Da recusa do feminino a um encontro possível

Del rechazo de lo femenino a un encuentro posible
Du refus du féminin à une possible reencontre
From the refusal of the feminine to a possible encounter

CRISTIANE DE FREITAS CUNHA GRILLO

Psicanalista, membro da EBP/AMP, professora titular da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), coordenadora do Programa de Extensão e Pesquisa Janela da Escuta

cristianedefreitascunha@gmail.com

ELIANE COSTA DIAS

Psicanalista, membro da EBP/AMP, pesquisadora do Laboratório Psicanálise, Saúde e Instituição do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP)

eliane4041@hotmail.com

ANDRÉA CHICRI TORGA MATIASSI

Psicanalista, integrante da equipe de coordenação do Janela da Escuta

andreactorga@yahoo.com.br

DOMENICO COSENZA

Psicanalista, membro da SLP/AMP, docente do Instituto Freudiano e da Universidade de Pavia

domenico.cosenza@unipv.it

FABIÁN FAJNWAKS

Psicanalista, membro da ECF e da EOL/AMP, Professor do Departamento de Psicanálise da Universidade Paris 8

fabian.fajnwaks@gmail.com

LUIS FRANCISCO ESPÍNDOLA CAMARGO

Psicanalista, membro da EBP/AMP, professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo

lfe.camargo@gmail.com

JOÃO CAMPOS

Graduando em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e extensionista do Programa de Extensão Janela da Escuta

j.camposlambert@gmail.com

RESUMO

O artigo apresenta um recorte de uma pesquisa multicêntrica internacional sobre a recusa na clínica das adolescências trans. Inspirados na vigorosa construção teórico-clínica de Domenico Cosenza sobre a recusa na anorexia, investiga-se as declinações da recusa na prática clínica com adolescentes trans. Trata-se sobretudo da recusa ao feminino e consequentemente, da recusa a uma posição sexuada. Uma vinheta clínica nos ensina sobre essa modalidade de recusa e sobre a possibilidade da construção de uma clínica da borda, em um tratamento de orientação psicanalítica.

PALABRAS CHAVE: adolescência | transexualidade | recusa | psicanálise

RESUMEN

El artículo presenta un extracto de una investigación multicéntrica internacional sobre el rechazo en la clínica de adolescentes trans. Inspirándose en la vigorosa construcción teórico-clínica de Domenico Cosenza sobre el rechazo en la anorexia, se investigan las declinaciones del rechazo en la práctica clínica con adolescentes trans. Es ante todo el rechazo de lo femenino y, en consecuencia, el rechazo de una posición sexuada. Una viñeta clínica nos enseña sobre este tipo de rechazo y sobre la posibilidad de construir una clínica de borde, en un tratamiento de orientación psicoanalítica.

PALABRAS CLAVE: adolescencia | transexualidad | rechazo | psicoanálisis

ABSTRACT

Psychoanalysis bets on discourse as a social bond which includes misunderstanding, bears the imprint of the remains not absorbed by identifications and ideas, nourishing itself, paradoxically, on the radical loneliness of each one with the most singular of its mode of jouissance, which sets the tone for the analyst’s bonds with the social other, with the master’s discourse, and with politics.

KEY WORDS: Social bond | Discourse | Power | Patriarchy | Phallocentrism

Falamos de uma experiência da psicanálise na universidade e a partir dela, na cidade, nesse entrelaçamento do ensino, extensão e pesquisa.

Uma experiência que tenta perceber a obscuridade, para “escrever mergulhando a pena nas trevas do presente”(Agamben, 2009, p.65). Trata-se de não coincidir, de não se adequar ao tempo, de ser inatual, de “ser pontual num compromisso ao qual se pode apenas faltar” (Agamben, 2009, p.65).

Trata-se de ocupar um lugar provisório, um entre, uma terceira margem. De se saber habitado, parasitado pela linguagem, por uma língua sempre estrangeira. Marcado por desencontros inevitáveis, pela assimetria estrutural entre os seres falantes. A partir dessas marcas, pode-se considerar a psicanálise como uma possibilidade de fracassar de um modo melhor (Miller, 2008). De fazer ruir as identificações, de lidar com o vazio, com o avesso. De provocar uma abertura para a contingência, para o que rateia, para o que não serve e que nos coloca a seu serviço. Uma subversão que desvela a erosão dos ideais, dos semblantes. Que provoca uma desistência do furor sanandi, de querer o bem, de querer salvar o outro. Se há uma salvação, é pelos dejetos (Miller, 2010).

