O ensino da psicanálise: as três questões kantianas entre loucura e impossível
La enseñanza del psicoanálisis: las tres cuestiones Kantianas entre locura e imposible
The teaching of psychoanalysis: three Kantian questions concerning madness and the impossible
ANGÉLICA BASTOS
Angélica Bastos é professora titular no Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP).
angelicabastosg@gmail.com
RESUMO
O presente artigo interroga o ensino da psicanálise e, em especial, o ensino da psicanálise na universidade. Parte do aforismo de Jacques Lacan “Todo mundo é louco, ou seja, delirante” e da leitura que dele faz Jacques-Alain Miller, circunscrevendo a sentença em sua conjuntura histórica relativa ao Departamento de Psicanálise na universidade francesa. Aborda os impossíveis inerentes a cada discurso e, com base no discurso do Analista, se detém na transposição das três questões kantianas para a psicanálise e para o ensino da psicanálise na universidade. A questão “O que posso saber na análise?” se enuncia: “O que se pode saber da psicanálise no ensino universitário?” “O que devo fazer enquanto analisante?” se coloca como: “O que devo fazer enquanto psicanalisante que ensina na universidade?” “O que me é permitido esperar da análise?” se transforma em: “O que me é permitido esperar do ensino da psicanálise?”.
PALABRAS CHAVE: ensino | impossível | loucura | universidade
RESUMEN
El presente artículo interroga la enseñanza del psicoanálisis y, en especial, la enseñanza del psicoanálisis en la universidad. Parte del aforismo de Jacques Lacan “Todo el mundo es loco, es decir, delirante” y de la lectura que hace Jacques-Alain Miller de ello, circunscribiendo la sentencia en su coyuntura histórica relativa al Departamento de Psicoanálisis en la universidad francesa. Aborda los imposibles inherentes a cada discurso y, basándose en el discurso del analista, se detiene en la transposición de las tres cuestiones kantianas para el psicoanálisis y para la enseñanza en la universidad. La cuestión ¿“Qué puedo saber en el análisis? Se enuncia: ¿Qué puedo saber del psicoanálisis en la enseñanza universitaria? O “¿Qué debo hacer como analizante?” se plantea como “¿Qué debo hacer como psicoanalizante que enseña en la universidad? “Qué me es permitido esperar del análisis? Se transforma en ¿“Qué me es permitido esperar de la enseñanza del psicoanálisis?”.
PALABRAS CLAVE: enseñanza | imposible | locura | universidad
ABSTRACT
This article questions the teaching of psychoanalysis and, in particular, the teaching of psychoanalysis at the university. Part of Jacques Lacan’s aphorism “Everyone is mad, that is, delusional” and of the reading that Jacques-Alain Miller makes of him, circumscribing the sentence in its historical conjuncture relative to the Department of Psychoanalysis at the French university. It addresses the impossibilities inherent in each discourse and, based on the discourse of the therapist, stops at the transposition of the three Kantian issues for psychoanalysis and for the teaching of psychoanalysis at the university. The question “What am I to know in the analysis?” states: “What am I to know about psychoanalysis in university education?” “What should I do as an analyzer?” is as: “What should I do as a psychoanalyzer who teaches at the university?” “What am I allowed to expect from analysis?” turns into, “What am I allowed to expect from the teaching of psychoanalysis?”.
KEY WORDS: teaching | impossible | madness | university
Introdução: psicanálise e universidade
Tornou-se moeda corrente que em psicanálise se ensina o impossível de ensinar. Ao invés de reiterar a impossibilidade e, muito menos, de negá-la, pretendo discorrer sobre o ensino da psicanálise na universidade, partindo do aforisma de J. Lacan “Todo mundo é louco, ou seja, delirante”. (Lacan, 1978 [1979]: 278-288).
J.-A. Miller (2023) restitui esta proposição a sua conjuntura histórica, específica ao Département de Psychanalyse de Vincennes. No ano de 1978, tratava-se da continuidade do Departamento na passagem para a Université Paris 8, em Saint Denis, então em pleno processo de criação. Ao restabelecer o contexto universitário no qual o aforisma foi proferido, J.-A. Miller contrapõe ensino da psicanálise na universidade e experiência clínica, permitindo-nos redimensionar o impossível que – diga-se de saída – não é o mesmo na instituição universitária e na práxis psicanalítica.
