Corpo e presença na interpretação psicanalitica: dos incorporais ao habeas corpus

Cuerpo y presencia en la interpretación: de los incorporales al habeas corpus
Corps et présence dans l’interprétation : de l’incorporel à l’habeas corpus
Body and presence in psychoanalytic interpretation: from the incorporeals to habeas corpus

ANGÉLICA BASTOS

EBP, AMP, Universidade Federal do Rio de Janeiro

angelicabastosg@gmail.com

RESUMEN

Con el objetivo de discutir las condiciones de la práctica del psicoanálisis y la pertinencia de las sesiones remotas u on-line que se diseminaron durante la crisis sanitaria, el articulo interroga los medios a través de los cuales se sirve la experiencia del inconsciente. Partiendo de la función de la palabra, aborda el cuerpo y los incorporales a los que se refiere J. Lacan en una mención a los estoicos. Con la intención de introducir el cuerpo del ser hablante prosigue con el habeas corpus y su reverso. Por fin trata de la presencia del analista y de la interpretación, en especial de la resonancia, en dos momentos de la enseñanza de Lacan: inicialmente en el texto de 1953 sobre la función de la palabra y el campo del lenguaje y, después en el seminario de 1976-1977 a propósito de las resonancias fundadas en el equívoco. Considerando la advertencia de Freud acerca de los criterios y de la eficacia del psicoanálisis en sus posibles configuraciones que mezclarían el oro y el cobre, concluye por la eventualidad del analista servirse de las referidas sesiones para prescindir de ellas

PALABRAS CLAVE: sesiones on-line; cuerpo; incorporales; presencia del analista; interpretación; resonancia

RESUMO

Como objetivo de discutir as condições da prática psicanalítica e sua pertinência às sessões ditas remotas ou on-line que se disseminaram na crise sanitária, o artigo interroga os meios de que se serve a experiência do inconsciente. Partindo da função da fala, aborda o corpo e os incorporais a que se remete J. Lacan em uma menção aos estoicos. Com o intuito de introduzir o corpo do falasser, prossegue com o “habeas corpus” e seu avesso. Por fim, trata da presença do analista e da interpretação, em especial da ressonância, em dois momentos do ensino de Lacan: inicialmente no texto de 1953 sobre a função da fala e o campo da linguagem e, depois, no seminário de 1976-1977, a propósito das ressonâncias fundadas no equívoco. Com base na advertência de Freud acerca dos critérios e da eficácia da psicanálise em suas possíveis configurações que misturariam o ouro ao cobre, conclui pela eventualidade de o analista se servir das referidas sessões para delas prescindir

PALABRAS CHAVE: sessão on-line; corpo; incorporais; presença do analista; interpretação; ressonância

RESUME

Afin de discuter des conditions de la pratique de la psychanalyse et de la pertinence des séances à distance ou en ligne qui se sont répandues pendant la crise sanitaire, l’article interroge les moyens par lesquels l’expérience de l’inconscient est servie. Partant de la fonction du mot, elle traite du corps et de l’incorporel auxquels J. Lacan se réfère dans une mention des stoïciens. Dans l’intention d’introduire le corps de l’être parlant, il poursuit avec l’habeas corpus et son revers. Enfin, il traite de la présence de l’analyste et de l’interprétation, notamment de la résonance, à deux moments de l’enseignement de Lacan : d’abord dans le texte de 1953 sur la fonction du mot et le champ du langage, puis dans le séminaire de 1976-1977 sur les résonances à partir de l’équivoque. Considérant l’avertissement de Freud sur les critères et l’efficacité de la psychanalyse dans ses configurations possibles qui mélangeraient l’or et le cuivre, il conclut que l’analyste peut utiliser les séances susmentionnées pour s’en passer

MOTS CLEFS: séances en ligne ; corps ; incorporel ; présence de l’analyste ; interprétation ; résonance

