Estabilização e psicose ordinária: usos do sinthoma na clínica contemporânea

Estabilización y psicosis ordinaria: usos del sinthome en la clínica contemporánea
Stabilization and ordinary psychosis: uses of the sinthome in contemporary clinic

ROGÉRIO DE ANDRADE BARROS

Professor do curso de Psicologia da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Coordenador do Laboratório de Pesquisa em Psicanálise (LAPPSI/UEFS). Doutor em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGPSI/UFRJ). Membro da EBP/AMP

rabarros1@uefs.br

GIOVANA DE JESUS SANTOS

Graduanda no curso de Psicologia da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Voluntária no Programa de Estágio Voluntário de Iniciação (PEVIC/UEFS)

sgiovana170@gmail.com

RESUMO

Com o avanço no número de casos que chegam à clínica e não se enquadram no diagnóstico usual das psicoses clássicas, Jacques Allain-Miller propõe, a partir de três conversações, o conceito de psicose ordinária que rompe com o binarismo neurose-psicose pautados no déficit simbólico, ausência do Nome-do-Pai. A presente pesquisa tem por objetivo geral investigar o conceito de estabilização nas psicoses ordinárias, sobretudo a partir das formulações lacanianas sobre o sinthoma. Tendo como base referências psicanalíticas, trata-se de uma revisão de literatura. Como resultados, aponta-se que o psicótico é capaz de inventar formas de se manter estabilizado por meio do seu sinthoma. Sendo assim, a singularidade do ser de fala e o tratamento analítico podem estimular a construção de um sinthoma que enoda os registros e mantém a estabilidade psíquica

PALABRAS CHAVE: Psicose ordinária | Estabilização | Psicanálise | Clínica contemporânea

RESUMEN

Con el avance en el número de casos que llegan a la clínica y no se ajustan al diagnóstico habitual de psicosis clásicas, Jacques Allain-Miller propone, a partir de tres conversaciones, el concepto de psicosis ordinaria que rompe con el binarismo neurosis-psicosis basado en déficit. simbólico, ausencia del Nombre-del-Padre. La presente investigación tiene como objetivo investigar el concepto de estabilización en psicosis ordinarias, especialmente a partir de formulaciones lacanianas sobre el sinthome. Basado en referencias psicoanalíticas, esta es una revisión de la literatura. Como resultado, se señala que el psicótico es capaz de inventar formas de mantenerse estabilizado a través de su sinthome. Así, la singularidad del ser hablante y el tratamiento analítico pueden estimular la construcción de un sinthome que anuda los registros y mantiene la estabilidad psíquica

PALABRAS CLAVE: Psicosis ordinaria | Estabilización | Psicoanálisis | Clínica contemporánea

ABSTRACT

With the advance in the number of cases that arrive at the clinic and do not fit the usual diagnosis of classic psychoses, Jacques Allain-Miller proposes, from three conversations, the concept of ordinary psychosis that breaks with the neurosis-psychosis binarism based on deficit symbolic, absence of the Name-of-the-Father. The present research aims to investigate the concept of stabilization in ordinary psychoses, especially from Lacanian formulations about the sinthome. Based on psychoanalytic references, this is a literature review. As a result, it is pointed out that the psychotic is able to invent ways to remain stabilized through his sinthome. Thus, the singularity of the speech being and the analytical treatment can stimulate the construction of a sinthome that knots the registers and maintains psychic stability

KEY WORDS: Ordinary psychosis | Stabilization | Psychoanalysis | Contemporary clinic

Introdução

O presente artigo objetiva abordar a forma como a psicose se estabiliza, tendo como base as formulações de Lacan (1975-76 [2007]) propostas em seu Seminário, o sinthoma, e as atualizações millerianas daquilo que veio a nomear como psicoses ordinárias. Lacan (1975-76 [2007]), ao elaborar a teoria do sinthoma, afirma que cada ser de fala apresenta um modo singular de enodar o real, símbolo e imaginário, fazendo com que a estabilização nas psicoses se pluralize (BRODSKY, 2013).

Tratando-se da clínica psicanalítica, é necessário que sejam considerados os impasses que vêm sendo apresentados, cada vez mais, no diagnóstico contemporâneo das psicoses (LAENDER, 2010). Assim, os usos que o ser de fala faz do seu sinthoma podem ser compreendidos como uma possibilidade no tratamento analítico dos casos, cada vez menos raros, de psicóticos ordinários. Na psicanálise, a psicose é exemplificada pelo caso Schreber que, com seus delírios e alucinações, não deixa nenhuma dúvida em relação ao seu diagnóstico. É a esse conjunto de fenômenos explícitos que Miller (2010) irá denominar de psicose extraordinária. Todavia, se a psicose não se revela de forma tão inequívoca e também não se assemelha à uma neurose, não possui “a assinatura da neurose, nem a estabilidade, nem a constância, nem a repetição da neurose e quando não há nítidos fenômenos de psicose extraordinária” (MILLER, 2010, p.10), pode, então, se tratar de uma psicose ordinária.