Essa subversão delicada e potente se faz notar no ensino, ao entrelaçar o saber, o saber fazer, com o nosso infinito particular que é o sintoma. Com a pesquisa, com as perguntas que emergem dos impasses, que provocam respostas dos que vivem os impasses, não conclusões sempre apressadas de quem investiga. Com a extensão, que coloca em cena o vivo da clínica, da vida.

O Janela da Escuta surgiu como um cenário de ensino para os estudantes de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais. O Professor Roberto Assis os instigava a fazer uma pergunta a mais, a abrir a janela da escuta. Uma clínica do resto se configurava ali. Adolescentes que não aderiam ao tratamento, diabéticos descontrolados, obesos mórbidos, infratores, adolescentes que se drogavam, que fracassavam na escola, que se cortavam, com trajetória de vida nas ruas – os encaminhamentos desvelavam a recusa, a desistência, um não querer saber. Um resto da ciência, da técnica. Os exilados do ideal de saúde e bem-estar. Sem direito à recusa do bem oferecido e imposto, sem direito à palavra, à singularidade.

Há dezesseis anos, o Janela da Escuta é um laboratório inter-disciplinar, com a marca do hífen, tão caro a Judith Miller, orientado pela ética da psicanálise, o que se traduz na premissa o adolescente especialista de si. Os profissionais estão ali exilados do saber hegemônico das suas disciplinas. Recusamos um saber a priori para provocar a emergência do saber inconsciente. Saber-se estrangeiro, exilado, permite suportar melhor a estranheza do Outro.

O trabalho do laboratório se articula ao campo de investigação da Universidade, ao CIEN, às Redes de Psicanálise Aplicada e Universitária Americana e ao Observatório de Gênero, Biopolítica e Transexualidade da FAPOL.

Desde 2016, temos recebido no Janela da Escuta adolescentes que se nomeiam travestis, homens trans, mulheres trans, pessoas trans não binárias etc. Trata-se de acolher a fala de cada sujeito, para que uma palavra inédita possa surgir (Briole, 2020). O trabalho orientado pela psicanálise lacaniana coloca em relevo a singularidade radical, sem desconsiderar um coletivo de singulares. Não se pode ignorar o traço da repetição que marca os casos, um a um, sem constituir uma série, mas um coletivo. Os adolescentes trans que chegam ao Janela da Escuta são predominantemente negros, marcados pela violência do encarceramento, do comércio dos corpos. Não retrocedemos de uma interlocução no campo político, a partir de uma clínica interdisciplinar, orientada pela psicanálise lacaniana.

Na discussão de casos de sujeitos trans em nossas atividades, no âmbito do Janela da Escuta e do Observatório de Gênero, Biopolítica e Transexualidade da FAPOL, persiste a questão: qual é o estatuto de recusa em jogo nesses casos?

Na conferência Modalidades del rechazo, Miller, afirma que a experiência analítica nos impõe a presença de um sentimento de recusa que se faz presente na clínica, inclusive do neurótico, e nos convoca a “descrever tal sentimento de recusa e precisar seus fundamentos lógicos” (Miller, 1991[2007], p. 271, tradução nossa).

Retomando o texto de Freud, A negação, a fim de discutir as diferentes formas de negação e, finalmente, diferenciar a problemática do fim da análise a partir da Verneinung, Miller (1991[2007]) nos diz que devemos distinguir duas ordens na questão da recusa: uma recusa ao nível da Verneinung e outra ao nível da defesa. A Verneinung, destaca Miller, é um dizer «não» ao nível da palavra, é uma negação concernente ao significante

No campo da recusa como negação, da recusa da verdade inconsciente que corre por debaixo da barra, na clínica, segundo Miller (1991[2007]), a recusa do sujeito como um “não” pode ser a expressão de sua identificação com seu ser enquanto “recusado”.

