ação da psicanálise. Se queremos que exista psicanálise, se queremos que o porvir da psicanálise dure por um longo tempo, então, ir em direção à juventude é uma necessidade.

Então, por que a juventude? É clara uma evidência que se impõe a partir do momento em que evocamos o porvir da psicanálise. No entanto, há um elemento mais essencial: Lacan cuida da juventude, preocupa-se com a juventude porque ela é “sensível”, dizia, ao discurso dominante, é um guia para compreender o momento presente. Poderíamos dizer que a juventude seria como uma “placa sensível” à contemporaneidade. Placa sensível como na fotografia. O fotógrafo fixa uma imagem fugidia sobre a placa sensível (superfície sensível), e esta, por reações sucessivas, permite a realização de fotos instantâneas. Sobre a placa, algo se marca, se detém, se imprime ali, mas não tudo.

Qual ensino extrair disso? Que é preciso levar em consideração o mundo como ele se encontra hoje para que a oferta psicanalítica não esteja “fechada em sua bolha” e possa se sustentar. Lacan falou a língua de sua época para que a juventude viesse à sua escola. Falou de cibernética, integrou o vocabulário do marxismo etc. Teve êxito. É um Lacan com o sentido da oportunidade, como se expressa Jacques-Alain Miller porque estava enganchado em seu discurso e buscava os meios para fazê-lo passar.

O título que escolhi para me dirigir a vocês é inspirado no ensino que podemos extrair do ensino de Lacan. Em direção à: em primeiro lugar, indica um movimento e uma orientação da psicanálise. Em direção à: quer dizer que se psicanálise se interroga sobre o seu porvir; deve realizar um trajeto que a conduza aos jovens; deve fazer o caminho em direção à juventude; deve franquear as barreiras que a separam da juventude, franquear os obstáculos que inibem ou impedem a juventude de se dirigir à psicanálise, ao invés de se queixar de que os jovens não se aproximam da psicanálise. Em certos momentos, é como se quiséssemos que os jovens se dirigissem até nós sem ter, nós mesmos psicanalistas, efetuado o trajeto até eles.

Ao dirigir-se à juventude, Lacan, como ele mesmo disse, não fez nenhuma propaganda. Não prometeu a felicidade, nem um porvir melhor. Ao invés de ilusões, o que Lacan ofereceu? Nada mais do que a própria oferta analítica, isto é, o único discurso no qual se leva em conta que o ser humano sofre de algo que o supera e que ele não compreende. O único discurso que leva em conta o que nos supera. Está em nós e, no entanto, em certo sentido, é estranho a nós mesmos. Quando o sujeito é impotente para realizar esse desejo, tenha sido ele mortificado, prevenido ou sempre insatisfeito, paradoxalmente o sujeito experimenta culpa, culpa inconsciente que se traduz em angústias, sintomas e inibições, ou ainda uma culpa consciente cuja queixa incessante não deixa nenhuma margem para aceder ao desejo, do qual se queixa por não conseguir realizar.

Logo, como falo da época e do momento presente aos quais a juventude é sensível, consideremos a maneira pela qual as coordenadas da civilização contemporânea impregnam a subjetividade. Como marcam nossa forma de ser com os demais e com nós mesmos? Como? Em que sentido?

Como caracterizar essa subjetividade? Diria que nossa civilização é caracterizada pelo fato de que o fazer e o ter prevalecem sobre o ser. Cada um se volta a um objeto de satisfação, que supostamente satisfaz, um mais-de-gozar ilusório, uma bugiganga. Inclusive, o elemento qualificado como humano, ele mesmo é considerado como equivalente a um objeto qualquer, produto de nossa indústria.

A ideia que se poderia ter sobre isso é a do sujeito enclausurado com seus gadgets, separado do outro e do mundo, quase uma satisfação autística, em todo caso solitária. Pois bem, quero assinalar que, longe de fechar um sujeito em seu mundo, isso tem por efeito deslocalizá-lo. Pelo fato de o sujeito dirigir-se sem cessar a um objeto, a uma causa exterior a si mesmo, ainda que marcado como um índice de exterioridade, ele se vê despossuído de uma parcela “de interioridade”, o sujeito é privado de um retorno sobre si mesmo. De que se trata quando falo de interioridade? Parece estranho na psicanálise.

