RESENHA
Jerry newport, autista, em três livros
SÉRGIO LAIA
Membro da EBP e pela AMP
Universidade FUMEC
laia.bhe@terra.com.br
RODRIGO TYMBURIBA DORNELLES DANGELO
Estudante do Curso de Psicologia na Faculdade de Ciências
Humanas, Sociais e da Saúde da Universidade FUMEC
Bolsista de Iniciação Científica (BIC) pelo Conselho
Nacional de Ciência e Tecnologia (CNPq),
sob orientação de Sérgio Laia
Nesta resenha, agrupamos três livros escritos por Jerry Newport, um autista norte americano que se tornou um porta-voz da causa dos autistas há mais de vinte anos: Your Life is Not a Label (2001); Autism-Asperger’s & Sexuality: Puberty and Beyond (2002), assinado em conjunto com sua esposa, Mary Newport; Mozart and the Whale: an Asperger’s love story (2007), redigido também com sua esposa, Mary Newport, e com a ajuda de Johnny Dodd. Privilegiaremos, aqui, as referências que nos permitiram configurar uma breve biografia de Jerry Newport, cuja vida, durante bastante tempo, foi marcada por sua dificuldade para discernir quem ele era. Procuraremos evidenciar como, para esse discernimento, foram decisivos seu próprio descobrimento do diagnóstico de autismo e o encontro com Mary, que tem sido a mulher de sua vida, quando ele já tinha mais de 40 anos de idade e que também se apresenta com esse mesmo diagnóstico.
Primeiros dados
Jerry Newport nasceu em 1948, na cidade de Little Falls, no estado de Nova York. Ele foi o terceiro de três filhos, e seus pais, que haviam sido criados por pais adotivos, almejavam que seus filhos tivessem um pai e uma mãe que não fossem resultado de uma adoção. Desde o início, Jerry Newport dava sinais de que não era uma criança como as outras e, por exemplo, cresceu ouvindo o relato de que empurrava sua mãe toda vez que ela tentava pegá-lo no colo e abraçá-lo. O abraço era vivido como uma “perda de controle”, como se fosse “apertado até a morte” (squeezed to death) e, quando ele tinha dois anos de idade, sua mãe finalmente desistiu de tentar um contato físico com ele (Newport, Newport & Dodd, 2007, p. 30). Ainda assim, Jerry Newport afirma que, “no fundo” ansiava por “ser tocado, segurado”, mas “não fisicamente” (Newport, Newport & Dodd, 2007, p. 30).
Se o contato físico com o filho não lhe era possível, a mãe não deixou de se relacionar verbalmente com ele. Ainda assim, ele conta que aprendeu a falar com a ajuda de um pássaro, colocado ao lado de seu berço, em uma gaiola, por seu irmão, John. Como um portador da chamada “Síndrome de Asperger” (que foi incluída no chamado Transtorno do Espectro Autista, TEA), o fato de Jerry Newport ter aprendido a falar normalmente não deve causar surpresa alguma. Ele próprio faz uma analogia para explicar sua condição de “Asperger” como diferente de grande parte dos casos de autismo e mesmo do que é considerado como “normal”, afirmando que se o autismo é um copo com whisky, o normal é um copo com água e a síndrome de Asperger fica entre os dois. Logo, como ele mesmo esclarece, os portadores de Asperger normalmente aprendem a falar na idade esperada, são capazes de aprenderem habilidades independentes como escovar os dentes e a amarrarem os sapatos, são donos de uma inteligência normal ou acima da média e podem mesmo estar totalmente aptos para trabalhar e se manter em um emprego. Suas “estranhezas”, conclui, Jerry Newport, aparecem sobretudo na comunicação social, mesmo quando mantêm um alto nível de interesse por coisas ou áreas específicas.