ABSTRACT

In order to discuss the conditions of psychoanalytic practice and its relevance to the so-called remote or online sessions that have spread during the health crisis, the article questions the means used by the experience of the unconscious. Starting from the function of speech, it approaches the body and the incorporeals to which J. Lacan refers to in a mention of the stoics. The article then proceeds with the «habeas corpus» and its inside out to introduce the body of the falasser. Finally, it discusses the presence of the analyst and the interpretation, especially of resonance, in two moments of Lacan’s teaching: initially in the 1953 text on the function of speech and the field of language, and then, as developed in the seminar of 1976-1977, the resonances based on misunderstanding. Based on Freud’s warning about the criteria and the effectiveness of psychoanalysis in its possible configurations that would mix gold with copper, it concludes that the analyst will occasionally use these sessions in case of need

KEY WORDS: online sesión; body; incorporeals; presence of the analyst; interpretation; resonance

Introdução

Desde a experiência inaugural de Freud, entende-se que uma psicanálise não pode ser realizada in absentia ou in effigie. Daí decorre que não há writing cure e que a fala constitui o meio por excelência da análise, cabendo a ela propiciar a presença exigida no encontro entre analisante e analista.

A resposta à fala analisante condiciona a instalação da transferência e a colocação em ato da realidade sexual do inconsciente, o que indica o quanto a presentificação requerida ultrapassa a coexistência de corpos em um mesmo espaço físico. Se o comparecimento do analista enquanto presença no dispositivo não se resolve em áudio ou imagem na tela, a sessão analítica não equivale à consulta dita on-line ou remota que se dissemina, em um frenesi disparado pela pandemia, nas diversas práticas profissionais da área de saúde e no mundo do trabalho em geral

Resultantes da conjunção entre ciência e discurso do capitalismo, as tecnologias digitais produziram um efeito de retorno sobre o laço social, impactando-o de forma irreversível. No momento atual, tornaram-se eventualmente necessárias a título de condições materiais para a sessão analítica, cujos efeitos terapêuticos, embora inegáveis, não substituem os fins de uma análise. Enquanto a internet põe em cena um Outro demasiadamente presente que a qualquer consulta reage com dados – senão com mercadoria e todo tipo de gadget -, o discurso do analista surge e opera na contracorrente da onipresença do Outro e da informação promovidas pelo advento da era digital.

O encontro entre analisante e analista ocorre em um lugar irredutível tanto ao espaço euclidiano, quanto ao ciberespaço da comunicação virtual. Recoloca-se, assim, a questão sempre viva das variantes do tratamento distantes do dispositivo tradicional e, consequentemente, das condições que viabilizam, entre a presença do analista e o sujeito, os efeitos de interpretação na experiência analítica.

Dos incorporais ao materialismo da palavra

A fala é uma realização da língua, ambas isoladas pela linguística no todo heteróclito da linguagem. Para a psicanálise, a fala não é apenas um meio, mas seu médium, “dom da linguagem” que, por sua vez, não é imaterial, mas corpo, corpo sutil. (Lacan, 1998[1953], p. 301). O tratamento dito remoto depende de que os meios – bem como os princípios e fins – fundem a experiência do inconsciente, correspondendo ao que se espera do analista, vale dizer, uma análise.

O simbólico toma corpo. Lacan assinala que o corpo do simbólico não deve ser entendido como metáfora, pois só ele é capaz de isolar um corpo no sentido comumente atribuído ao termo. Compete ao corpo do simbólico individualizar o corpo que o falante reconhece como seu e no qual encontra um suporte para a subjetivação, embora desconheça que a corporeidade lhe é conferida pela linguagem: “O primeiro corpo faz o segundo por se incorporar nele.” (Lacan, 2003[1970], p. 406). A inseminação do significante na carne produz o corpo do falante. A menção à cadaverização que aí encontramos traduz a negativação que disjunta corpo e gozo, tornando indiferente que o primeiro esteja vivo ou morto, uma vez que o preço da incorporação significante não se paga com vida ou morte, mas com gozo.