São os efeitos da palavra que constituem em nós outra realidade, que cria em nós outra realidade daquela chamada de realidade. É uma realidade que ultrapassa os fatos. A palavra cria sua própria realidade ou, podemos dizer, sua própria irrealidade. Permite-nos construir um mundo que não existe. Criar a possibilidade de imaginar, criar a possibilidade de um “discurso interior” (Lacan, 1988/1955-1956, p. 144), de uma interioridade. Essa interioridade se deve a este ponto: “no corpo, o eco do fato de que há um dizer” (Lacan, 1975-1976/2007, p. 18). A palavra corpo tem um eco em nós porque corpo e palavra estão enodados.

É um discurso que não é imediatamente transparente a si mesmo e aos outros: as palavras constituem em nós mais que nós mesmos (nossos sonhos, nossas expectativas, nossas inibições, nossas obsessões); é a cena do inconsciente (o sintoma responde a isso) que faz com que o eu não seja o senhor em sua casa (cf. Freud, 1917/2010) e que constitui nossa complexidade, nossa espessura de ser.

Pois bem, nossa civilização vive sob o regime de um ideal de transparência, o que tem como efeito remover dos sujeitos essa espessura de ser, a parte de opacidade e de mistério que faz com que se possa enunciar o enigma que constituímos para nós mesmos, que faz com que possamos formular a falta, o mal-estar, o equívoco, através dos quais podemos nos dirigir ao outro, abertura a uma transferência possível. Isso muda a maneira como os sujeitos se apresentam na psicanálise hoje.

O sujeito aparece na cena do mundo na atuação, inclusive na agitação incessante, no curto-circuito com a palavra, o que torna mais complicado o acesso à sua própria palavra. O próprio corpo é empurrado ao extremo, como se o sujeito tentasse recuperar na sensação uma existência, uma espessura de ser, uma espessura de corpo.

Vou precisar três elementos que caracterizam a maneira como os sujeitos se apresentam na análise hoje.

  1. Identificações que não são identidades;
  2. Uma língua radical que escotomiza o valor da experiência, e a psicanálise é, em grande medida, uma experiência; e
  3. Uma dessexualização.

Zona de queda: dessexualização

Sob esse prisma, o que ocorre quando o sujeito está preocupado sobretudo com o fazer e o ter? Quer dizer, o que ocorre quando os objetos da realidade, os objetos do bem, prevalecem sobre a causa íntima do sujeito, a causa do desejo? Isso afeta a relação com o objeto, com o partenaire, e Lacan descreveu precisamente o que ocorre quando a realidade prevalece sobre o real, esclarecendo os efeitos estruturais do que ocorre. Ele diz que o sujeito entra em uma zona de queda.

Lacan descreve tal zona a propósito da relação com o objeto oral, quando evoca as zonas reduzidas à sua função de borda no erotismo. A borda da zona erógena oral delimita a zona focalizada erotizada; as outras zonas do corpo podem intervir, mas estão dessexualizadas – são as zonas chamadas por ele como “dessexualização e função da realidade”. Dito de outro modo, a zona erotizada vale sempre que as outras zonas estejam excluídas. Tudo no corpo não está erotizado, tudo no corpo não goza.

Mas o que acontece justamente no movimento inverso, quando a zona de realidade é a zona excluída que prevalece? Dito de outro modo, o que ocorre quando o próprio objeto sexual se inclina para a realidade e não se apresenta mais investido de libido, erotizado, isto é, apresenta-se como um pedaço de carne? Ali surge essa zona de queda chamada por Lacan de dessexualização, tão manifesta que na histérica se chama reação de asco. É uma dimensão que, no lugar de provocar desejo, traz consigo a queda do desejo em uma reação de asco.