Segundo Coutinho (2005), a psicanálise entende o delírio e as alucinações psicóticas como o fim de uma significação para o sujeito, do mesmo modo que a fala, os sonhos, sintomas e atos falhos para o neurótico. “O comportamento do psicótico, também expresso em maneirismos e estereotipias, seria passível de interpretação, na procura da origem psíquica, não- biológica, da loucura” (p. 55). Assim, ao realizar a importante análise do caso Schreber, Freud (1911/1996) apresenta a ideia de que o delírio é, na verdade, uma tentativa de cura para o sujeito psicótico.

Caso Schreber, a perda da realidade e a construção delirante nas psicoses extraordinárias

Em muitos textos freudianos, o aparato de funcionamento da mente humana tem como parâmetro o problema da paranoia, melancolia e a forma singular como o inconsciente se estrutura em casos de psicose. Apesar do seu nítido interesse pela questão, Freud (1911 [1996]) não recomenda o método analítico durante o tratamento de casos psicóticos e, mesmo que não tenha apresentado um método psicanalítico para as mesmas, a sua discussão acerca do caso Schreber se tornou um fato marcante para a psicanalise.

Daniel Paul Schreber foi um importante paciente analisado por Freud (1911 [1996]) a partir da sua autobiografia denominada Memórias de um doente dos nervos (1905 [1984]). Em sua obra, dedicada à Schreber, Freud (1911 [1996]) admite que não chegou a conhecê-lo pessoalmente e sua análise só se tornou possível graças ao seu livro. A autobiografia deste famoso juiz é rica em detalhes e apresenta uma fenomenologia relacionada à experiência que o atravessou e que foi dilacerante, capaz de produzir bruscos efeitos de ruptura com sua vida anterior (GUARANÁ & VIEIRA, 2018).

A síntese das mudanças efetuadas em Schreber pela doença é apresentada por Freud (1911 [1996]) de acordo com as duas principais direções do seu delírio. Zanotti e Maurício (2014) destacam que Schreber, previamente, se inclinava à renunciar o prazer e duvidar de Deus. Posteriormente, passa a crer em Deus e se entrega à volúpia. Como a sua fé era de natureza única, o processo sexual conquistado por ele também era de caráter atípico, “já não se tratava de liberdade sexual masculina, mas sensação sexual feminina” (Ibid., p. 28). Ele se colocava femininamente à Deus, como aponta a seguinte afirmação freudiana:

Antes dela, inclinara-se ao ascetismo sexual e fora um descrente com referência a Deus, enquanto que, após a mesma, se tornou crente em Deus e devoto da voluptuosidade. Entretanto, assim como sua fé em Deus reconquistada era de tipo peculiar, assim também a fruição sexual que havia alcançado para si próprio era de caráter muito raro. Não era a liberdade sexual de um homem, mas os sentimentos sexuais de uma mulher. Ele assumiu uma atitude feminina para com Deus; sentiu que era a esposa de Deus (FREUD, 1911 [1996], p. 21).

Apesar do elaborado interesse em Schreber, o cuidado freudiano em delimitar uma teoria que esclareça a experiência psicótica mostra-se presente desde seus artigos iniciais. Isto se evidencia em As neuropsicoses de defesa, quando Freud (1894 [1996]) norteia suas formulações com base na ideia de que os sintomas psiconeuróticos apontam para uma tentativa de defesa inconsciente de recalcamento voltado à uma representação contrária ao eu do paciente, devido ao seu caráter sexual e traumático. Aqui, é importante enfatizar o fato de que, no inicio da psicanálise, a psicose é tratada, tanto teoricamente quanto na clínica, a partir da sua prática com as neuroses, apresentando o recalque como mecanismo fundamental (SANTOS & OLIVEIRA, 2012).

Freud (1894 [1996]) aponta que os pacientes analisados apresentavam boa saúde mental até o momento em que ocorre algo incompatível à sua vida representativa, ou seja, até o momento em que o seu eu se esbarra com um sentimento ou experiência capaz de resultar em um “afeto tão aflitivo que o sujeito deliberou esquecê-lo” (p. 27). Uma ideia, que por ser incompatível com seu eu, é tratada através de um mecanismo de defesa específico.

A diferença determinante na estrutura da neurose e da psicose é trazida oficialmente por Freud nos artigos A perda da realidade na neurose e psicose (1924a [1996]) e Neurose e psicose (1924b [1996]), quando o paradigma do recalque (Vedrangung) e suas modalidades de defesa são rejeitados como modelo explicativo dos fenômenos na psicose. Surge, a partir disso, o mecanismo oficial da psicose que é reformulado como rejeição ou Werwerfung. Enquanto o neurótico reprime apenas uma parte da realidade, “na psicose ocorre a rejeição radical desta que caracteriza sua estruturação patológica” (SANTOS & OLIVEIRA, 2012, p. 77).

Schreber por Lacan: a foraclusão do Nome-do-Pai

Apesar dos estudos acerca das psicoses, na psicanálise, terem se iniciado com Freud, foi com Lacan que este campo sofreu grandes avanços teóricos e práticos. Freud (1913 [1996]) atribui a extrema importância das entrevistas preliminares no estabelecimento do diagnóstico diferencial para que o tratamento possa prosseguir de forma segura e enfatiza que há, para os psicóticos, dificuldade em estabelecer o vinculo transferencial (BORGES & MENDONÇA, 2016). Já Lacan (1977 [2014]), apesar de não desconsiderar esta dificuldade, acredita na possibilidade da transferência ser estabelecida a partir da forma de amor erotomaníaca e afirma que “a psicose é aquilo frente a qual um analista não deve retroceder em nenhum caso” (LACAN, 1977 [2014], p. 9).