Graças a sua memória extremamente precisa e rica em detalhes, Jerry Newport se lembra exatamente do momento em que percebeu com clareza que havia algo diferente com ele em relação às outras pessoas, mas é importante ressaltar que essa percepção ainda não o levou ao diagnóstico de autismo ou de Síndrome de Asperger. No dia de Ação de Graças, no ano de 1952, quando tinha 4 anos de idade, na casa de um de seus tios, onde toda a família estava reunida e conversando sobre diversos assuntos, ele se deu conta de que, por mais que se esforçasse, era simplesmente incapaz de compreender os assuntos discutidos ou entrar em alguma conversa, inclusive porque toda vez que conseguia pronunciar alguma palavra era imediatamente ignorado ou interrompido e subitamente se enchia de ódio e frustração. Nesse dia, quando voltou para casa, ficou se perguntando por que ele era fisicamente tão parecido com qualquer pessoa, mas, ao mesmo tempo, havia algo que o fazia ser muito diferente delas (NEWPORT, NEWPORT & DODD, 2007 p. 34-35). Logo que entrou no Jardim de Infância, percebeu que distinguir as nuances entre diferentes limites relacionados à convivência social seria um dos seus maiores problemas na vida. Não tinha nenhum amigo, além dos seus próprios irmãos. Rapidamente, percebeu que não conseguia acompanhar as atividades em sala de aula do mesmo jeito que seus colegas. Enquanto estes cantavam musicas e batiam palmas, ele sequer conhecia as canções, e sua solução foi participar apenas da parte de bater palmas (NEWPORT, NEWPORT & DODD, 2007, p. 35).
Quanto tinha 6 anos de idade, em 1954, Jerry Newport e sua família se mudaram para Islip, em Long Island, após o negócio de seu pai como vendedor de carros ter fracassado. O pai, então, deu início a uma nova carreira como professor no Ensino Médio de um Colégio. Nessa época, Jerry Newport teve contato com o que se tornaria uma de suas maiores paixões na vida e, como qualquer paixão, seu relacionamento com ela seria repleto de altos e baixos. Estavam sentados no banco de trás do carro os três irmãos, dando cotoveladas um no outro e o pai, sentado no banco do motorista, para prevenir que alguém se machucasse, ou simplesmente para que não enlouquecesse com os filhos, começou a contar os vagões de trens que passavam pela linha férrea ao lado da estrada. Naquela ocasião, Jerry Newport já sabia contar, mas os números se tornaram vivos para ele, deixando de serem abstratos para se tornarem reais, materiais, e passou a notar o quanto eles estavam por toda a parte e se tornaram uma grande paixão sua. Ele chega mesmo a dizer que passou a escutá-los como “um tipo diferente de música” (Newport, Newport & Dodd, 2007, p. 37).
Em 1955, a experiência de Jerry Newport com os números tomou ainda outra dimensão. Em uma noite qualquer, após o jantar, um papel caiu da bolsa de sua mãe, que havia começado a trabalhar como professora substituta. Ele pegou o papel e olhou com certo estranhamento para o seu conteúdo e perguntou à mãe qual era o significado do que estava escrito. “São tabuadas de multiplicação”, respondeu ela, fornecendo-lhe ainda uma breve explicação sobre o conceito, embora este fosse um pouco avançado para uma criança que, como Jerry Newport, estava apenas na segunda série (Newport, Newport & Dodd, 2007, p. 39). Pouco tempo depois, em um domingo à tarde, seu pai estava sentado com uma calculadora e envelopes com dinheiro de doações para a igreja que a família Newport frequentava: sua tarefa era justamente somar as quantias que haviam sido doadas. Jerry Newport se aproximou da mesa, viu os números que seu pai já havia escrito no papel e, de forma espontânea, sem recorrer à calculadora, escreveu o número que correspondia à soma de todos os números. Seu pai o olhou com certo espanto, mas nem Jerry Newport conseguia explicar algo que lhe ocorreu de maneira tão imediata. Animado, seu pai lhe deu mais contas para fazer, com números cada vez maiores, e todas as vezes bastava Jerry Newport bater o olho que ele já gritava a resposta correta. Sua mãe não ficou tão impressionada, mas apenas concluiu que, sendo ela e o marido bons com números, Jerry Newport teria talento também nesse campo. Naquela mesma ocasião, após ter sido muitas vezes destacado em seu talento com as contas, ele se cansou de ficar no centro das atenções, começou a se sentir como um palhaço do circo e saiu da sala para pensar em qualquer coisa que não fosse números (NEWPORT, NEWPORT & DODD, 2007, p. 36-41).