Lacan precisa que isso não quer dizer que o desejo somente se dirija às zonas erógenas; outras zonas podem estar interessadas na economia do desejo, mas, a respeito da satisfação que se supõe que a pulsão engendra, é fundamental que a zona da realidade, anexa, conexa, esteja excluída, ou seja, que o real pulsional prevaleça sobre a realidade. Cada vez que o objeto, o partenaire, se reduz a uma função de realidade, manifestam-se as duas vertentes do desejo: o asco, quando o partenaire sexual fica reduzido a uma função de realidade, qualquer que ela seja, e a inveja, que é algo diferente da pulsão escópica. Podemos considerar que aqui Lacan apresenta o princípio do asco ou desencanto contemporâneo, que conduz o gozo ao corpo próprio?

Tal desencanto, essa morosidade, são as paixões tristes de hoje, mas sem paixão. A particularidade contemporânea é que não fazem sintoma porque o discurso moderno não dá lugar ao sintoma. Isso testemunha o tédio ou o afeto de morosidade (tristeza ou pessimismo) e o fracasso de toda sublimação; o sujeito está em busca de tudo e, portanto, de nada. Gosto muito da fórmula de um colega francês, Philippe La Sagna (2009), que fala da juventude em suspenso, “suspensa em um futuro líquido” no sentido de Zygmunt Bauman (2004). À espera de que o desejo lhe seja dado, como formulado por Hamlet.

Há um filme que ilustrou maravilhosamente esse desencanto e uma sexualidade reduzida a um fazer, a uma ação, sem erotismo. Trata-se do filme americano Shame, de Steve McQueen (2011), com Michael Fassbender e Carey Mulligan.

Shame mostra a vida de Brandon, jovem trader e sex addict: encontros furtivos e fugazes; frequenta prostitutas; assiste a filmes pornôs no trabalho e em casa; masturbação compulsiva sobre o fundo de saídas nas baladas. O filme é extraordinário por mostrar maravilhosamente bem como o sujeito se esforça por preencher o vazio e, ao mesmo tempo, as formas de preencher o vazio na modernidade, em um mundo de traders tecido sob o ideal de independência: é no corpo, na busca de um gozo permanente e imediato, como o sujeito tenta tamponar o vazio.

Esse personagem não supõe nada de um saber não sabido sobre si mesmo, abandona-se não ao destino feito pelo inconsciente, mas a um consumo no qual se anula toda divisão na estrita dependência corporal e que torna impossível dar forma a um caminho. Em outras palavras, o sintoma está desinvestido e levado à adição. O que fica? Fica Shame, a vergonha, afeto fundamental do laço com o outro, que mostra não se tratar aqui de um vazio foraclusivo, de um vazio psicótico. Brandon é sensível ao outro, ao efeito do significante, mas não consegue elaborar a hipótese do saber inconsciente; ele se defende da vergonha no acting, na masturbação compulsiva – uma defesa que não aspira mais que se tornar demanda ao outro.

Identificações e identidades

Em que se transforma a prática da psicanálise quando o que vem no lugar de um questionamento sobre si mesmo são as normas plurais e identitárias? Quero dizer, que ocultam o mínimo questionamento de um sujeito sobre si mesmo, a volta sobre si mesmo que abre a via de uma suposição de saber, que abre a via da transferência. As normas vêm exatamente no lugar da interpretação que constitui o princípio do método analítico.

Hoje, as identificações são impostas ao sujeito de maneira selvagem e pretendem fabricar identidades. Como? Reivindicando ser o que se diz. Sou o que digo: sou trans, sou negro, sou vegano, sou…: constituem normas de pleno direito. Alimentam o imaginário, não mais de um ideal cravado no corpo (ideal do eu). Enquanto pretendem representar uma chamada diversidade, empuxam ao mesmo: uma captura imaginária pelo mesmo; é o que captamos na psicanálise como um espelho mortífero, é esse espelho que serve para ser como os mesmos de uma comunidade, parecendo a eles sob o fundo de “sou isso, sou assim”, que é oferecido ao sujeito.

No fundo, os significantes-mestres etiquetados introduzem um forçamento identificatório no sentido de uma identidade fixa. Por que digo forçamento? Porque essa identidade está separada da experiência das relações.

