Despoderes
Despoderes
De-pouvoirs
Dispowers
LUCÍOLA FREITAS DE MACÊDO
EBP, AMP, Universidade Catolica de Minasn
luciola.bhe@terra.com.br
RESUMEN
El psicoanálisis apuesta por el discurso como lazo social, que incluye el malentendido, lleva la impronta de los restos no absorbidos por las identificaciones y por los ideales, nutriéndose, paradójicamente, de la soledad radical de cada uno, con lo más singular de su modo de goce. Lo que marca el tono de los lazos del analista con el otro social, con el discurso del maestro y con la política
PALABRAS CLAVE: lazo social, discurso, poder, patriarcado, falocentrismo
RESUMO
A psicanálise aposta no discurso como laço social que inclui o mal-entendido, traz a marca dos restos não absorvidos pelas identificações e pelos ideias, nutrindo-se, paradoxalmente, da solidão radical de cada qual com o mais singular de seu modo de gozo, o que dá o tom dos laços do analista com o outro social, com o discurso do mestre, e com a política.
PALABRAS CHAVE: laço social, discurso, poder, patriarcado, falocentrismo
RESUME
La psychanalyse fait le pari du discours comme lien social, qui inclut le malentendu, porte l’empreinte des restes non absorbés par les identifications et les idéaux, nourri, paradoxalement, par la solitude radicale de chacun avec le plus singulier de son mode de jouissance. Cela donne le ton des liens de l’analyste avec l’autre social, avec le discours du maître et avec la politique
MOTS CLEFS: Lien social, discours, pouvoir, patriarcat, phallocentrisme
ABSTRACT
Psychoanalysis bets on discourse as a social bond which includes misunderstanding, bears the imprint of the remains not absorbed by identifications and ideas, nourishing itself, paradoxically, on the radical loneliness of each one with the most singular of its mode of jouissance, which sets the tone for the analyst’s bonds with the social other, with the master’s discourse, and with politics
KEY WORDS: social bond, discourse, power, patriarchy, phallocentrism
Algunos antecedentes
Sabe o senhor: sertão é onde o pensamento da gente
se forma mais forte que o poder do lugar
(Rosa, 1963, p.26).
O que a psicanálise teria a dizer sobre o poder a partir da experiência analítica como experiência da palavra, sob transferência? É mesmo bem aí onde poderá acontecer, que o pensamento da gente, seja mais forte que o poder do lugar. Nesta passagem de Grande sertão: Veredas (Rosa, 1963) encontramos, na sequência, uma menção ao tempo: “Tempos foram, os costumes demudaram. Quase que legítimo leal, pouco sobra, nem não sobra mais nada […] não fosse meu despoder… aí eu ia. Eu guiava o senhor até tudo” (p.27).
Não fosse o real sem lei e a hiância traumática que o gozo comporta, com as suas disrupções e excessos; não fosse a discórdia entre o gozo e a linguagem, que está na base de toda forma de laço social; não fossem os despoderes constitutivos do “húmus humano” (Lacan, 2003, p.315), como costumava troçar Lacan… os discursos talvez não fossem de semblante, e os poderes, quiçá, estariam do lado de algum mísero progresso. Munida do despoder roseano e do húmus humano lacaniano, volto novamente o olhar para o que a partir da experiência analítica, teria a dizer sobre os ‘poderes’, no plural. Neste breve trajeto, na trilha de Lacan com Guimarães Rosa, algumas perguntas, por alguns instantes, se fixaram.
Rosa fez ecoar em minha lembrança, um tanto obnubilada pela ressaca do momento político, algumas passagens de Lacan (1998), que me são muito caras: “É sempre com a ajuda das palavras que o homem pensa. É no encontro das palavras com seu corpo que algo se esboça” (p.9). E na mesma “Conferência em Genebra sobre o sintoma”, que “o poder jamais repousa sobre a força pura e simples. O poder é sempre um poder ligado à palavra” (p.9).
Esta passagem me leva a “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”, em que Lacan (1958 [1998]) de algum modo aproxima estes dois significantes: a experiência analítica e o poder, apenas para ressaltar que desde que Édipo enveredou pelo caminho da verdade sobre os efeitos da verdade ele renunciou ao poder. Lacan dirá ainda que “a impotência em sustentar autenticamente uma práxis, reduz-se, como é comum na história dos homens, ao exercício de um poder” (p.592).
Naquele momento, e ao que tudo indica, a partir de suas leituras de Hegel e de Alexandre Kojève (2004, p.60), para quem diferentes modalidades da autoridade (a autoridade do pai, do Mestre, do chefe e do juiz) encontram correspondências em distintas formas de exercício do poder – Lacan dirá que a autoridade analítica, diferentemente de tais formas de exercício da autoridade, não reivindica o exercício de um poder.