Quanto à recusa ao nível da defesa, envolveria uma negação relativa ao gozo impossível de negativar. Miller (1991[2007]) nos lembra que nos capítulos 22 e 23 do Seminário 8: A transferência, Lacan retoma o termo Versagung e descarta a tradução por “frustração”, para indicar que se trata de um termo muito mais próximo da recusa, uma recusa primordial, equiparável à Urverdrängungt (o recalque originário), equivalente a um ponto indizível. E nos deixa uma questão: “Como pensar a recusa quando se trata do gozo pulsional?” (Miller, 1991[2007], p. 282).

Em uma conversação organizada pelo Observatório de Gênero, Biopolítica e Transexualidade (EBP) da FAPOL[i], em novembro de 2021, Miquel Bassols destaca que a expressão Die Ablehnung der Weiblichkeit, empregada por Freud no texto Análise Terminável e Interminável (1937/[2018]), quando aborda a “rocha básica” da castração com que se depara toda análise, foi traduzida de duas formas diferentes em espanhol: como “recusa da feminilidade” (na tradução de Lopez Ballesteros) e como “desautorização da feminilidade” (na tradução de José L. Etcheverry).

Bassols, afirma empregar a tradução de Etcheverry – desautorização da feminilidade – por entender que nesta passagem do texto de 1937, Freud aponta a uma impossibilidade frente à feminilidade que seria o que há de comum entre os homens e as mulheres, ou seja, algo da estrutura da defesa fundamental do sujeito que, segundo Bassols, à luz do último ensino de Lacan, podemos entender como uma defesa contra “o feminino”. O feminino como aquilo que da satisfação pulsional, do gozo, é impossível de negativar, pois não se deixa incluir no binarismo da articulação significante, não se deixa metabolizar na lógica fálica do significante.

O autor enfatiza que, assim como a pulsão, o feminino, enquanto gozo impossível de negativar, divide o sujeito por estrutura, numa defesa fundamental que não é da ordem da negação (de um dizer ‘não’ ao nível do significante) nem da recusa, uma vez que, segundo Freud, a pulsão não se pode recalcar.

Frente ao real desse gozo que não se inscreve, o sujeito só pode dividir-se em uma operação de defesa (recalque primordial). A partir dessa defesa fundamental, então, poderíamos distinguir diferentes modos de recusa da hiância, da fratura estrutural que está posta para todo ser falante.

Acompanhando o argumento de Bassols nesta conversação, levantamos a hipótese de que para muitos sujeitos trans o que é recusado não diz respeito à feminilidade/masculinidade, mas a essa dimensão da existência impossível de significantizar – o gozo que habita o corpo.

François Ansermet (2018) nos convida a nos deixarmos ensinar pela clínica com o transexual. A partir da experiência clínica com adolescentes trans, elaboramos uma pesquisa envolvendo o Programa de Extensão e Pesquisa Janela da Escuta da UFMG, o Laboratório Psicanálise, Saúde e Instituição do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), a Universidade Paris 8, a Universidade de Pavia e o Observatório de Gênero, Biopolítica e Transexualidade da FAPOL. Discutimos caso a caso em um ateliê clínico, investigando a dimensão da recusa em cada um deles, inspirados no vigoroso trabalho de Domenico Cosenza sobre a recusa na anorexia (Cosenza, 2018).

A partir da orientação lacaniana, Domenico Cosenza (2018) toma a recusa como uma chave de leitura na clínica da anorexia e propõe um trabalho no campo da lógica, não restrito à fenomenologia. Segundo o autor, explorar a função da recusa “permite revelar a polifonia diferencial não apenas das estruturas subjetivas das pacientes anoréxicas, mas, em última instância, as suas modalidades singulares e irredutíveis de gozo”. (Cosenza, 2018, p.166)

Na clínica das adolescências trans no Janela da Escuta, um primeiro ponto que captura nossa atenção é a recusa do Outro, uma recusa do campo social desses sujeitos, muitos deles negros, periféricos, dissidentes da norma cis e heterossexual. Sujeitos cujas trajetórias revelam rupturas com as famílias, com a escola, com as redes de saúde e assistência social e capturas pelo sistema jurídico e socioeducativo. Há uma violência discursiva que marca esses corpos, sujeitos a uma violência concreta e ao extermínio. Esse ponto, da homofobia, da transfobia e do racismo, configura o cenário dessa clínica e se imprime na leitura de cada caso, sempre tomado na sua singularidade.