Nesse digo o que sou e sou o que digo a palavra precede todo questionamento do sujeito sobre si mesmo, suprime qualquer interpretação. O sujeito está fixado em uma identidade que o fixa, embora ela ordene um gozo que não é forçosamente o seu. Nesse sentido, não é uma verdadeira nomeação, isto é, um encontro de um significante e do gozo para um sujeito que fixa o nome de seu gozo próprio. O valor da experiência de gozo está escotomizado e, em seu lugar, vem um significante-mestre da época. É o registro da identificação standard que faz o sujeito entrar na fila.

A questão da identificação é central se quisermos considerar o que não se reduz ao espelho (sou como os outros dessa comunidade).

O que o estádio do espelho coloca em cena?

Por exemplo, no espelho do sujeito, uma criança espera um sinal, um gesto para validar algo que será dele, validar que essa imagem é bela, amável. O Outro, portanto, está presente no júbilo da criança. Não se vê que se olha nos olhos do Outro. Olha-se a partir dos olhos do Outro. É o ponto a partir do qual alguém se identifica. O ponto a partir do qual essa imagem do eu ideal (imagem do eu ideal) é olhada. É o Ideal do eu. No melhor dos casos, a criança vai introjetar o Ideal do eu sob a forma de um significante e logo irá regular seu eu ideal a partir desse Ideal do eu.

O homem dirigindo seu magnífico carro, a mulher com seus vestidos lindos, gozam de uma certa imagem porque estão sob o olhar do Outro. Interpretam que o Outro os ama, os quer assim. As imagens não são nada mais se não forem atraentes, se não forem coloridas e, o desejo do Outro é o que dá esse sabor.

É a função da visão: me vejo e me reconheço no espelho, o Nome-do-Pai, a função do Outro, agrega a mais valia do olhar, isto é, a dimensão na qual o sujeito se sente olhado metaforicamente pelo Outro, eleito, mimado ou odiado. Isso permite ao sujeito se separar do objeto. É essa dimensão que lhe permite se apreender como objeto do Outro no fantasma. O sujeito avança desse modo na vida como criança preferida do pai, ou detestado ou rechaçado. Entre os significantes, circula o objeto que se separou do corpo: a voz que chama, o olhar que captura, a boca que devora, é o objeto mais-de-gozar que concentra, orienta o gozo do sujeito.

Na psicose, o objeto não se separa, o sujeito é olhado realmente pelo Outro, o sujeito está apontado sem metáfora. O objeto não circula. O S1 e o S2 estão em uma relação rígida, sem relação com o saber. Pega os ideais sem incorporá-los.

A identificação digamos subjetiva, a que provém do Ideal do eu, pelo contrário, está no lugar onde o sujeito se olha (Miller, 1987), o lugar de onde se apreende e que é diferente do ali de onde ele se vê no espelho, em um espelho. Tal ponto de onde o sujeito se vê permanece cego para o sujeito; no entanto, é no lugar de seu gozo ignorado, “[…] na junção mais íntima do sentimento de vida no sujeito” (Lacan, 1998/1959, p. 565). É o lugar de onde se fala, é o que empuxa a falar: a causa que está nele e que anima sua palavra.

Se a família hoje também constitui um lugar, o crisol onde nasce um sujeito também é o lugar onde o sujeito poderá encontrar uma saída, poderá escapar por um fio através de seu próprio Ideal, como ponto fixo no horizonte. Isso supõe que possa clarificar o que constitui sua maneira singular de se satisfazer na existência.

É um fato, podemos ver proliferar identificações standard diretamente do corpo e, no entanto, privadas de imaginário: o corpo sexuado, a cor da pele, o corpo em peças soltas. O sujeito é capturado pela imagem de outro, de um duplo idealizado. É a natureza das figuras que fascinam, mas essa captura tem um preço: o sujeito pode se perder nela. O esmagamento do eu ideal pela imagem implica o risco da loucura, quando não há nenhuma mediação, sobretudo quando o sujeito não pode recorrer ao ponto de apoio essencial que é o ponto de onde ele se olha, como um ponto de fuga no horizonte, isto é, seu próprio Ideal ou desejo.