A clínica lacaniana, formalizada inicialmente na década de 50, apoia-se na divisão estrutural entre neurose e psicose. Esta clínica baseia-se, de modo geral, na forma como o sujeito se questiona sobre o desejo da mãe e “se depara com o Nome-do-Pai, levando-o a inscrever simbolicamente a falta do outro na lógica fálica” (SANTOS & OLIVEIRA, 2012, p. 78). O desejo da mãe transcende à categoria de significante e precisa ser recalcado. Então, o Nome-do-Pai permite que o sujeito adentre a significação fálica graças à metaforização do desejo da mãe (ARAGÃO & RAMIREZ, 2004). Quando este significante não está inscrito, o que acontece são os distúrbios de linguagem, como as alucinações, que acima de tudo, são verbais (RODRIGUES & CASTRO, 2016).Nas elaborações propostas em seu seminário sobre as psicoses, Lacan (1955-56 [2008]) dá destaque ao mecanismo da foraclusão do Nome-do-Pai, principalmente no que refere às consequências da falta deste significante e os seus efeitos subjetivos.

Segundo Aragão e Ramirez (2004), para que a clínica da psicose possa ser situada, é imprescindível explicitar o conceito de foraclusão, que foi originado a partir da Verwerfung freudiana e se tornou o conceito operatório das psicoses. A hipótese da foraclusão se encontra na base na estrutura psicótica e justifica a falta do significante Nome-do-Pai. Assim, a psicose pode ser definida pela “não inscrição desse significante que é o responsável pela possibilidade de significação” (BARBOSA, 2019, p. 57). Lacan (1955-56 [2008]) delineia, então, um novo significado para o termo Verwerfung.

O que há de tangível no fenômeno de tudo o que se desenrola na psicose é que se trata da abordagem pelo sujeito de um significante como tal, e da impossibilidade dessa abordagem. Não torno a voltar à noção da Verwerfung de que parti, e para a qual, tudo bem refletido, proponho que vocês adotem definitivamente esta tradução que creio ser a melhor – foraclusão (LACAN, 1955-1956 [2008], p. 360).

Acerca do delírio como uma produção psicótica que possibilita o sujeito a viver melhor num mundo que é ordenado pelo significante Nome-do-Pai, é preciso compreendermos a forma como é construído o saber na psicose, uma vez que não há referência a um sujeito suposto saber, mas “um saber que lhe é próprio” (CELANI & LAUREANO, 2010, p. 104). Ao contrário do saber neurótico, que se organiza ao redor da função paterna, no saber psicótico não há um ponto de ancoragem, que foi denominado por Lacan (1955-56 [2008]) como “ponto de basta” (p. 303), capaz de ligar significante ao significado.

Podemos extrair das formulações lacanianas sobre o caso Schreber a noção de metáfora delirante (MILLER, 2010). Para Lacan (1955-56 [2008]), Schreber não se encontra articulado ao significante Nome-do-Pai, fator responsável pelo desencadeamento de sua psicose extraordinária. Há, inicialmente, um momento de completa desordem no seu mundo, até então estabilizado. Ao atingir uma posição socialmente elevada como juiz, é solicitado a responder com o Nome-do-Pai e como “ele não consegue, o que desencadeia sua psicose extraordinária – observa-se uma espécie de mundo ordenado que vai se reorganizando” (MILLER, 2010, p. 10). É possível observar que há antes do delírio um mundo organizado. Schreber consegue, pouco a pouco, reorganizar seu mundo, tornando possível viver a partir da sua construção delirante de que era a mulher de Deus (FREUD, 1911 [1996]). Isto confirma o fato de que não havia neste paciente a presença da metáfora paterna, mas uma metáfora delirante.

Do extraordinário ao ordinário: as conversações sobre as psicoses

A conversação se refere à um dispositivo clínico proposto por Jacques Allain-Miller, e desde o início se apresenta sob a condição de abrir o campo para a palavra e troca entre psicanalistas (MIRANDA, VASCONCELOS & SANTIAGO, 2006). A psicanálise permaneceu, ao longo dos anos, investindo em construções teóricas com base na clínica, o que propicia efeitos positivos acerca das psicoses. A contemporaneidade apresenta na clínica a presença de sujeitos que, apesar do funcionamento psicótico, não manifestam os fenômenos clássicos que estão presentes em Schreber, como os delírios e as alucinações (CAMPOS, GONÇALVES & AMARAL, 2008).

Nos anos 1990, com base na teoria do sinthoma proposta por Lacan (1975-76 [2007]), psicanalistas da Associação Mundial de Psicanálise (AMP) discutiram acerca das psicoses e suas manifestações atuais, havendo a presença de casos em que a foraclusão do Nome-do-Pai não é capaz de deflagrar o desencadeamento clássico das psicoses, uma vez que o sujeito encontra formas singulares para suplementar a falha no enodamento dos três registros (CORDEIRO & GUEDES, 2014). Foram estes casos que contribuíram para o desenvolvimento da noção de psicose ordinária.