O contexto de tal assertiva era a experiência psicanalítica tal como exercida no âmbito da IPA e mais precisamente, o campo da transferência. A tomada de posição ética de Lacan foi justamente a de não confundir o poder da sugestão com a ação da transferência, pois a transferência, mesmo conferindo autoridade à pessoa do analista, funda-se na causa do desejo. Funda-se, ainda, naquilo que mais tarde irá formular, já no Seminário 11 (1964[1988]) como o desejo do analista, que somente se sustenta, à condição de cada um separar-se de seu próprio gozo odioso, arranjando-se com sua própria inumanidade. O desejo do analista é aquele que advém da máxima separação entre o ideal e o objeto a.
Todo e qualquer poder em jogo na direção do tratamento, deve ser atribuído – não à pessoa do analista, como aquele que teria “o poder de fazer o bem” (Lacan, 1958 [1998], p.647); ou no extremo oposto, à figura do Outro mau, mas à fala na estrutura de linguagem. É o que Lacan enfatiza, com Freud, a partir de “Psicologia das massas e análise do eu” com base no terceiro modo de identificação determinado por sua função de sustentação do desejo, e especificado pela indiferença em relação ao objeto.
Neste mesmo relatório, interroga sob vários ângulos a função do desejo, na contramão daquilo que poderia confundir-se com alguma figuração do poder:
“Quem tão intrepidamente quanto esse clínico apegado ao terra-a-terra do sofrimento, interrogou a vida em seu sentido, e não para dizer que ela não o tem – maneira cômoda de lavar as mãos – mas para dizer que tem apenas um, onde o desejo é carregado pela morte?” (1958 [1998], p.647).
Proponho retomarmos as coordenadas desenhadas por Lacan em “A direção do tratamento e os princípios de seu poder” (1958 [1998] para fazermos o exercício de ampliar o seu espectro e seus pontos de aplicação aos tempos atuais. A partir deste exercício de ampliação, proponho a seguinte questão: quando o patriarcado como forma de organização social já não dá as regras do jogo, em tempos em que o destino do desejo não se limita às coordenadas edípicas, e o feminino desborda o viril, não mais se prestando à “generalização falocêntrica” (Lacan, 1998a, p.11), o que é possível dizer da função e do campo da fala e da linguagem em psicanálise, hoje? O que nos orientará em seu aggiornamento?
A palavra, ainda…
Se por um lado, não há mais a barra do recalque, e as palavras, objetos caídos nas redes sociais, proliferam por contágio, sem filtros, em toda sua virulência, onde tudo tem o mesmo valor, vida e morte, verdade e mentira, liberação e condenação, defesa e acusação, aplauso e insulto…
Se tudo parece o mesmo nessa proliferação sem fim de palavras que não se fixam, em uma contínua voragem, que agita e excita sem grampear-se a um afeto ou a um significante, em especial, a experiência da palavra em psicanálise pode vir a se apresentar como uma chance de se pescar S1s que venham a fixar ou bordejar, mesmo que precária e pontualmente, os desvarios do gozo.
As palavras, em psicanálise, são convocadas no ponto em que elas tocam o corpo, e podem chegar a mobilizar a experiência de algo que é da ordem de uma “paixão da fala” (Laurent, 2016, p.41), de uma paixão por exteriorizar e extrair do corpo, palavras; e junto com elas, extrair-se a angústia de viver que muitas vezes precipita os falasseres rumo ao pior. Nesse sentido, os poderes da palavra, estes que não se universalizam ou normatizam, funcionam como uma espécie de antipoder.
No ultimíssimo ensino de Lacan, a fórmula ‘o inconsciente é estruturado como uma linguagem’, que inaugura o momento da primazia do simbólico em sua doutrina, é subvertida. Tal subversão exigirá uma virada no que se refere à interpretação, ao ponto de afirmar: “Não há interpretação que não se refira à ligação entre aquilo que se manifesta na fala, no que vocês escutam, e o gozo” (Lacan, 2011, p.26). Neste momento de seu ensino, não poupará menções à dimensão poética da linguagem, por meio do recurso à alusão, ao equívoco e à ressonância. O campo da fala e da linguagem em psicanálise passará a ser abordado em sua plástica materialidade; será torcido e retorcido, entre as suas miríades de sentidos, que só fazem reverberar o furo de onde lalingua provém, sem jamais recobri-lo.
É preciso, como fazem os poetas, dobrar e redobrar, sulcar, cortar, ferir a língua. É preciso fazer ressoar não a beleza das palavras, a rima, o verso, mas o intervalo, a lacuna, o vazio (Macêdo, 2015, p.95), o “forçamento de escrita” (Lacan, 1975-1976[2007], p.130) urdido do encontro com o real, a partir dos vestígios daquilo que tem para o falasser o estatuto de um trauma. A interpretação visará a uma redução do sintoma à sua fórmula inicial, o acontecimento de corpo, remetido ao choque da linguagem, em sua materialidade, com o corpo (Miller, 2015, p.21).