Ele acabou ganhando fama com sua habilidade com números, chegando a ser conhecido no Colégio como uma calculadora humana. Por vezes, crianças das quais ele nem sabia da existência o abordavam para que ele lhes fizesse uma conta com números grandes e intimidadores. Ainda assim, isso não era suficiente para que ele deixasse de ser visto como um estranho. O interesse das outras crianças em Jerry Newport durava o mesmo tempo que ele demorava em fazer uma conta em sua cabeça. Até seus pais começaram a exibi-lo como um troféu, tendo em vista sua habilidade com os números. Porém, Jerry Newport acabou deixando de ficar animado com esse seu dom: não o sentia como útil para alguma coisa, pois continuava sendo uma criança solitária e vista como esquisita. Assim, sempre se questionava por que, ao invés de ser talentoso com números, ele não havia nascido com talento para esportes. Seu pai tentou ajudá-lo, aplicando, com relação às estatísticas esportivas, a habilidade de Jerry Newport com números: em pouco tempo, tornou-se uma enciclopédia numérica para esportes, o que lhe proporcionou um forte sentimento de controle e que lhe foi muito bem acolhido porque, assim, pôde “impor uma espécie de ordem em um universo que frequentemente era sentido como inteiramente caótico” (NEWPORT, NEWPORT & DODD, 2007, p. 57).
Um dos momentos mais marcantes de sua vida foi quando aprendeu a andar de bicicleta, quase que forçadamente, com a ajuda de seus irmãos e outros meninos do bairro: “nada foi igual novamente”, porque todos já andavam de bicicleta, exceto ele (Newport, Newport & Dodd, 2007, p. 59). Essa experiência de que era diferente, mas que, ao mesmo tempo, queria ter um lugar no mundo como os outros, manifestava-se ainda de modo mais contundente porque ele era uma criança extremamente tocada por seus próprios sentimentos, mas não lidava muito bem com os sentimentos alheios. Essa dificuldade com a “empatia” não era sinal de “maldade” da sua parte: ele apenas “nunca ligava todos os pontos” (Newport, Newport & Dodd, 2007, p. 61). Por exemplo, certa vez, viu um pai desesperado na rua por causa da morte de um filho e, no dia seguinte, imitou as reações daquele homem para seus colegas, achando que seria engraçado: ninguém riu e ele foi abandonado, sozinho, na escada do colégio. Outro exemplo, foi quando, em 1964, um de seus melhores amigos, Johnny Aichroth, morreu de forma trágica: mesmo no velório, Jerry Newport não conseguia manifestar sua dor como os outros presentes naquela cerimônia, mas esclarece-nos que não era insensível de modo algum àquela perda: a dor que o consumia era a mesma que as outras pessoas e a única diferença era que a sua não era possível de ser compartilhada: “Isso não poderia vir para fora. Tudo ficava para mim mesmo” (Newport, Newport & Dodd, 2007, p. 84-87).