Com as novas formas de manifestações psicóticas no cenário contemporâneo e as formulações lacanianas e millerianas sobre o tema, emerge uma nova categoria no campo das psicoses, denominada psicose ordinária (ROSA, 2009). Alguns casos que foram e ainda vêm sendo observados na clínica não apresentam os fenômenos clássicos, tão presentes nas psicoses extraordinárias, dificultando assim, seu diagnóstico (CAMPOS et al., 2008).

Neste contexto, a clínica das psicoses ordinárias é uma proposta trazida por Jacques Allain-Miller a partir de três sucessivos encontros realizados pelo Campo Freudiano. Em O conciliábulo de Angers (1996) foram trazidos à tona casos clínicos que, devido às suas particularidades, faziam com quem diversos analistas repassassem as categorias com as quais trabalhavam clinicamente. A proposta milleriana era a de que fossem apresentados momentos clínicos nos quais eles haviam compreendido algo novo e que fizesse contraponto à regularidade e verificação das formulações lacanianas (TIRONE, 2010). Em 1997, na Conversação de Arcachon, a discussão se deteve às noções de continuidade e descontinuidade das estruturas clínicas, constatando “a insuficiência dessas formulações lacanianas dos anos 1950” (ROSA, 2009, p. 120). Por fim, a noção de psicose ordinária surge apenas em 1998, com a Convenção de Antibes e se apoiam neste termo os psicóticos mais discretos, sem grandes manifestações psicóticas (TIRONE, 2010). Além do mais, como aponta Dias (2018), o material clínico desta última conversação foi organizado e analisado sob três eixos: neoconversões, neotransferencias e neodesencadeamentos.

Em Efeito do retorno sobre a psicose ordinária, Miller (2010) deixa claro que esta categoria não possui uma definição rígida e todos seriam bem-vindos a dar sua opinião, visto que não houve a invenção de um conceito, mas a criação de um significante capaz de atrair inúmeros sentidos. É, na verdade, uma forma de realizar uma quebra no binarismo proposto pela neurose e psicose, apesar de estar ligado ao campo das psicoses (MILLER, 2010).

Apesar de serem denominadas ordinárias ou comuns e serem, atualmente, bastante presentes na clínica, frequentemente passam despercebidas (CAMPOS et al., 2008). Como elucida Maleval (2002), a psicose ordinária apresenta algum efeito estabilizador que permite ao sujeito uma constituição, atrelando à ele uma nominação ao exercer uma função social, contornando assim as avassaladoras vivências psicóticas.

Esta clínica se apresenta sob a forma de pequenos indícios que, constantemente, conseguem passar despercebidos por amigos, familiares e psicanalistas. Ansermet (2016) aponta que identificar os sinais discretos das psicoses ordinárias pode se tornar um esforço complexo não só para a clínica, como também para a sociedade.

Estes mínimos fenômenos podem se tratar de um manejo singular da linguagem, de transtornos discretos de pensamento, assim como a sensação de não pertencimento social e de estar desconectado dos outros (MILLER, 2010). É fácil que este psicótico passe despercebido, uma vez que era considerado normal até o aparecimento destes singelos transtornos de comportamento (SKRIABINE, 2009). Deve-se, portanto, buscar pelos sinais discretos de “uma desordem provocada na junção mais íntima do sentimento de vida do sujeito” (LACAN, 1957- 58 [1998], p. 565).

Miller (2010) propõe reconhecer essa desordem a partir de uma tripla externalidade, sendo composta por uma externalidade social, uma externalidade corporal e uma externalidade subjetiva. Na externalidade social, ou seja, na relação com a realidade, a grande questão é: qual a identificação do sujeito com uma função social, com uma profissão, por exemplo?

O sinal mais claro, segundo Miller (2010), pode ser encontrado na relação negativa do sujeito com sua função social. É preciso admitir que o sujeito é incapaz de assumir sua função social e pode-se observar um certo desespero e impotência frente à esta função. Torna-se possível encontrar sujeitos indo de uma identificação social para outra, se desligando gradativamente do trabalho, da família, dos amigos e relacionamentos amorosos.

Tais características marcam a identificação negativa, mas há também, como afirma o próprio Miller (2010), a identificação positiva. Esta se mostra presente quando o sujeito investe de forma demasiada em suas funções sociais. Dessa forma, pode-se encontrar psicóticos ordinários cuja perda do trabalho ou o rompimento de um relacionamento desencadeia sua psicose, isto porque estes laços significavam muito mais. Assim, há fragmentos nos laços sociais mais comuns, como trabalho, amigos e família (ROCHA, 2019).

Já a segunda externalidade, a qual Miller (2010) denomina como externalidade corporal, diz respeito ao Outro corporal. Na psicose ordinária deve-se ter algo a mais, uma falha ou brecha. A desordem mais íntima ocorre através dessa falha na qual o corpo se rompe e o sujeito se vê diante da necessidade de inventar laços artificiais capazes de fazê-lo se apropriar do próprio corpo. Assim, o sujeito apresenta a necessidade de um “grampo” (Ibid., p.17) para se sustentar em seu corpo.

A principal dificuldade em identificar estes grampos é o fato destes serem extremamente comuns, principalmente na contemporaneidade. Exemplo disto são os piercings, as tatuagens e cirurgias plásticas, que estão cada vez mais presentes cotidianamente. É preciso atentar ao uso que o sujeito faz destas alterações corporais, visto que este elemento será responsável por exercer a função de Nome-do-Pai (MILLER, 2010).