É certo que J. Lacan valoriza o sintagma “formações do inconsciente” contra a expressão “formação do psicanalista”. Com isso, sublinha aquilo de que se serve uma análise, em detrimento daquilo para que ela serve. Para além de qualquer formação acadêmica, consagrou-se a expressão “formação do psicanalista”, a qual prevê o ensino; não o exclui, mas tampouco o visa. As palavras lapidares de J. Lacan são que a psicanálise “não é matéria de ensino” (Lacan, 1978 [1979]). E mais: basta que se caminhe na direção do ensino para que se constate – vale dizer, que se verifique o fato – que “Todo mundo é louco, ou seja, delirante”. Se seguimos a leitura que faz J.-A. Miller do aforismo, submete-se à crítica a tarefa de ensinar psicanálise, ao invés de objetar à experiência clínica.
Ao lado da análise pessoal e da supervisão para os casos de que o analista se ocupa, o ensino é o terceiro elo que precisa ser enodado aos dois outros, não sem a advertência de nele reconhecermos a presença de uma loucura, o que, no presente contexto, não equivale à psicose e não se limita a pontuar que, para qualquer falante, o referente está perdido. J.-A. Miller (2007-2008 [2015]) destaca que o delírio começa com o próprio saber, o que confere à significação caráter delirante. Por sua vez, a universidade não constitui o mais-um capaz de enodar os três elos da formação. A impossibilidade de a universidade propiciar o entrelaçamento da análise propriamente dita (psicanálise em intensão), do ensino (na dimensão de sua extensão) e da supervisão (na intersecção entre intensão e extensão) parece ser um ponto decisivo para o psicanalista que se aventura nas instituições de ensino, sem recuar diante de tal impossibilidade. Entre os três elos, aliás, a prática analítica se beneficia tanto ou mais da supervisão do que do ensino.
A formação permanente do psicanalista não prepara nem habilita a ensinar, mas a conduzir análises. Esta formação constitui um exercício de lida com a palavra, seja a do Outro, seja a própria, sempre com a ressalva de que na condução de análises se trata de autorização e não de conquista de uma competência – verificável ou não de antemão – que habilitaria ao desempenho.
O que se aprende, ou melhor, o que se extrai da experiência psicanalítica não é obtido pela via do ensino, o qual supõe ganho e não a perda que caracteriza uma experiência de análise. Pode-se mesmo asseverar que uma psicanálise nada ensina, posto que aquilo que um analisante retira de seu percurso não é generalizável ou transponível a outrem, não servindo senão a ele próprio. Na travessia de uma análise, o saber que se elabora não conduz a mais saber, não se acumula, nem se sistematiza, mas encontra seu limite.
A tomada da palavra no dispositivo analítico e no ensino da psicanálise constitui um ponto de convergência entre ambos, mobilizando o sujeito que é convocado a falar, a desdobrar significantes, a responder e a perguntar. Porém, diferenças discursivas, estruturais quanto aos significantes, ao saber e ao gozo, estão em jogo. O ensino daquele que passou pelo dispositivo psicanalítico traz consigo as marcas das transformações subjetivas advindas da experiência do inconsciente, sendo possível manifestar algumas delas no ensino das mais variadas disciplinas e, com mais forte razão, no ensino da própria psicanálise, sem que, entretanto, se ensine a exercer essa prática sui generis.
Os impossíveis
O ensino da psicanálise possui suas raízes na experiência do inconsciente e não no discurso da Universidade. Neste último, a filosofia exerceu um papel inequivocamente fundador, muitos séculos antes da experiência freudiana, e J. Lacan preconiza antes a anti-filosofia, contra a história das ideias. A presença de disciplinas de psicanálise na graduação e na pós- graduação universitárias hoje responde ao posicionamento de S. Freud, que a admitiu de bom grado, e àquele de J. Lacan, que se empenhou em sua institucionalização sob a forma do Departamento a ela consagrado no seio da Universidade.
Quanto a S. Freud, vale lembrar que ele não fez da psicanálise matéria de ensino universitário. Ele deposita neste ensino um papel modesto, porém congruente com experiência da análise, ao colocar a prioridade de se ensinar a partir da psicanálise – de uma posição subjetiva alcançada -, ao invés de se ensinar sobre a psicanálise (Freud, 1918-19 [1976]). No ensino universitário, a ênfase recai, portanto, nas consequências da experiência do inconsciente, não na veiculação de teorias e conceitos psicanalíticos.
O impossível remete ao real da relação sexual, ou melhor, ao “Não há relação sexual”, dito de J. Lacan que ele próprio situa como o dizer de Freud, irredutível a seus ditos e ao mesmo tempo dependente deles. Fazer ex-sistir o que não há surge como modo de tratar o impossível. Haver-se com a impossibilidade, portanto, não corresponde a sucumbir a ela na impotência, nem consentir com a ilusão de superá-la, mas a reconhecê-la, elaborando ou construindo, tal como no amor e de modo contingente, algo que faça suplência ao que não há.