Lacan (1972/2003) havia profetizado a ascensão dos racismos ao poder. Antecipou-se ao Ideal da separação, que se configura hoje no separatismo contemporâneo: constituição de múltiplos grupos homogêneos. Homogêneos no sentido de uma causa compartilhada, como se pudessem dispor de um gozo comum. É a ilusão de compartilhar uma causa de gozo de maneira identitária. Poderíamos dizer que existe uma inmixão dos gozos. Lacan evoca que já não se sabe quem goza quando existem dois corpos.

No entanto, o gozo não se compartilha, é gozo do UM

A dimensão identitária confunde os caminhos porque nos fornece a ilusão de que poderia existir ali um gozo comum. A psicanálise justamente desvenda o que produz a ilusão do gozo compartilhado. E se essa palavra – a palavra autêntica é escutada – é operante, é o que permite extrair com clareza as relações de um sujeito com o outro de sua família, o outro do amor e do desejo. Se assinalo o valor da experiência é porque a psicanálise é uma experiência de palavra absolutamente única. Hoje se deixa de lado o valor da experiência, separa-se o sujeito de sua língua e de seus significantes próprios e passam a se referir a uma causalidade biológica ou neurológica. A evacuação do sujeito, como ser de palavra e gozo, é inversamente proporcional à ascensão ao poder da responsabilidade jurídica do cidadão. O indivíduo se torna puro sujeito da vontade, torna-se responsável do seu mal-estar, invoca-se sua má vontade.

É preciso dizer por que a psicanálise é uma experiência única da palavra. Para isso, tomo como referência essencial esta frase de Lacan (1972/2003, p. 448): “Que se diga fica esquecido por trás do que se diz em o que se ouve”. A frase de Jacques Lacan é tomada de “O aturdito”. Tal escrito está datado de 14 de julho de 1972, conclui o Seminário …ou pior e anuncia o Seminário Mais, ainda.

Perguntas

Estudante: A pergunta é sobre os adolescentes porque, apesar de ser um grupo etário com tanto potencial e com todas as possibilidades abertas, às vezes lhes custa falar. Dado que a psicanálise é uma prática que tem lugar, sobretudo nos consultórios, como pensam, na psicanálise, na Escola da Causa Freudiana? Qual seria o modo ou o lugar de introduzir um significante, esse significante que está em falta? Seria através do consultório privado ou em determinadas instituições?

C. Alberti: Os analistas não decidem como a demanda se apresenta, então, o que não posso responder é que, para alguns adolescentes, quando não há possibilidade de falar, não somente porque sejam psicóticos ou autistas, quando a palavra não é possível, sim é possível estabelecer um laço com um lugar e não com uma pessoa, aí as instituições têm todo o seu valor. Primeiro porque têm confiança em um lugar onde se apoiar e, depois do lugar, podem fazer um caminho transferencial em direção a uma pessoa, por que não, a um analista. Parece-me uma pergunta muito atual porque é o que tentei dizer em minha conferência: agora os sujeitos não se apresentam com uma queixa, mas com uma impossibilidade de falar, ou, de outro modo, com uma banalização do todo. É claro que vivem fraturas, traumatismos, mas tudo é igual, nada parece afetá-los. Então, temos que fazer todo um trajeto para esclarecer o mal-estar porque o mal-estar já não está aqui, o adolescente não pode falar sobre isso, é preciso fazer um caminho até o sujeito, para que o sujeito surja.

Estudante: O que fazemos quando esvaziamos um significante frente à posição de filho ideal ou de filho expulso de um grupo familiar? Esvaziamos o significante, e depois? Não há uma ressignificação dessa posição em algum momento? O que fica?

C. Alberti: É uma boa pergunta. Extrair os significantes que nos marcaram não é simples porque na maior parte do tempo não os conhecemos, estamos focados em identificações do espelho: eu sou como meu pai, eu sou como minha mãe, minha irmã, mas a identificação não é isso. A identificação é extrair de onde me identifico, a partir de qual ponto de vista me identifico e pode haver uma perspectiva sobre o mal-entendido disso, como interpretei todo o tempo de má forma isso que o outro disse. É um mal-entendido que constitui uma prisão, mas é minha própria prisão, que eu mesmo fabriquei. Estabelecer um saber sobre isso já é um modo de se separar disso, é entender o mal-entendido e que os pais fizeram o que foi possível.