Que o significante, ou mais precisamente, o corpo do simbólico se faça corpo implica que: “Daí o incorpóreo que fica marcando o primeiro, desde o momento seguinte à sua incorporação” (Ibidem). Uma vez incorporado, o corpo do simbólico implica algo de incorporal, noção introduzida pelos estoicos, aos quais Lacan presta homenagem por terem discernido como o simbólico e a corporeidade concernem um ao outro.

A inexistência de realidade metafísica, para além da existência dos corpos, caracteriza o pensamento desses filósofos. Conforme formula Bréhier sobre o estoicismo, “… a ideia de uma vida da alma, independente do corpo, lhe era, senão totalmente, ao menos meio estrangeira e, em todo caso, sem influência profunda sobre a concepção que possuía sobre o destino do homem” (Bréhier, 1962, p. LXIV). Em sua perspectiva sobre a linguagem, é possível reconhecer retroativamente o materialismo em sentido amplo e, com Lacan, o moterialisme, neologismo que condensa mot (palavra) e materialisme para designar o materialismo da palavra.

Etimologicamente o termo ‘lógica’ diz respeito a uma ciência ou arte da linguagem (Aubenque, 1973). Os estoicos inauguram o uso do termo ‘lógica’ como substantivo, elevando-a ao estatuto de ciência do exprimível (lekton).

Em um mundo em que tudo o que existe é corpo, inclusive a alma, esta lógica possui um objeto peculiar: o exprimível ou significado, o qual não é um fenômeno da natureza, uma coisa, como um vegetal ou animal, nem um estado de coisas. No uso da linguagem, entre o som e a coisa intervém o significado, pertencente a um terceiro domínio em cujos limites se verificam tanto a compreensão quanto a incompreensão do que é enunciado. A ilustração clássica coloca um grego e um bárbaro diante de uma mesma palavra grega, cujo som é percebido por um e outro. Ainda que ambos possuam a representação da coisa significada, apenas o grego compreende, pois para ele a coisa possui o exprimível (lekton) que permite significar o objeto pela referida palavra.

A concepção dos estoicos teria sido a primeira formulação da linguagem em termos daquilo que é significado, daquilo que significa e do objeto. Aquilo que é significado é a própria coisa revelada pela palavra e captada pelo pensamento como subsistente, enquanto aquilo que significa é a palavra falada ou escrita (ouvida ou lida pelo bárbaro, mas não compreendida) e, por fim, aquilo que existe exteriormente é o objeto. Na tríade do significado, da palavra e do objeto, o primeiro não é corpóreo, ao passo que a segunda e o terceiro são apreendidos pelos sentidos e pertencem ao mundo dos corpos, no qual um corpo é suscetível de atuar sobre outros corpos e padecer a ação exercida por estes.

O materialismo dos estoicos implica a necessidade de não se confundir o significado com a coisa ou estado de coisas e, sobretudo, de não se assimilar o significado à representação ou ato de pensamento que o capta, pois “estas operações mentais pertencem também elas, como tais, ao mundo dos corpos – digamos geralmente, se esta nota materialista nos choca: ao mundo dos fatos, ou mesmo, mais simplesmente, ao mundo” (Blanché, 1985). Este pensamento que não é atividade pensante, mas pensado, poderia ser aproximado a algo da ordem do efeito de sentido que se produz na dependência dos corpos.

Se não há realidade metafísica, como conceber os exprimíveis ou significados, que não são corpos? Um estatuto especial é atribuído ao que não é corpo e que, por conseguinte, não corresponde a um ser, embora seja alguma coisa. Os exprimíveis ou significados são incorporais, não-seres que se reúnem aos seres (leia-se, corporais) na categoria mais ampla de “alguma coisa”. Esta categoria abrange outras noções filosóficas como o vazio, o tempo e o espaço (Aubenque, 1973, p. 172) e privilegia o “algo” em detrimento do ser. Os incorporais são, portanto, secundários aos corpos, dos quais dependem inteiramente, posto que existem apenas graças a eles.