Sua chegada à puberdade intensificou seus problemas de comunicação, socialização e hipersensibilidade. Jerry Newport percebeu que as pessoas ao seu redor estavam mudando. Meninos e meninas se olhavam de maneira diferente, conversavam de forma diferente e, apesar de não saber exatamente o que fizesse acontecendo, ele tinha certeza de que queria fazer parte daquilo, embora não fazia a menor idéia de como. Enquanto seus colegas tinham namoradas, restava-lhe apenas a prática de masturbação, que ainda era repreendida pelo seu pai, mas não o suficiente para que ele parasse de sustentá-la, inclusive por ser o que considerava realmente bom em sua vida. Ele vivia um verdadeiro dilema: tinha vontade de conversar e interagir com mulheres, mas não possuía a mínima noção de como fazê-lo. Seu desespero para ter uma namorada o fazia se lembrar de quando era criança e saia pelas ruas à caça de borboletas, mas, justamente, quando conseguia pegar uma, não tinha a menor idéia do que fazer com ela. Muitas vezes ele se perguntava como as outras pessoas sabiam exatamente o que fazer, e como fazê-lo? Haveria um livro, um guia que ensinaria as pessoas a se relacionarem? Precisava de ajuda, de alguém que pudesse responder às suas perguntas, mas a idéia de que admitir que ele tivesse perguntas para quais ele não tinha respostas impediam que ele procurasse auxílio. Seu desespero o fazia desejar que, se pudesse trocar seu dom com os números pela capacidade de conversar livremente com alguém, ele o faria sem titubear (NEWPORT, NEWPORT & DODD, 2007, p. 79-83). Nesse contexto, não é sem razão que, muitos anos mais tarde, ele vai escrever livros que têm, justamente, a função de ser uma espécie de guia que não lhe foi possível ter na adolescência e mesmo ao longo de sua vida (NEWPORT, 2001; NEWPORT & NEWPORT, 2002).
Aos 15 anos de idade, percebeu que procurava a aceitação nos lugares onde jamais a obteria. Assim, ao invés de procurar ser um dos garotos populares do colégio e ser visto na companhia das meninas mais bonitas, chegou a conclusão de que teria muito mais sucesso socialmente caso se relacionasse com pessoas que compartilhassem dos mesmos interesses que ele, como os frequentadores do Clube de Matemática ou do Clube de Escoteiros. Entre os vários conselhos que dá ao longo dos livros que estamos resenhando, este é considerado por ele mesmo como um dos mais importantes: um autista não deve procurar ser o que ele não é, deve procurar ser feliz com seu próprio jeito de ser, tentando conviver com grupos de pessoas que têm interesses que lhe sejam comuns.
Quando estava no último ano do Ensino médio, Jerry Newport deixou de dar a mínima para a escola e aguardava ansiosamente a hora de ir para a faculdade. O único ponto positivo desse ano foi que finalmente teve coragem para convidar uma garota para sair, embora acabou se deparando com a mesma decepção de não conseguir seguir adiante em mais esse relacionamento. Em contradição ao que ele mesmo sugere nos seus livros, no momento de entrar para uma Universidade, acabou escolhendo a Universidade de Michigan, a mais de 700 milhas de distância de Islip, de seus pais, ou de qualquer pessoa que pudesse conhecê-lo (NEWPORT, 2001, p. 50-51; NEWPORT & NEWPORT, DODD, 2007, p. 89-90). Ainda assim, via essas 700 milhas como a possibilidade de um recomeço: conhecer pessoas novas; ter novos amigos, amigos de verdade, e quem sabe, até voltar para Islip com uma namorada que fizesse as pessoas se sentirem arrependidas por não o terem tratado melhor.
No meio universitário
Quando chegou à Universidade de Michigan, beneficiando-se do anonimato, ele finalmente achou que poderia ser o que ele quisesse e, inclusive, tornar-se conhecido como jamais havia sido até então. Chega mesmo a relatar que, ao chegar, escutou uma “vozinha dentro de sua cabeça” dizendo-lhe: “ninguém conhece você aqui. Ninguém sabe quem você é. Mas quando chegar a hora de ir embora, eles saberão. Todo mundo por aqui saberá quem é Jerry Newport” (Newport, Newport & Dodd, 2007, p. 102). Tudo o que ele queria era se enturmar e derrotar aquilo que existia no seu interior e o fazia ser tão diferente das outras pessoas. Como é comum no meio universitário norte-americano, ele de início tentou entrar para uma “fraternidade”. Seguindo os passos de seu pai, a primeira na qual quis ingressar foi a Phi Delt, mas foi recusado, assim como em tantas outras. Em pouco tempo, a fama de ser uma pessoa desorientada socialmente (que o acompanhava ao longo de toda a sua vida escolar anterior) já o alcançava no campus da Universidade de Michigan. Acabou fazendo parte da fraternidade Delta Chi, composta por alunos que eram tão populares, embora não fosse essa sua primeira opção. Assim, continuou adotando a orientação de não insistir nos lugares onde era rejeitado e, então, a Delta Chi não lhe pareceu uma escolha ruim (NEWPORT & NEWPORT, DODD, 2007, p. 102-105).