Procura-se acolher e investigar a dimensão da recusa do Outro na fala de cada sujeito. A careta imaginária desse Outro pode marcar a experiência do estádio do espelho, os significantes que vem do Outro se inscrevem nos corpos, podendo configurar uma recusa da imagem, do corpo, que é sempre um outro. Observa-se uma recusa do nome, da origem, do feminino. Em alguns casos, verifica-se uma recusa da própria transição, cujos vestígios devem ser apagados.

A recusa pode ser função do desejo, no campo da neurose, ou do gozo, em uma perspectiva transestrutural. Como função do desejo, observa-se a recusa na vertente dialética e metafórica. Nesse campo, haveria uma demanda inconsciente endereçada ao Outro (Cosenza, 2018). Alguns casos de adolescentes trans portam a pergunta sobre o desejo do Outro e envelopam uma demanda de amor ou uma tentativa de estabelecer uma separação concernente à demanda do Outro (Cosenza, 2018).

A recusa como função do gozo é transestrutural. Ela pode assumir a função de defesa contra o real ou um esforço de separação na clínica das psicoses. A leitura da recusa como defesa do real, do sexual, do gozo invasivo, demonstra sua via anti-metafórica.

A recusa na vertente de defesa do real pode se evidenciar nos casos em que há uma recusa do corpo: no rechaço ao corpo anatômico o que se recusa é o corpo sexuado e o gozo que o toma. Para alguns adolescentes trans, a solicitação pelo bloqueio hormonal da puberdade coloca em ato um desejo de apagamento dos caracteres sexuais, como via para conter a angústia e o horror frente à transformação puberal, experienciada como invasão.

Domenico Cosenza (2018) ressalta uma quarta vertente, da recusa como modalidade de gozo, não mais a recusa do gozo, mas o gozo da recusa, o que constitui o ponto mais enigmático da clínica da anorexia.

Na clínica com sujeitos que se nomeiam trans, pode-se observar em alguns casos, a recusa da significação fálica, apontada por Lacan no Seminário 19: … ou pior (1971-72[2012], p. 17), como o “erro comum” de confundir o valor fálico com a anatomia. Ao rechaçar o sexo que lhe foi atribuído, um sujeito trans acredita que pode se fazer reconhecer como homem ou mulher modificando diretamente a anatomia.

Em alguns casos, parece haver sobretudo uma recusa do feminino e consequentemente, uma recusa de uma posição sexuada, como se observa na seguinte vinheta clínica.

Tobias chega ao Janela da Escuta aos 19 anos, com demanda de “se hormonizar sem causar danos à saúde”. Fala que, desde a infância, se veste com roupas masculinas. Na adolescência, iniciou um processo de criação das suas roupas (os pais têm uma tecelagem) e dos desenhos das tatuagens, que hoje cobrem seu corpo. Aos 16 anos, começou a fazer musculação e a se hormonizar clandestinamente.

Sobre a vida amorosa, fala de um único relacionamento, com uma moça, por cinco anos, antes e durante a terapia hormonal. “A transição provocou a ruptura”, segundo Tobias. Sempre recusou a nomeação lésbica.

Aos 18 anos, solicitou a mudança do nome no registro civil. Quando chegou ao Janela da Escuta, usava faixas e coletes para esconder as mamas e esperava a realização da mastectomia. O pai havia lhe prometido um carro, mas Tobias preferiu a cirurgia. Relata que o pai o acompanhava nas consultas com o cirurgião, frisando que “meu outro filho é normal”. O cirurgião pediu um relatório, que foi elaborado pela analista com Tobias. Ele escolheu um procedimento que deixaria uma cicatriz menor, mas depois da cirurgia, que resultou em uma cicatriz hipertrófica, recusou uma nova intervenção que poderia atenuar essa marca. Tobias fala que queria fazer a mastectomia para poder tirar a camisa na praia, no clube. Entretanto, mesmo após a cirurgia, tem medo de sair de casa, de ser agredido. Acha que algo diferente em si pode se tornar visível, como a voz: “algo do feminino pode emergir”. Ele consente com a cicatriz, desistindo de tirar a camisa. As roupas e tatuagens criadas por ele continuam a velar o corpo. Como aponta Laurent (2016, p. 18): “esse corpo sempre escapa, como superfície falha de inscrição do trauma do gozo”.