Ainda segundo Aubenque (1973), os estoicos teriam sido os primeiros a perceber que a linguagem não visa diretamente as coisas, passando por um “conteúdo de significação”. Esta dimensão repousa em um modo ao mesmo tempo convencional e equívoco de designar uma coisa ou acontecimento, correspondendo a uma descoberta refeita por Frege no século XIX, quando ele situa o sentido onde os estoicos colocaram o significado. Caberá a este autor distinguir o sentido (Sinn) da significação (Bedeutung), distinção da qual Lacan se apropria a propósito da significação (Bedeutung) do falo em oposição aos efeitos de sentido e de furo da interpretação psicanalítica.

Fenômenos da atmosfera terrestre como raios, chuva e trovão são semblantes evocados por Lacan para figurar os efeitos do significante sobre o corpo: quanto à carne, “somente das que são marcadas pelo signo que as negativiza elevam-se, por se separarem do corpo, as nuvens, águas superiores, de seu gozo, carregadas de raios para redistribuir corpo e carne” (Lacan, 2003[1970], p. 407). O gozo se desprende da carne mortificada em corpo, evaporando-se como que em nuvens; em sentido inverso, delas provêm os raios que refazem a partilha constante entre corpo e carne, à proporção que incidem sobre eles.

A respeito do impacto do significante sobre o corpo, encontra-se também o recurso à imagem da chuva de significantes em queda sobre uma superfície, sulcando veios de escoamento na paisagem: “…o que acontece com o significante: ou seja, o semblante por excelência, se é de sua ruptura que chove, efeito em que isso se precipita, o que era matéria em suspensão” (Lacan, 2003[1971], p. 22). De acordo com essa imagem, a condensação no sentido da liquefação faz com que a matéria significante recaia sobre o corpo, induzindo gozo e surtindo efeitos de significado e de escrita. A própria fala interpretativa apoia-se no materialismo da palavra, como uma precipitação material que percute no corpo.

O habeas corpus e seu avesso

Considerado o momento inaugural do sujeito, o cogito cartesiano, procedeu à foraclusão do corpo. O exercício da dúvida metódica leva aquele que pensa ser tudo falso à necessidade de ser alguma coisa enquanto assim pensa. O “penso, logo sou” é um primeiro princípio que resiste às mais decididas suposições céticas, ao preço de rechaçar tudo o que provém do corpo. Este teria sido expulso do pensamento e rejeitado na extensão, onde se reduziria a um objeto partes extra partes, com a inevitável exclusão da dimensão do gozo.

Os impasses da redução do corpo ao organismo se manifestaram justamente no campo sexual, no qual a satisfação pulsional logo se revelou subjacente ao sintoma histérico. Na descoberta do inconsciente, o corpo foracluído retorna. Como eu corporal sede da angústia, como função corporal inibida, como sintoma neurótico ou ainda como retorno de gozo no corpo para as psicoses, essas manifestações atestam que, em sua materialidade, a palavra em ato faz ecoar nos corpos a pulsão. Lacan é bem específico, ao afirmar que o eco no corpo é produzido pelo dizer, ou seja, por aquilo que excede os ditos. Não se confundindo com o objeto vocal nem com os significantes, o dizer ex-siste aos ditos.

A dimensão pulsional do sintoma abriu o caminho para uma reformulação do cogito. Rejeitado, diz Lacan (2011[1973]), o “Logo go(z)sou” retorna, tal como implica a foraclusão, no real. Ao invés de partir do pensamento rumo ao ser, a leitura lacaniana do cogito vai do pensamento ao gozo, reintroduzindo o corpo. Embora o sujeito do inconsciente, pontual e evanescente, não possua substância, não deixa de estar enganchado no corpo. Enquanto sujeito do significante, ele é “efeito de pura lógica” (Miller, 2016), submetido ao fato de a linguagem instalar a falta-a-ser, reduzindo o ser ao ser de significância. Por que, então, não dizer simplesmente ‘o homem’? Longe de retomar o termo consagrado pelas ciências humanas como objeto cujas condições de possibilidade lhes cumpre investigar, Lacan (2007[1975]) acabará por referir-se ao LOM – uma contração de ‘o homem’ (l’homme) -, não sem antes extrair as consequências materiais implicadas no ser de linguagem.