O testemunho e suas torsões entre o poético e o político
Não se deve desconsiderar a magnitude da incidência – para Lacan, mas também, antes dele, com Freud – dos acontecimentos do tempo presente e da “subjetividade da época” (Lacan, 1953 [1998], p.322) na prática da psicanálise. Christiane Alberti (2019, p.19) evoca dois momentos cruciais da história do século vinte, que modificaram a prática analítica: a primeira guerra mundial, momento em que Freud forja o conceito de pulsão de morte; e a segunda guerra mundial, quando os relatos de sobreviventes dos campos de concentração nazistas modificaram, para Lacan, a prática analítica e a experiência do laço social.
Tudo indica que Lacan estava atento aos testemunhos daqueles que sobreviveram aos campos de concentração e que, pouco a pouco começavam a despontar, vencendo o silêncio aniquilador, vindo à luz nas primeiras décadas que se seguiram ao final da Segunda Guerra Mundial. Havia algo ali que, forjando torsões entre a dimensão poética e a dimensão política da linguagem, entre o privado e o público, o íntimo e os discursos, reconectava, por meio da fala ou da escrita, os falantes à vida. Testemunhar era preciso, porque a linguagem se constitui como um recurso capaz de fragmentar a petrificação do horror, e de incidir na paralisação da vida psíquica, advinda destes encontros com o inominável.
Com Freud e Lacan, podemos afirmar, por um lado, que o laço social se funda como consequência de uma perda de gozo, o que permitiria o acesso à fala, a partir da qual se constituem os discursos; e por outro, o laço social se forjará a partir dos restos do trauma como troumatisme, calcados na proximidade entre gozo e trauma. Mas proliferam, hoje, os discursos que não fazem laço social, como o da ciência e o do capitalismo, nos deixando cada vez mais imersos em “bolhas de certeza” (Miller, 2011).
A psicanálise, por sua vez, aposta no discurso como uma modalidade muito singular de laço social, pois trata-se de um laço que inclui o mal-entendido e a evidência de que se goza sozinho, onde o comunitarismo do gozo ou é um sonho impossível, ou se nutre dos desígnios da pulsão de morte. Este modo peculiar de fazer laço, traz a marca dos restos não absorvidos pelas identificações e pelos ideias, nutrindo-se, paradoxalmente, da solidão radical de cada qual com o mais singular de seu modo de gozo, o que dá o tom dos laços do analista com o outro social, com o discurso do mestre, e com a política.
Guardadas as diferenças, o testemunho no campo das artes e da cultura, e aquele que se forja no dispositivo de passe, advindos de uma experiência de análise levada até o final, elucidam a radicalidade do real em jogo quanto às torções operadas por Lacan, entre o interior e o exterior; o individual e o social; e entre o íntimo e o transindividual. O que levou Jésus Santiago (2019) a afirmar que a relação entre o mais íntimo e o discurso, no âmbito da experiência do passe, é o segredo da verdadeira contribuição da psicanálise à dimensão política.
A experiência do final de análise e a emergência do desejo do analista são, ao meu ver, o mais vivo exemplo de conjugação entre o despoder roseano e o húmus humano, este que Lacan recupera com o sicut palea de São Tomás de Aquino, quando este último declara, ao final de sua vida, que todos os seus escritos nada mais são que palha ao vento. Ao que Lacan agrega: “para fazer o amor mais digno que a profusão do palavrório que ele (o amor), constitui até hoje” (Lacan, 1973 [2003], p.315).
Pois bem, temos aqui, justo na passagem de psicanalisante a psicanalista, algumas figurações do despoder da palavra na experiência analítica, este que se afirma, na contramão de toda e qualquer forma de utilitarismo, como ex-sistência: o saber-se dejeto, correlativo da “destituição, queda, evacuação” (Miller, 1998, p.227-228) que advém quando o que valia como significante mestre é destituído, reduzido ao objeto a; o “amor mais digno”, este que não se prestando à “generalização falocêntrica”, traz a marca da impossível relação entre os sexos; e o dispositivo do passe, onde se irá aferir a emergência do psicanalista e o tratamento do real pela palavra, a partir de um saber não universalizável, sobre “certo número de evanescências” (Miller, 1998, p.225-226) [1], em torno de algo que já não existe, pois finda a experiência, será apenas um saber sobre algo que se desvaneceu.
Saber este que, justo no ponto nodal entre o individual e o social, o íntimo e o transindividual, entre o que ressoa da letra de gozo de cada um, em seu ponto mais vivo, e o político, enquanto vida em comum, na polis, se transmite. Será isto um pequeno delírio, ou uma possível contribuição da psicanálise ao campo político?
NOTAS
[1] Miller, J.-A. Los signos del goce. BA: Paidós, 1998, p.225-226.
REFERENCIAS