Finalmente, após o Outro social e o Outro corporal, Miller (2010) nos apresenta o Outro subjetivo. O sinal frequentemente observado neste caso se dá na experiência do vazio experimentado na psicose ordinária. Apesar de ser encontrado em diversos casos de neurose, na psicose este vazio é marcado pela fixidez. Assim, percebemos que há formas, além da construção delirante que são capazes de manterem estes sujeitos estabilizados.

Para pensar as estabilizações possíveis nas psicoses, os conceitos de suplência e compensação vêm sendo discutidos ao longo de todo o ensino lacaniano. No entanto, há momentos de destaque para ambos os termos (ROCHA, 2019). Durante os anos 50, as possibilidades de estabilização propostas por Lacan estavam circunscritas ou à chamada identificação compensatória, que impedia o surto psicótico, ou à metáfora delirante construída após o desencadeamento (LACAN, 1955-56 [2008]).

Neste período, acompanhamos Lacan (1957-58 [1999]) na formulação de que o Nome- do-Pai é, no interior do Outro, um significante fundamental e o psicótico “tem de suprir a falta desse significante que é o Nome-do-Pai” (p. 153). Aqui, a possibilidade de remediar essa falta está ligada restritamente à metáfora delirante. Como Laurent (1995) esclarece, “pode-se dizer que, de 1936 a 1976, a cada dez anos, houve no ensino de Lacan uma reformulação sobre o enigma das psicoses” (p. 110). Assim, os primeiros avanços lacanianos estão voltados às compensações imaginárias e posteriormente, na década de 70, voltam-se ao conceito de suplência.

Pré-psicose e compensação imaginária

O termo pré-psicose, proposto pelo psiquiatra Mauritiz Katan, se refere aos estados antecessores à deflagração do surto ou, dito de outra forma, o período que antecede o abismo (DIAS, 2018). Representa o momento de alienação a um outro minúsculo, como por exemplo, a um amigo que acaba servindo como âncora para a existência do sujeito (LACAN, 1955-56 [2008]). Ela é tida em uma acepção diacrônica que se caracteriza por um período inicial de perplexidade no qual o sujeito compreende que algo lhe concerne, porém não é capaz de significar a sua experiência (JACINTO & COSTA, 2011). Como nos aponta Lacan (1955-56 [2008]), na pré-psicose o sujeito enfrenta o sentimento de ter alcançado a “beira do buraco” (p.230) e este momento é anterior à dissolução imaginária.

Um mínimo de sensibilidade nos faz ver claramente algo que se encontra sempre no que se chama de a pré-psicose, a saber, o sentimento de que o sujeito chegou a beira do buraco. […] Trata-se de conceber, não de imaginar o que se passa para um sujeito quando a questão lhe vem dali onde não há significante, quando é o buraco, a falta que se faz sentir como tal (LACAN, 1955-56 [2008], pp. 230- 231).

Um dos desdobramentos da foraclusão do Nome-do-Pai é o aparecimento dos chamados fenômenos elementares, que eram relacionados exclusivamente aos transtornos de linguagem e ao delírio, mas têm ganhado um certo “alargamento conceitual” (ROCHA, 2019, p. 151). Lacan (1955/56 [2008]) afirma que estes fenômenos não possuem caráter de núcleo inicial e que o delírio, em si, é um fenômeno elementar.

Em seu seminário sobre as psicoses, Lacan (1955-56 [2008]) elucida soluções encontradas pelo sujeito psicótico com o intuito de manter-se estável e de organizar a sua realidade pela via imaginária. Em algumas de suas formulações, o autor também faz uso da concepção de personalidade “como se” (p. 220), proposta por Helena Deutsch e que serve para retratar estes sujeitos que apenas fazem acordo ao jogo de significantes mediante à uma espécie de imitação (MARTINS, 2009). Nestes casos, ocorre um mecanismo de “compensação imaginária ao Édipo ausente” (LACAN, 1955-56 [2008], p. 220), evitando que ocorra o desencadeamento da psicose.

Muitos sujeitos psicóticos, de fato, são capazes de se sustentarem por bastante tempo sem sucumbirem aos efeitos da foraclusão do Nome-do-Pai. Lacan (1955-56 [2008]) faz uso do exemplo de um banquinho de três pés para se referir a este momento em que o sujeito fica ancorado ao apoio imaginário.

Nem todos os tamboretes têm 4 pés. Há os que ficam em pé com 3. Contudo, não há como pensar que venha faltar mais um só, senão a coisa vai mal. Pois bem, saibam que os pontos de apoio significantes que sustentam o mundinho dos homenzinhos solitários da multidão moderna são em número muito reduzido. É possível que de saída não haja no tamborete pés suficientes, mas que ele fique firme assim mesmo até certo momento, quando o sujeito, numa certa encruzilhada de sua história biográfica, é confrontado com este defeito que existe desde sempre” (LACAN, 1955-56 [2008], p. 231).