O termo parlêtre (parler/parole + être/lettre), traduzido em português pelo termo igualmente neológico falasser, não equivale ao ser falante, não duplica a expressão na qual o falante seria um atributo do ser. A homofonia envolvida no termo parlêtre remete a paraître (parecer) e desliza ao parêtre (por/para+ser), que reúnem o parecer e o ser como semblantes, ao invés de contrapor aparência e ser (Miller, 2002). A aproximação entre imaginário e simbólico para constituir a categoria do semblante introduz sua distinção em relação ao real na abordagem do gozo.

Na condensação entre fala e ser (ou letra), o falasser vem justamente responder pela corporeidade necessária à inclusão do gozo, indicando que não é, entretanto, o corpo que fala; ao contrário, ele goza silenciosamente. Fala-se com o corpo, ou seja, o falante se serve do corpo para falar, acreditando que tem um corpo, o qual, entretanto, se furta a seu domínio.

Com a expressão habeas corpus, J.-A. Miller (2016) assinala algo crucial para o tratamento dado por uma análise às diversas formas do mal-estar. A interpretação aponta o que o sujeito aí encontra, a saber, sempre algo da ordem do gozo. Por isso ela incide materialmente no laço da fala com o gozo, passando pelo corpo.

A separação entre os corpos presentes própria ao dispositivo psicanalítico tradicional dá um caráter peculiar ao encontro entre analista e analisante, sendo constitutiva desse laço inédito. A interposição da tela e do aparelho de áudio é dupla, ou melhor, incide tanto entre aquele que fala e o que escuta, quanto entre a resposta proferida pelo analista e aquele em quem ele se traduz ou não em efeito de interpretação. A mediação material do aparato tecnológico erige uma barreira entre os corpos já distantes no espaço. Há analisantes para os quais a interposição de tais aparelhos não parece inviabilizar o endereçamento da fala e os efeitos da resposta do analista; para outros, a separação reforçada pela distância torna o encontro com o analista menos invasivo, enquanto para outros ainda, o laço ou apenas o exercício da análise torna-se inviável sem a presença dos corpos. Naturalmente, não se sabe de antemão se essas diversas situações perduram a médio ou longo prazo.

O habeas corpos diz respeito ao corpo do falasser, situado no registro do ter, e não do ser; mas este corpo, ele o possui? A propósito dos deportados, Lacan (2007[1975]) destaca que, se o homem tem um corpo, é pelo corpo que se o tem, apontando uma dimensão de avesso do habeas corpus. O corpo torna o falante uma presa ao alcance das políticas de saúde, do confinamento, dos regimes políticos, em suma, dos poderes que se exercem sobre ele. Isso indica que ter um corpo é da ordem da crença e que só a ilusão de autonomia do eu pode dar consistência à posse ou domínio sobre o corpo, o qual é suscetível de ser tido e permanece Outro. A crença pode ser abalada, o corpo pode escapulir, o falante pode encontrar-se despossuído, embora não despojado, do corpo.

Por não se reduzir ao corpo, o falasser não é capturado de modo integral pelos poderes que se exercem sobre ele, restando uma margem de manobra com o corpo do qual se é por natureza exilado. Por sua vez, os poderes da análise assentam-se sobre princípios que não endossam nem o ter nem o ser tido pelo corpo, mas o gozo que dele se extrai e que é visado quando o inconsciente dá lugar ao analista.

Presença do analista

É próprio de qualquer presença real situar-se no entre-dois do significante, ponto em que se realiza uma hiância que os sintomas obsessivos e o objeto fóbico se empenham em preencher. Irredutível ao significante qualquer graças ao qual o analista é inserido no inconsciente transferencial, sua presença depende do intervalo significante, se ela se presta a dar corpo ao que do gozo escapa aos significantes.