Quando Tobias revelou sua transexualidade, a mãe deixou de falar com ele por algum tempo. Até hoje, a mãe não respeita seu nome e os pronomes. Ele fala da mãe como “o cérebro, o homem da empresa familiar”. O pai está sempre envolvido com obras inacabadas, com carros que não funcionam. Tobias diz que é como o pai. O irmão mais novo sempre se envolvia em confusões e Tobias assumia a culpa por ele. Atualmente, o irmão se declarou bissexual e está apaixonado por seu melhor amigo. Tobias relata sua decepção, pois pensava que os dois iriam sair juntos “para ficar com as mulheres”. A revelação do irmão foi bem acolhida pela família, sobretudo pela mãe.

Tobias se formou na universidade e pensa em fazer outro curso. Ele agora se dedica à tecelagem, produzindo roupas para bebês, em uma fábrica própria, mas vinculada à empresa familiar. A mãe se torna um obstáculo no trabalho, atrasando a etapa de produção que lhe cabe.

As tatuagens proliferam e ele se exaspera quando alguém pergunta pelo sentido das inscrições no corpo que, para ele, são “marcas singulares que possibilitam se identificar com o corpo, não tendo um sentido adicional”.

Seus breves encontros com as mulheres são marcados pela angústia. Nunca permitiu que alguém tocasse ou visse sua genitália:ficaria na posição de mulher, e não é isso”. Depois de seu último encontro com uma mulher no carnaval, postou nas redes sociais algumas recomendações sobre o que não se deve falar com e sobre um homem trans: “fiquei com uma mulher”. Ele recusa as referências e os vestígios do feminino. E restringe sua escolha amorosa e sexual às “mulheres cis, verdadeiras”. No entanto, seu medo de não as satisfazer sexualmente e a recusa em desvelar seu corpo, impedem o encontro. De alguma forma, ele faz a relação sexual existir, pela via da impossibilidade. Se houvesse a satisfação sexual, se houvesse a mulher verdadeira, a relação sexual poderia também existir.

Essa vinheta nos ensina algo inerente à solidão do ser falante:

A não relação sexual quer dizer que não há dois. O “dois” não está no mesmo nível que há Um (il y a de l’Un), o “dois” está no nível do delírio. Não há dois, não há mais que Um que se repete na iteração. E ainda acrescentaria uma terceira fórmula: há o corpo. Nesse nível, estão em relação os dois “há” que devem ser pensados. Não são os dois sexos, e sim o Um e seu corpo. (Miller, 2011[inédito], p. 115).

Tobias recusa o feminino, a contingência, o amor. Ele nos ensina que o corpo é uma alteridade radical, que o gozo é um deserto sem oásis, apenas com miragens (Bassols, 2021).

Como o pai, ele se dedica a uma obra destinada a ser inacabada. No entanto, no percurso psicanalítico, há a possibilidade daquilo que não funciona, não funcionar de um modo melhor (Miller, 2008).

A construção do caso sugere uma identificação primordial de Tobias com seu pai, “sou como o meu pai”, que implicará numa modalidade de recusa a quaisquer traços femininos, uma ilustração de uma expulsão (Austossung) primordial diante das possíveis identificações relacionadas à mãe, determinante da sua constituição psíquica. Por exemplo, o recobrimento do corpo com as tatuagens, a partir desta hipótese, poderia ser interpretado como a construção de uma capa sobre o corpo feminino, um modo de recusa do corpo anatômico do sexo feminino visando apagar os seus traços por meio da construção de uma nova superfície. Tal hipótese interpretativa tem como consequência pensarmos a estratégia de defesa de Tobias como uma modalidade de recusa, um tipo de defesa contra à castração. O operador de leitura seria a significação fálica. Assim, resta saber sobre o caso qual o tipo de defesa usada pelo sujeito: negação, denegação ou forclusão? Por um lado, sabe-se que não cabe ao psicanalista sugerir identificações a um sujeito, mas colocar em funcionamento o dispositivo da psicanálise, visando justamente analisar as identificações que estruturam sua constituição simbólica.