Estudante: Falando um pouco da dessexualização, me deu curiosidade em saber da sua experiência, como você nota as consequências nos adolescentes da divulgação e naturalização da pornografia? Como isso os afeta com relação à sexualidade, ao desejo, ao gozo?

C. Alberti: Em minha experiência, o que me parece que temos de destacar é a dessexualização, ou seja, quando a sexualidade se reduz a uma ação, sem desejo, sem sintoma. Não há sexualidade harmoniosa, não existe porque somos seres falantes, então falar complica tudo! Às vezes surge a ilusão da pornografia ou de um aplicativo de encontros, com o qual podemos nos encontrar sem falar, mas não se pode. Então, a sexualidade humana é marcada pelos sintomas e hoje os sujeitos se apresentam como se a sexualidade fosse indiferente, como se fosse algo como beber um copo d’água, sem muita importância. Logo, a experiência da palavra em análise mostra muito claramente o que o sujeito encontrou com o outro. É o valor da experiência.

Quando o sujeito diz: eu sou “bi”, perguntamos: como isso ocorre em você? é algo muito diferente, vê-se que o sujeito faz um trajeto, livrando-se dos significantes standards para se aproximar de si mesmo, do que viveu, alegria ou decepção ou falta de satisfação, esse é o valor da experiência. Ontem falei sobre um filme[2] que seduziu toda a França porque é um filme (não é uma ficção, é uma realidade) sobre um menino de 7 anos que disse uma única vez “queria ser uma menina”, e com essa única palavra, a mãe, sem a bússola do que significa hoje ser uma mulher ou ser um homem, sem a bússola do falo, vai ao médico e este diz “vamos fazer uma transição, vamos começar o processo”. Considerar que um menino de 7 anos pode decidir sobre sua identificação de gênero é uma loucura. No entanto, esse filme seduziu toda a França: “Oh, é maravilhoso respeitar a liberdade da criança”, mas é uma liberdade mortífera porque a infância necessita de um tempo, tempo de fazer com seu sexo, tempo de perguntar, de interpretar o que é uma mulher, o que é um homem, a partir dos ditos do pai, da mãe, então há todo um caminho. Não é suficiente dizer “sou…”.

Estudante: Pensando nisso de que há que ir à juventude e recolocar o lugar da psicanálise, onde é que temos de estar agora para estar na emergência de onde essas novas juventudes vão expor o que lhes ocorre ou esse silêncio ou esse não poder falar? Onde teremos de estar?

C. Alberti: Quando falo de ir em direção à juventude, quero dizer muitas coisas. Às vezes, será trabalhar em instituição, mas é também difundir a oferta da psicanálise. Hoje estou fazendo isso! Às vezes, é falar com os vizinhos. Lacan dizia que falamos à la cantonade, aleatoriamente; não sei o que vão escutar, mas falamos com eles. Às vezes, são os professores que constituem o Outro que permite o trajeto para falar de psicanálise.

Estudante: Há duas questões que me parecem difíceis: uma é o racismo e outra é a questão cisgênero. Ambas me preocupam porque em nosso país o respeito pelas diversidades, pelas crianças trans, por exemplo, permitiu que possam viver em suas casas. Ano passado, Marcus André Vieira disse que as identificações imaginárias não somente são mortíferas, porque no Brasil os negros, por exemplo, é possível identificar-se e que a polícia não os matem. Há identificações imaginárias que nos permitem existir. Minha pergunta é como fazer para não ficarmos encurralados no mortífero que é o supermercado das identidades construído pelo capitalismo, pelo branco, e que, para isso, teve de eliminar muitos. Como fazer para nos perguntarmos isso não só no consultório, mas no social, para que nos permita enlaçar-nos e que nos faça buscar esse ponto de fuga.