A presença do psicanalista é inseparável do inconsciente. Lacan (2019[1978]) a situa como apresentação que, distinta da representação e de seu lugar-tenente (Vorstellungsrepräsentanz), designa a dimensão real da presença, para além do que se perfila no registro imaginário e que comporta sua objetivação em uma imagem corporal. A presença do analista captura o que não é redutível ao significante e confere à apresentação seu caráter intercalar, resultando em um objeto não objetivo, o semblante de objeto a.

No exercício da psicanálise, trata-se sem dúvida de lugar. Desde o ponto de vista topográfico de Freud até a topología de Lacan, o ‘onde’ esteve no âmago da experiência: Wo es war, sol Ich werden. Esse dito foi lido, relido e reformulado para designar o analista enquanto aquele que busca ocupar o lugar de agente no discurso que lhe concerne. Se o analista tenta vir a este lugar, é exatamente porque não basta ausentar-se de todo ideal para aí se instalar, não o ocupa por si mesmo, pois não estão prometidos um ao outro: “É lá onde estava o mais-de-gozar, o gozar do Outro, que eu, na medida em que profiro o ato analítico, devo advir”. (Lacan, 2007[1969-1970], p. 62).

Advir como analista é tornar-se o pequeno a. Não se trata de advir como “je” do momento em que está diante da plateia, esclarece Lacan (1973-1974, lição de 09/04/1974), assinalando a ocupação de um lugar sui generis, que é o de ninguém, conforme o termo ninguém é indicado em um posto, uma colocação. Tomar este papel corresponde a autorizar-se a este lugar, mas não a ser analista. É da natureza do objeto em questão centrar-se no vazio. O verbo “desser” (“desêtre”), distinto tanto do sujeito enquanto falta-a-ser quanto do não-ser, é forjado para designar uma operação solidária do desejo do analista: “O analista eu o dessou (dé-suis)” (Idem).        

O Outro enquanto lugar colocado pela fala ainda não constitui o lugar no qual o analista vem constituir um parceiro do analisante, conforme se verifica quando alguém se dispõe a ser escutado. O lugar do encontro analítico começa a desenhar-se pelo fato de alguém – na solidão de seu gozo, de seu exílio – vir falar a outrem. Cabe ao desejo do analista, nas condições da transferência, visar a esse lugar instaurado pelo ato, habilitando-o para a interpretação. Não se trata tanto de estabelecer se a transferência é viável na sessão on-line, mas de verificar se o desejo do analista é capaz, nessas condições, de manter a distância entre o ideal e o objeto. Essa distância assegura a presença do analista como função e a repercussão de seus ditos.

Ressonâncias da interpretação

Em Função e campo a fala e da linguagem em psicanálise (Lacan, 1998[1953]), a fala, capaz de fazer ouvir o que não diz, é um dom da linguagem. O não-dito jaz nos furos da própria fala, contanto que a linguagem não se dê por função informar, pois quanto mais funcional, menos propícia à fala analisante ela se revela e mais distante da interpretação ela se encontra.

Lacan retira de textos sagrados da religião hindu uma passagem ilustrativa da função da fala como dom e seu valor de interpretação. Trata-se do diálogo entre, de um lado, Prajâpati, divindade suprema do início da construção da religião hindu, e, de outro, os recém-iniciados – devas (ou deuses), homens e assiras (demônios). Os noviços demandam ao senhor da criação que lhes conceda uma última palavra. Um único e mesmo dito é pronunciado pela divindade: “Da, disse Prâjapati, o deus do trovão. Haveis-me ouvido?”. Os primeiros respondem: “Tu nos disseste: Damayata, domai-vos”. Neste caso, o texto sagrado faz referência à obediência à lei da fala por parte das potências superiores, divinas. A resposta dos segundos é: “Tu nos disseste: Datta, dai”. Aqui, o texto sagrado remete ao reconhecimento mútuo dos homens pelo dom da fala. E no terceiro caso, respondem: “Tu nos disseste: Dayadhvam, perdoai”, o texto sagrado indica que “as potências inferiores ressoam à invocação da fala” (Idem, p. 324).