A normatividade a que está submetida a psicanálise na universidade não releva da instituição psicanalítica (nem deveria relevar), mas daquilo que em cada país é ditado na esfera política da educação e do ensino universitários e daquilo que, das contingências históricas, veio a ser necessário. Quando as disciplinas de psicanálise ignoram a práxis psicanalítica propriamente dita, correm o risco de reduzir a psicanálise a um conjunto de conceitos e teorias a serem difundidos – quando não popularizados ou mesmo vulgarizados -, em vez remetê-la a uma experiência passível de transmissão. Não há teoria psicanalítica, pois a práxis envolve teoria e experiência, comportando, por conseguinte, um real que não se deixa neutralizar e que precisa ser tanto admitido, quanto localizado na operação analítica, graças à interpretação e ao ato analítico.
Seria inviável explorar os impossíveis sem referência à teoria lacaniana dos discursos. O discurso da Universidade é o menos propício a uma psicanálise. J. Lacan (1978 [1979]) se refere a uma antipatia entre ambos, que se repelem reciprocamente. O discurso que corresponde à experiência do inconsciente, discurso da análise por excelência, possui aspectos a serem destacados. Primeiro, ele leva o nome “do Analista”, salientando sua função imprescindível, necessária. Em segundo lugar, ele é um dos quatro ou cinco discursos formalizados por J. Lacan e nem sempre equivale ao que comummente se designa por discurso psicanalítico, que pode eventualmente corresponder tão somente às teorias elaboradas pelos psicanalistas, isto é, à trama conceitual de que se servem eles próprios e mesmo outros profissionais e pesquisadores. Em terceiro lugar, o discurso do Analista compreende a fala analisante, o que implica que ela provém de um laço discursivo, por sua vez, determinado pela prática de uma análise.
No discurso do Analista, a impossibilidade de ensino decorre de a ausência de dominação impedir que se ensine o que quer que seja. Os princípios do poder em uma análise não se assentam no significante mestre, nem no saber que nele se apoia, mas no semblante que causa o trabalho daquele que vem falar enquanto habitado por Outro. Talvez resida aí o aspecto da formação do psicanalista com maior repercussão no ensino da psicanálise: as raízes do ensino da psicanálise se encontram onde não há ensino e onde o saber prima por comportar seu ponto de furo.
Ao contrário do universal da sentença “Todo mundo é louco, ou seja, delirante”, o saber oriundo da experiência do inconsciente é único, não universalizável e concerne apenas àquele que atravessou essa experiência. Daí o analista produzido por esta experiência não vir a ensinar o que nela apreendeu, mas, sim, oferecer-se a que ela seja atravessada por outros. À diferença dos outros três discursos, o discurso do Analista não promove dominação, nem se toma pela verdade. A aspiração à verdade é incompatível com a verdade variável, de acordo com cada sujeito, variabilidade para a qual se cunhou o neologismo “varidade” (varité).
Um ensino que transmita algo da psicanálise é uma aposta tanto na Escola de psicanálise quanto na universidade. Nesta última, entretanto, as injunções do discurso universitário – que não são exclusivas da universidade enquanto instituição -, assim como as da ciência, se encontram mais solidamente ancoradas. Por isso, J. Lacan concebeu sua Escola de uma forma inusitada, visando à fundação de uma instituição à altura do laço inaugurado por
Freud, a fim de mitigar a incidência daquele discurso na psicanálise e de oferecer um caminho alternativo àquele proposto pelos analistas ditos didatas. Assim, concebeu o cartel como órgão de base da Escola, que exclui a hierarquia em proveito do gradus, sem, com isso, incorrer na simetria e na horizontalidade que seriam antagônicas à preservação da singularidade na transferência de trabalho entre os membros de uma coletividade.
Os discursos formalizados correspondem a diferentes emergências dos impossíveis, cujo plural sugere que não são equivalentes. Que no lugar de agente esteja o significante mestre ou o saber, faz diferença, mas a dominância do saber não exclui o significante mestre, havendo uma dialética entre mestre e ensinante, uma vez que todo pensador lança significantes prescritivos. Conforme destaca É. Laurent, “O saber em posição dominante, esconde a presença do amo/mestre” (Laurent, 2007: 18), de modo que interesses do significante mestre estão em ação no ensino. Adicionalmente, a dominância do saber requer sua exposição, sua explicitação, alimentando a potência delirante das significações, na contracorrente do que a transferência encerra de inconsciente na suposição de saber, pivô em torno do qual a elaboração de saber na análise se viabiliza.