Dessa forma, assim como o tamborete com sustentação precária, o sujeito pode se apoiar na compensação pela via do imaginário. Lacan (1955-56 [2008]) destaca que pode não ocorrer a eclosão da psicose, assim, o psicótico se manteria compensado pela identificação imaginária (MARTINS, 2009). Para não ceder aos efeitos causados pela foraclusão do Nome-do-Pai, o sujeito faz uso do que foi denominado por Lacan (1955-56 [2008]) como “muletas imaginárias” (p. 233) – as bengalas imaginárias –, que irão lhe fornecer sustentação. O termo cunhado por Lacan (1955-56 [2008]) serve para designar o apoio à estrutura da psicose sem contar com a norma edipiana. Então, antes do surto psicótico, a realidade se sustenta nessas bengalas que são constituídas por meio das identificações que têm como efeito uma alienação radical, visto que o sujeito não possui recursos simbólicos de mediação. De modo geral, demonstram que é possível haver uma identificação e um certo uso do registro imaginário, fazendo com que a ausência do Nome-do-Pai seja mascarada (LACAN, 1955-56 [2008]).

A compensação é conquistada pelo sujeito através de “uma série de identificações puramente conformistas a personagens que lhe darão o sentimento do que é preciso fazer para ser um homem” (LACAN, 1955-56 [2008], p. 233). Como as propriedades imaginárias são destituídas do alicerce simbólico, tais identificações se revelam frágeis e precárias. Assim, a precariedade da compensação identificatória pode conduzir o sujeito ao desencadeamento.

Nesse momento da teorização lacaniana sobre as psicoses, podemos indicar que devido à ausência do referencial simbólico do Nome-do-Pai, o sujeito psicótico se encontra no registro imaginário, que tem a relação especular como regra (TÓTOLI & MARCOS, 2014). Através das articulações de Quinet (2003), podemos perceber que, antes do surto, o sujeito permanece refém da relação especular, de uma identificação intensa a um semelhante que é posto como eu ideal.

Divergindo da identificação histérica que é operada por meio de um traço, a identificação mimética busca reproduzir de maneira integral o objeto de identificação. Em suma, este mecanismo se caracteriza como uma “modalidade de amarração das psicoses que se organiza como um enodamento entre o imaginário e o real, sem a ajuda da mediação simbólica” (RECALCATI, 2003, p. 210).

Quanto ao mimetismo imaginário presente nas psicoses não desencadeadas, este pode estar ligado ao fato de que os psicóticos “não entram jamais no jogo dos significantes, a não ser por uma espécie de imitação exterior” (LACAN, 1955-56 [2008], p. 285). Nas psicoses ordinárias, nem sempre é possível observar a experiência do desencadeamento clássico, visto que estas não apresentam a manifestação dos delírios e alucinações. Entretanto, mantêm singularidades presentes na clínica das psicoses, como por exemplo, os inúmeros desenganches do Outro presentes na vida deste psicótico (MARTINS, 2009).

Nestes casos, a psicose se articula, de certa forma, à clínica dos monossintomas, da qual fazem parte os fenômenos psicossomáticos, como as fibromialgias, toxicomania e as anorexias.

Aqui, é o sintoma ou nome da doença que irá ser utilizado no processo de identificação imaginária, sendo capaz de conferir um nome ao sujeito, como “anoréxica” ou “alcoólatra”, por exemplo (VITTA, 2008). Outra possível função dessa identificação é a de incluir o sujeito à grupos ou comunidades que são formadas em torno desse monossintoma, assim o laço social irá se organizar a partir desta particularidade (MARTINS, 2009).

É possível observar, na contemporaneidade, o surgimento destes novos sintomas, a partir dos quais emergem diversos grupos que fazem uso de um traço monossintomático para que possam se estabelecer (VITTA, 2008). Recalcati (2003) elucida que, nesses grupos, o trabalho do analista é intervir na tendência de se perder nessa fusão identificatória ao coletivo, fazendo surgir o que seria o nome próprio do sujeito.

Em grupos de anoréxicos, por exemplo, a estratégia inicial é de acolher e aceitar a lógica dessa identificação através da oferta de tratamento. Entretanto, isto acontece apenas no momento inicial, visto que, posteriormente o trabalho do analista será intervir na identificação que liga o grupo à um significante chefe-padrão (VITTA, 2008). A respeito disto, Gaspard (2008) ressalta que o sujeito chega por meio do significante anorexia, no entanto, o que a clínica do monossintoma busca é tentar desvincular o sujeito deste grupo, para que surja, assim, uma subjetivação.

Mas, como pode ocorrer o tratamento analítico em grupos de psicóticos? Vitta (2008) destaca que se o psicótico não faz grupo, devido ao funcionamento precário dos processos simbólicos que possibilitariam a ordenação do plano imaginário e um arranjo na relação com o semelhante, ele está impossibilitado de se identificar a um significante padrão. Entretanto, ele pode “se servir da estruturação lógica do grupo e, portanto, da estruturação lógica do laço social, amparada pela identificação e idealização, processo dos quais o psicótico não pode se servir como o neurótico” (p.7).