Por fim, a divindade a todos declara que os recém-iniciados o ouviram, sendo que cada um ouviu o que para si ressoou do Da. “Eis aí, retoma o texto, o que a voz divina faz ouvir no trovão: submissão, dom, perdão. Da da da” (Idem, p. 324). Neste contexto, o sujeito é sua própria questão e a fala faz a cada um o dom de uma resposta, sua resposta já envolvida na questão. Ainda um meteoro, o trovão, faz ouvir o não dito em função do que se é, posto que o significante repercute de modo diferenciado para deuses, homens e demônios.

O termo ‘ressoa’ é retomado em nota de rodapé (Ibidem) sobre o escritor francês Francis Ponge que escreve o neologismo réson (de ressoar), homófono a raison (razão). O termo é invocado anos mais tarde (Lacan, 1976-77), igualmente a propósito da interpretação, mas nesse novo contexto a ressonância que interessa produzir na análise está fundada no dito espirituoso, mais precisamente na equivocidade que o chiste aciona em seu uso da linguagem: “Não temos nada de belo para dizer. Trata-se de uma outra ressonância, a ser fundada sobre o dito espirituoso. O chiste não é bonito, ele se sustenta por um equívoco” (Lacan, lição de 19/04/1976).

A abolição de sentido e o passo de sentido em jogo no chiste do familionário ilustram como a palavra pode ser amarfanhada, amarrotada (Idem). A girafa amassada do pequeno Hans não correspondia univocamente à mãe. Ela era sucessivamente a mãe, a criança, o falo da mãe, o que evidencia seu caráter significante. Nessa nova ressonância, além dos diferentes sentidos que a palavra assume de acordo com as leis da linguagem, importa o efeito operatório do significante, cuja lei é o equívoco.

Da razão intrínseca à estrutura de linguagem do inconsciente, trata-se de passar às vibrações, à réson, o que implica servir-se da palavra para um uso inusitado. Há uma forma de chiste ou aproximação a ele quando o equívoco joga com o não-sentido fundamental de todo uso do significante. Apesar de as palavras serem recebidas e não forjadas pelo falante, explorar suas ressonâncias é propiciar o surgimento de “um significante, por exemplo, que não teria, como o real, nenhuma espécie de sentido […] nisso consiste o dito espirituoso” (Idem, lição de 17/05/1977).

Ao propor estender a psicanálise à população em geral a fim de fazer frente às ameaças da neurose contra a saúde pública, Freud, (1919[1918], p. 163) afirma que “… qualquer que seja a forma futura dessa psicoterapia para o povo, e não importam que elementos finalmente a constituam, não cabe nenhuma dúvida de que seus ingredientes mais eficazes e importantes continuarão a ser aqueles que tomar de empréstimo à psicanálise rigorosa, alheia a todo partidarismo.” A alternativa entre o ouro da psicanálise estrita e não-tendenciosa em contraposição ao cobre da sugestão se atualiza agora nos termos da interpretação. Resta, então, verificar se, sem a presença dos corpos em um mesmo espaço, a interpretação seria suscetível de jogar com os incorporais que parasitam os significantes nos efeitos de sentido, levando as ressonâncias ao extremo do não-sentido.

Para concluir

Quer se trate do dispositivo tradicional da análise, dita atualmente presencial, quer se trate do virtual ou on-line, cabe à palavra tocar o gozo, passando pelo corpo. Importa, então, se ela comporta a tática capaz de dar valor de interpretação a um dito.

Na prática da interpretação que prioriza a ressonância, destaca-se aquilo de que se serve uma análise para afrouxar as relações dos significantes-mestres com o gozo, ao invés de priorizar para que ela serve: a sustentação da transferência durante a interrupção das sessões presenciais, a cura, obtida por acréscimo, etc. A questão é se e o quanto essa prática é compatível, não com a separação dos corpos do analista e do analisante – porque separados sempre estiveram –, mas com a distância e a barreira entre eles.

Ao fundir o ouro da análise com o cobre, o analista se serve dos recursos tecnológicos sem tomá-los por um meio, o que implica poder deles prescindir.

REFERENCIAS

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