Se S. Freud havia localizado o impossível em três profissões – governar, ensinar e analisar– é fato que, com Lacan, ele alcança um lugar mais fundamental, dependente de uma ausência ou falta estrutural de significante. No que concerne ao ensino da psicanálise, J.-A. Miller (2023) sublinha que o impossível de ensinar concerne antes ao ensino do discurso do Analista do que à psicanálise.
Sendo o discurso do Analista homogêneo à práxis psicanalítica, o desejo e o ato psicanalíticos não são categorias apriorísticas, mas condicionadas pela experiência. O ensino do impossível de ensinar deve ser situado em relação ao discurso e para tal as três questões kantianas, propostas a J. Lacan (1973 [2003]) por J.-A. Miller, podem nos orientar em relação à aporia do ensino.
As três questões kantianas transpostas para o ensino
Parto das clássicas questões kantianas, que correspondem sem dúvida a um esforço totalizante de racionalização. Lacan não as evita, no entanto, talvez porque permitam melhor apreender aquilo a que nos introduz a experiência do inconsciente. Assumimos, por conseguinte, que “… um autor, ou sua obra, serve de instrumento para revelar a verdade de um outro autor. Lacan se serve de Sade como revelador de alguma coisa em outro autor que, a seu turno, revelará algo da psicanálise” (Miller, 2003: 16). As questões retomadas de
Kant se articulam ao mal-estar na cultura, especialmente nos tempos que correm, quando a paixão da ignorância, paixão por excelência do ser falante, assume formas extremadas de negacionismo, seja nos conhecimentos científicos, seja na realidade do mundo globalizado. A avalanche maciça de informação se faz passar por saber e conhecimento, dando lugar ao obscurantismo, o qual nutre as paixões do ódio e do amor, não apenas na religião e na política, mas na vida social no sentido mais amplo.
As questões kantianas não são menos pertinentes ao ensino da psicanálise na universidade do que ao discurso do Analista: O que posso saber? O que devo fazer? O que me é dado esperar? Transpor essas indagações para o ensino universitário pressupõe a extensão da psicanálise, sua presentificação na Escola, nas instituições e no laço discursivo em geral. A extensão universitária, como qualquer extensão da psicanálise, prolonga a intensão ou psicanálise pura, não sem a torção que reúne intensão e extensão em uma mesma estrutura topológica.
Transposta da prática da análise para o ensino da psicanálise, a questão “O que posso saber na análise?” se coloca como: “O que posso saber da psicanálise no ensino universitário?” Ora, o discurso do Analista não é passível de ensino, incompatibilidade que afeta as três questões. “O que devo fazer enquanto analisante?” se transforma em: “O que devo fazer enquanto psicanalisante que ensina na universidade? Por fim, “O que me é permitido esperar da análise?” se transmuta em: “O que me é permitido esperar do ensino na psicanálise?”
O saber textual inconsciente é aquele que interessa à psicanálise. Ele se elabora na experiência e não comporta conhecimento. De acordo com a descoberta do inconsciente, a estrutura de linguagem, com tudo o que envolve de equívoco e falha, condiciona o que pode ser sabido. Trata-se de um saber que não se constitui como objeto de apropriação, não vem a ser possuído, nem tampouco sintetizado, diferentemente do saber ou ideia referencial em jogo nos cursos de graduação e pós-graduação nos quais se ensina psicanálise.
A natureza do saber que concerne à psicanálise toca diretamente no ensino: como ensinar o que não pode ser subsumido no saber referencial? Neste terreno balizado por aporias, trata- se antes de considerar os textos que compõem as referências de saber como um lugar para o endereçamento de interrogações a serem relançadas e não prometidas a respostas.
A ética do bem-dizer orienta o que se deve fazer quando se trata da experiência psicanalítica. Lacan (1973 [2003]) ressalta que esta ética é extraída de sua prática, o que significa, portanto, que é dependente do discurso da análise. Daí colocar-se em questão a possibilidade de que ela prospere em laços discursivos que não uma análise e, com mais razão ainda, no ensino universitário. A necessária liberdade de palavra, tanto na pólis quanto na universidade, não se confunde com a fala engajada na livre associação, cujas condições são discursivas e não se traspõem automaticamente para o ensino.
Estamos incessantemente confrontados com a língua do Outro que, com frequência, resiste a nossa língua de forma franca ou indireta, possivelmente não mais do que resistimos à dele. Conforme advertiu S. Freud, ao cedermos em relação às palavras, acabamos por ceder quanto às coisas e ideias, acreditando que a comunicação seja capaz de erradicar o mal- entendido constitutivo de nossas trocas simbólicas.