De modo geral, o tratamento em grupo para psicóticos pode vir a ocorrer pela via da alienação e por meio da introdução deste sujeito na dimensão de uma possível identificação (GASPARD, 2008). Assim, enquanto que em grupos monossintomáticos o que se pretende é um tratamento da identificação, no caso dos sujeitos psicóticos o que se busca é um tratamento a partir da identificação, produzindo identificações imaginárias capazes de atribuírem um nome ao psicótico, e de certo modo, o introduzir na organização social que o cerca (VITTA, 2008). É interessante ressaltar que nem todos aqueles que buscam grupos de tratamento são psicóticos ou possuem alguma identificação. A resposta se dá no caso a caso.

A suplência ao Nome-do-Pai

Divergindo das compensações imaginárias, as suplências se constituem como formas mais duradouras da estabilização na psicose e se referem aos meios como a metáfora delirante e o sinthoma podem operar (ROCHA, 2019). Enquanto a metáfora delirante diz respeito às formulações de Lacan na década de 50, o sinthoma se apoia no avanço das formulações lacanianas na década de 70 acerca das contribuições da topologia (ALMEIDA, 2017).

Laurent (1995) indica que, no ano de 1976, Lacan produz uma nova orientação, permitindo “[…] repensar a formas de estabilização nas psicoses, dado que em 1956 ele não tinha nada mais do que a estabilização delirante” (p.118). Nos anos 70, com a apresentação da topologia dos nós, atribui-se um novo estatuto à ideia de deslizamento. Começam as discussões acerca dos enlaçamentos possíveis. O conceito de sinthoma é elaborado durante o último ensino lacaniano e se refere à forma como o sujeito dá conta de amarrar os três registros. Assim, o sinthoma é o quarto elemento do nó, atribuindo um nome ao sujeito (FANGMANN, 2010). Como aponta Lacan,

[…] o que chamei este ano de sinthoma, é o que permite reparar a cadeia borromeana no caso de não termos mais uma cadeia, a saber, se em dois pontos cometermos o que chamei de um erro. Ao mesmo tempo, se o simbólico se solta, como outrora ressaltei, temos um meio de reparar isso. Trata-se de fazer o que pela primeira vez, defini como o sinthoma. Trata-se de alguma coisa que permite ao simbólico, ao imaginário e ao real continuarem juntos (LACAN, 1975-76 [2007], pp. 90-91).

Lacan (1975-76 [2007]) faz uso da escrita singular do autor James Joyce com o intuito de abordar manifestações psicóticas mais discretas. A partir da descontinuidade entre o campo da neurose e da psicose, se busca um sujeito relacionado à sua forma particular de enodar os três registros (ROSA, 2009).

É importante que possamos distinguir a diferença entre a concepção de suplência extraída a partir da escrita singular de James Joyce e as possíveis estabilizações ancoradas em identificações compensatórias, visto que “[…] as identificações imaginárias são mais frágeis que as complexas elaborações das suplências” (MALEVAL, 2002, p. 268). Tótoli e Marcos (2014) destacam que, como os registros real, simbólico e imaginário carecem de algo que os prenda um ao outro e não conseguem, sozinhos, fazer essa amarração, é preciso que algo exerça essa função. É necessário que haja uma ação suplementar, que na psicose, não é feita a partir do Nome-do-Pai simbólico, mas por outro significante que oferece sustentação ao sujeito antes do desencadeamento, ou seja, do surto.

A característica marcante da última clínica lacaniana se dá a partir das novas possibilidades de amarração dos nós, fugindo da exclusividade proposta pelo apoio à metáfora paterna. Neste ponto, o cargo de suplementar os registros e os enodar está sobre a função paterna que opera como um quarto termo nas neuroses, fazendo equivaler o Nome-do-Pai a um sintoma que enoda, não sendo ele o único (ROCHA, 2019). Neste período de sua obra, Lacan (1975-76 [2007]) se volta às maneiras singulares de unir os registros frente à falha estrutural da linguagem. A psicose não se trata mais de um déficit em relação à neurose, visto que encontramos uma solução positiva em ambas estruturas.

É através da análise lacaniana acerca do caso Joyce que se atribui uma nova definição ao termo suplência, que ganha uma certa generalização que condiz com o Nome-do-Pai e sua pluralização, fazendo com que o próprio significante Nome-do-Pai seja designado como uma modalidade de suplência em meio a tantas outras, como por exemplo, o sinthoma (LACAN – 1975-76 [2007]). Ao supor que houve, de fato, uma foraclusão do Nome-do-Pai no escritor James Joyce, Lacan (1975-76 [2007]) aborda a sua escrita como aquilo que surge para suplementar ou suprimir a sua ausência. Assim, é por meio da sua obra que o escritor inventa um nome (ALMEIDA, 2015). Podemos pensar, a partir de Lacan (1975-76 [2007]), que o ego particular de Joyce exercerá a função de emendar a falha no enodamento dos registros real, simbólico e imaginário. A sua escrita torna-se indispensável ao ego.

No caso das psicoses ordinárias, é possível que seu desencadeamento seja contornado devido à uma compensação imaginária ou à uma suplência. A diferença marcante entre a compensação e a suplência é que, enquanto a primeira elabora um apoio imaginário com base na imitação ou no espelhamento, a segunda é uma forma mais resistente e articulada, pois na suplência o sujeito elabora uma forma capaz de enodar os registros (CAMPOS et al., 2008). O próprio Miller (2010) traz uma informação curiosa acerca das identificações na psicose, ao afirmar que “algumas das grandes organizações são frequentemente dirigidas por poderosos psicóticos, cuja Identificação é supersocial” (p. 23).