C. Alberti: Parece-me importar separar os discursos, que são os discursos dominantes, também sobre os trans, do discurso analítico. Não posso responder sobre como temos de fazer a respeito do social ou da política, não é meu lugar de fala sobre isso hoje, mas me parece importante separar o discurso de uma causa comum; é claro que é possível compartilhar uma causa comum (política ou artística), mas na psicanálise sabemos que a ilusão da modernidade é a de compartilhar uma causa de maneira identitária, isto é, existir um gozo comum, compartilhar um gozo que é impossível.

Quando uma criança ou um jovem diz “sou…”, não sabemos o que diz, e sobretudo essa frase não diz nada de seu gozo, da maneira com a qual o jovem vive suas relações; só temos que lhe perguntar, temos que dar lugar a um espaço para interpretar, perguntar. Ok! Hoje você diz que é isso, mas em três dias talvez você diga “sou… outra coisa”. Isso é falar. Não podemos nos apoiar somente sobre uma palavra. É preciso reunir a palavra e a experiência do corpo e das relações. Assim, vemos outra coisa que de outro modo não iria aparecer. Por isso, quando Lacan falava do racismo, falou das fraternidades do corpo, a ilusão de ser idêntico a partir do corpo, a cor do corpo, ou o gênero etc., isto é, tomar uma identificação que se pretenda identidade a partir somente do corpo não é possível.

Fabián Naparstek: Haveria muito mais para seguirmos conversando. Pontuo duas questões. A primeira é que sempre pensei ser muito difícil definir a época. Hoje, você nos fornece uma bússola, uma orientação: “olhemos os jovens, saberemos o que é a época”. É uma orientação fantástica. E a segunda questão, que é muito sensível para nós hoje, aqui na Argentina, é que existem lugares que são lugares para a palavra, e os jovens podem se dirigir a esses lugares, os Centros de saúde, os hospitais etc. E você sublinhou como preservar esses verdadeiros lugares da palavra. Muito obrigado, Christiane Alberti!

Estabelecimento em espanhol: Roxana Vogler

Tradução: Gustavo Ramos

Revisão: Paola Salinas


REFERENCIAS

  • Bauman, Z. (2004). Modernidade líquida (C. A. Medeiros, Trad.). Zahar.

  • Freud, S. (2010). “Uma dificuldade da psicanálise”. In História de uma neurose infantil (“O homem dos lobos”), Além do princípio do prazer e outros textos (Vol. 14, pp. 240-252). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917)

  • Lacan, J. (1998). “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”. In Escritos (pp. 537-590). Jorge Zahar Ed. (Trabalho original publicado em 1958)

  • Lacan, J. (1978). Discours de Jacques Lacan à l’Université de Milan le 12 mai 1972. In Lacan in Italia 1953-1978 (pp. 32-55). La Salamandra. (Trabalho original apresentado em 1972)

  • Lacan, J. (1988). O seminário, livro 3: As psicoses. Jorge Zahar Ed. (Trabalho original publicado em 1955-1956)

  • Lacan, J. (2003). “O aturdito”. In Outros escritos (pp. 448-497). Jorge Zahar Ed. (Trabalho original publicado em 1972)

  • Lacan, J. (2003). “Televisão”. In Outros escritos (pp. 508-543). Jorge Zahar Ed. (Trabalho original publicado em 1973)

  • Lacan, J. (2007). O seminário, livro 23: O sinthoma. Zahar. (Trabalho original publicado em 1975-1976)

  • La Sagna, P. (2009). Quel avenir pour l’adolescence? Mental, (23), 17-28.

  • McQueen, S. (Director). (2011). Shame [Película]. Fox Searchlight Pictures.

  • Miller, J.-A. (1986-1987). Ce qui fait insigne. Cours de l’orientation lacanienne.


[1]              Quero agradecer às autoridades da Facultad de Psicología, especialmente ao decano Jorge Biglieri, que nos recebeu previamente, e também às Cátedras psicanalíticas da orientação lacaniana da Facultad que trabalharam muito por este evento, especialmente a Fabián Naparstek e Inés Sotelo, bem como a Sílvia Baudini pela tradução de minha conferência.

[2]              N.E: Lifshitz, S. (Diretor). (2020). Petite fille [Filme documental]. Agat Films & Cie.

nebra: OMS. Recuperado de https://icd.who.int/