Este é um ponto nevrálgico do ensino de J. Lacan na universidade, sempre na tensão entre, de um lado, uma língua específica, com os significantes de Freud e Lacan – para aqueles que já se encontram sob transferência – e, de outro, o consentimento à língua do Outro, do discurso universitário e também científico. Para a descoberta freudiana, é evidente o risco a que fica submetida sua lâmina cortante. Os conceitos de que nos valemos são, antes de tudo, significantes e deles não se pode prescindir.
No que concerne ao que nos é permitido esperar, dispomos de elementos heterogêneos para ensaiar uma resposta. Encontra-se em J. Lacan uma referência ao ato suicida como ponto extremo em que pode desembocar a esperança em um futuro esplêndido. O caráter radical do ato suicida, o único ato passível de êxito sem falhas, é suscetível de derivar da expectativa de um porvir ideal. No caso do ato suicida, a queda do ideal resulta em tomar o partido de nada saber, como em qualquer passagem ao ato, e nos remete à primeira questão, a do saber, que tanto em uma análise quanto na universidade é incompatível com o tudo ou nada, envolvendo, antes, o ponto de furo no saber.
A questão da expectativa precisa, portanto, ser reformulada: de onde esperar? J. Lacan afirma que, quanto a ele, não espera, simplesmente aguarda, o que nos sugere uma espera que não demanda ao Outro, contando, porém, com o engajamento do desejo. Coloca também que cada um espere aquilo que quiser (Lacan, 1973 [2003]), não cabendo esperar a partir do lugar de outrem.
A esperança constitui, ao lado da fé e da caridade ou amor, uma das três virtudes teologais, que são objeto da atenção de J. Lacan. Estas virtudes correspondem a qualidades morais exclusivamente humanas, fundamentando a ação moral por serem capazes de induzir disposições para fazer o bem. J. Lacan as privilegia em relação às quatro virtudes cardeais (justiça, força ou fortaleza, prudência e temperança). Para ele, as virtudes teologais não deixam de exercer função sintomática, que consiste em promover a submissão ao princípio de realidade, ou seja, à fantasia: “isso permite que as coisas não caminhem tão mal” (Lacan, 1974 [2011]: 30), mas a virtude não é o estado a que conduz uma análise e tampouco cabe contar com as virtudes no ensino.
O lugar dominante, de agente e de semblante, pode ser ocupado por elementos simbólicos, como o significante-mestre, o saber e o sujeito, redundando em formas de dominação, à proporção que estes termos organizam o mundo (Miller, 2007-2008 [2015]: 327) e se promovem verdade. Quando o objeto a vem a este lugar, ele não organiza o mundo ou a realidade, mas participa do tratamento do real.
“Ao se oferecer ao ensino, o discurso psicanalítico leva o psicanalista à posição do psicanalisante, isto é, a não produzir nada que se possa dominar, malgrado a aparência, a não ser a título de sintoma” (Lacan, 1970 [2003]: 310). Não se ensina psicanálise para educar ou governar, ou seja, não para promover o domínio do significante mestre, nem o do saber, tampouco, vale dizer, para denunciar a falibilidade do saber do mestre, ao modo histérico. Longe de corresponder ao imperativo da produção, tão proeminente na burocracia e na contabilidade universitárias, na impossibilidade intrínseca ao ensino, o acento recai na produção: a título de sintoma, não a título de mestria, não a título de saber. O sinthoma envolve o real de cada um, real ineliminável, não equivalente à realidade nem ao real da ciência, menos ainda ao mundo.
Para concluir
Restituído a sua conjuntura de origem, “Todo mundo é louco, ou seja, delirante” não corresponde a um slogan em uma campanha de despatologização, nem promove o ensino do discurso do Analista. Este simplesmente não é suscetível de ensino; se o fosse, faria passar por verdade algo acessível apenas na experiência do inconsciente, sempre única. A loucura delirante repousa antes em tomar pelo real o mundo, universalizá-lo, sempre com o desígnio de organizá-lo.
O real não é o mundo. O ideal de transformação do real em mundo espreita a abordagem que a psicanálise faz do real, do qual ela própria depende. A universidade participa do ideal de redução do real ao mundo e essa transformação pode implicar para a psicanálise o fechamento, no qual ela própria se apagaria.
Não sendo possível tratar o real da experiência na atividade de ensino, cabe ao psicanalista que ensina remetê-lo à experiência, pela via do sintoma, não sem frisar a parcialidade de qualquer ensino.
REFERENCIAS