Atualmente, Tobias conhece uma mulher em um site e decide marcar um encontro, não sem antes pedir uma sessão extra para a analista. Ele fala dessa mulher bela, “tudo o que eu queria”. Mas também impulsiva, que o deixa sem ar. Depois de uma briga, ele decide dar mais uma chance para o relacionamento, após concluir que os dois estão tentando. Tobias pode se servir da análise para permitir-se uma abertura à contingência de um encontro.

O Janela da Escuta, ao tomar o adolescente como especialista de si, como pesquisador, se torna um laboratório de soluções, como Ansermet (2018) ressaltou em uma conversação clínica do Observatório de Gênero, Biopolítica e Transexualidade, na qual um caso do Janela foi discutido.

Gustavo Dessals (2021), lê uma inscrição na parede de uma pequena cidade medieval espanhola: pegarme um tiro, 0 euros. De perto, ele vê que a palavra tiro foi rasurada e trocada por trio. Ele pontua que um giro decisivo se inscreve com algo do sexual e do enigmático e pode-se ir da solidão gratuita, do fim do caminho a outra parte, levado pela vida e pelo sorriso do desejo. A marca da mordedura da palavra ainda pode ser lida, mas talvez uma reescritura possa ter produzido um pequeno desvio na trajetória da repetição.

A aposta do analista na clínica com sujeitos trans, com os corpos falantes, é, portanto, a aposta em uma clínica da singularidade do sinthoma.

Se a recusa ao feminino se faz pela via da abolição da feminilidade, seja dos caracteres sexuais secundários, seja das insígnias e máscaras femininas, a nomeação trans pode possibilitar uma reinvenção da origem, do corpo e de um nome. Invenções inéditas, ainda que precárias e fugazes, podem ser forjadas e acolhidas no dispositivo analítico, sob transferência.

Nós nascemos, por assim dizer, provisoriamente em algum lugar; é pouco a pouco que compomos em nós o lugar de nossa origem, para nele nascer posteriormente e a cada dia de maneira mais definitiva (Rilke, apud Ansermet, 2003, p.26).

No Séminaire 21: Les Non-Dupes Errent (1972-73[inédito]), Lacan afirma que o “ser sexuado não se autoriza senão de si mesmo (…) e de alguns outros.” (1972-73[inédito], lição de 09/04/1974, tradução nossa). Segundo Fajnwaks (2020), autorizar-se de si mesmo significa que a posição sexuada não vem do Outro. Cada falasser tem que encontrar por si só, um modo de gozo que lhe permita tomar uma posição em relação ao gozo e ao desejo, uma posição sexuada. O autor destaca o papel da nomeação nesse processo:

Cada um deverá encontrar sua maneira de se nomear sexuado. Sublinho ‘se nomear’ e não ‘se dizer’, porque a sexualidade implica sempre uma dimensão real, que a nomeação implica mais além do ato de se dizer sexuado num sentido ou noutro” (Fajnwaks, 2020, p. 39).

O analista seria assim, o destinatário de nomeações do gozo não negativizável (Laurent, 2020). Segundo Laurent (2020, p. 51, tradução nossa): “A série de nomeações podem constituir uma borda, configurando uma nova topologia frente a real sem lei e ao Outro fraturado”.

Seguimos com a hipótese de que Tobias, no dispositivo de fala ofertado por uma analista, sob transferência, possa vir a forjar essa nomeação ou alguma outra invenção singular que lhe permita fazer desse corpo masculino, montado a partir das insígnias da masculinidade e do uso de hormônios, mais que um semblante, um corpo erógeno e erotizável.

[i] FAPOL – Federação Americana de Psicanálise da Orientação Lacaniana. https://fapol.org/pt/

REFERENCIAS

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