A “clínica das suplências” (MONTEIRO & QUEIROZ, 2006, p.118) tem como finalidade fazer funcionar o enodamento dos três registros. Dessa forma, o tratamento analítico é capaz de permitir que o sujeito reinvente representações simbólicas que irão atuar como suplências, novas amarrações capazes de suprir a falha ocasionada pela foraclusão do Nome- do-Pai, propiciando estabilização ao sujeito psicótico. Lacan (1975-76 [2007]) possibilita uma nova forma de abordagem para o campo das psicoses, não mais dando destaque ao déficit do Nome-do-Pai. Cada ser de falar apresenta formas únicas e singulares de manter unidos os três registros, apontando o Nome-do-Pai como uma destas formas. Desse modo, a estabilização na psicose se pluraliza, assim como o Nome-do-Pai (BRODSKY, 2013).

O sinthoma como suplência

Ao retornarmos às formulações lacanianas, torna-se possível acompanhar o surgimento de alguns termos relacionados às possibilidades de estabilização nas psicoses, desde à precariedade das bengalas imaginárias ao enodamento resistente provocado pelas suplências (MONTEIRO & QUEIROZ, 2006). Nos atentaremos, aqui, à um tipo especial de suplência: o sinthoma. O sinthoma como suplência é capaz de enodar os registros graças à um quarto termo, que agiria em um ponto exato e supre o desarranjo ocasionado pela foraclusão do Nome-do-Pai (JACINTO & COSTA, 2011).

Quando Freud (1911 [1996]) aponta o delírio como sendo uma tentativa de cura, temos uma das primeiras formulações contribuintes para trabalhar o delírio como a forma de alcançar a estabilização (ALMEIDA, 2012). Por sua vez, quando Lacan (1957-58/[1998]) adota uma perspectiva estrutural ao tratar das psicoses, torna-se possível pensar nas possibilidades de a psicose ser concebida em um momento que antecede os fenômenos clássicos, como por exemplo, os delírios e alucinações (SANTOS & OLIVEIRA, 2012).

No último ensino de Lacan, a estabilização nas psicoses começa a ser pensada por meio do apaziguamento de um gozo avassalador e a suplência surge como uma forma de tamponar o buraco deixado pela foraclusão do Nome-do-Pai. Joyce, ao renunciar o Nome-do-Pai como significante capaz de enodar os registros, impulsiona Lacan (1975-76 [2007]) a pluralizar o Nome-do-Pai, passando a haver então Nomes-do-Pai e, como afirma Skriabine (2009), “se o Nome-do-Pai falha sempre, os Nomes-do-pai vão ser numerosos o suficiente para suprir essa falha” (p.4) Nas psicoses, os registros não se mantêm enodados devido a foraclusão do Nome- do-Pai e aqui, para que haja um sinthoma, o sujeito precisa encontrar formas de inventá-lo ou construí-lo sem o intermédio do significante Nome-do-Pai (SANTOS & OLIVEIRA, 2012).

Joyce, por meio de sua escrita e desejo de possuir um nome que seja lembrado, elabora um sinthoma capaz de estabilizá-lo: “Mas é claro que a arte de Joyce é alguma coisa de tão particular que o termo sinthoma é de fato o que lhe convém’’ (LACAN, 1975-76 [2007], p. 91).

É importante ressaltar que Lacan (1955-56 [2008]), ao trabalhar, inicialmente, a questão da metáfora delirante, não a indica como uma forma de suplemento, mas sim como meio metafórico de reparar a ausência da metáfora paterna. Dessa forma, como afirma Beneti (2005), já temos no seminário 3 a indicação de que a foraclusão do Nome-do-Pai poderia ser compensada, entretanto, a noção de suplência surge apenas em seu ultimo ensino, no qual esta será associada ao conceito de sinthoma, apresentando a possibilidade do sujeito construir formas de estabilizar sua realidade psíquica. A partir disso, podemos pensar as estabilizações psicóticas através dos avanços percorridos ao longo da trajetória lacaniana, desde a passagem ao ato presente no caso Aimée e abordado por Lacan na sua tese de doutorado em 1932, à metáfora delirante elaborada por Schreber e, finalmente, a estabilização abordada pela via do sinthoma, tendo como paradigma o caso Joyce (ALMEIDA, 2012).

Para concluir…

O campo das psicoses ordinárias abre portas para inúmeras questões e teorias acerca das novas manifestações psicóticas que surgem, cada vez mais frequentes, na clínica psicanalítica. Com isso, as formulações lacanianas, sobretudo a partir da década de 70, e as propostas millerianas desenvolvidas sobre o tema, apresentam as diversas formas que o sujeito encontra para se estabilizar psiquicamente em um mundo que se norteia sem ter por base a metáfora paterna. Sujeitos psicóticos que, graças à sua singularidade, se apropriam de um sinthoma capaz suplementar a falta gerada pela foraclusão do Nome-do-Pai. A partir desta elaboração, conseguem manter seus laços sociais e serem considerados normais, mesmo em meio às muitas particularidades que geralmente passam despercebidas. Invenções singulares estáveis que, mais além das compensações imaginárias, permitem a construção de grampos que auxiliam modos novos de laço.

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