Na fraternidade Delta Chi, todos os membros pareciam mesmo se importar um com o outro. Mesmo assim, ela contava apenas com trinta participantes e, no outono de 1967, sua existência foi colocada em xeque ao ser alvo de um movimento nacional que ameaçava fechar inúmeras fraternidades pelo país. De uma hora pra outra, a sobrevivência da Delta Chi virou uma questão de sobrevivência para Jerry Newport. Afinal de contas, como ele conseguiria completar seu plano tão engenhoso de se reinventar se seu principal elo com a sociedade deixaria de existir? A solução encontrada foi de ele próprio se candidatar à presidência da fraternidade: ele o fez e acabou sendo eleito. Passou, então, os dois semestres seguintes dedicando-se quase que exclusivamente ao recrutamento de novos calouros para entrarem na fraternidade, deixando de lado os estudos. Ainda assim, não deixou de ser um péssimo líder e se mostrava completamente incapaz de delegar funções e se apresentar como uma autoridade (NEWPORT & NEWPORT, DODD, 2007, p. 106).
Também nos tempos que frequentou a Universidade de Michigan, Jerry Newport ficou conhecido por conseguir um primeiro encontro com uma garota do campus, mas sem chegar a ter ao menos um segundo encontro com ela. Para marcar o primeiro encontro, adotava sempre a mesma estratégia: andava pela Biblioteca reparando qual livro uma garota estava lendo e, a partir daí, iniciava com ela alguma conversa que tivesse qualquer relação com tal leitura. Sua falta de percepção para o modo como as relações sociais se realizavam, aliada à sua enorme insegurança, sempre o levavam a fracassar em suas empreitadas amorosas. Apenas no verão de 1968 que teve sua primeira experiência sexual: em uma viagem à São Francisco, sob efeito de LSD, perdeu sua virgindade com uma prostituta (NEWPORT & NEWPORT, DODD, 2007, p. 109-110). Pouco depois de voltar à Universidade de Michigan, também teve relações sexuais com uma menina que havia conhecido em uma festa, mas essa acabou se tornando mais uma oportunidade para que ele se deparasse com sua falta de habilidade social: logo após o ato sexual, achou que seria perfeitamente normal pedir à sua parceira sore conselhos de como ele conseguiria passar mais tempo com outra garota em quem ele estivesse também interessado. Quando percebeu que aquele não era o melhor assunto para se ter naquele momento, já era tarde demais, pois sua parceira lhe pediu que a levasse embora (NEWPORT & NEWPORT, DODD, 2007, p. 109-110). Consideramos importante citar como Jerry Newport, anos depois desses acontecimentos, consegue retomá-los e revê-los sob outra perspectiva, mas já se valendo de uma localização que o diagnóstico lhe permitiu fazer e que, inclusive, envolvia uma distinção no que passou a ser considerado por ele como um “eu”:
Nunca me dava conta de que estava agindo como o último e mais insensível bruto. De início, não. Aquela parte de meu cérebro não existia. Em um minuto, eu estava bem sem jeito de fazer sexo com uma mulher e, no minuto seguinte, minha mente deslizava para outra mulher. Em vez de manter aqueles pensamentos quietos e separados, como qualquer pessoa normal teria feito, eu deixava escapar exatamente o que estava acontecendo dentro de minha cabeça.
Anos mais tarde, me dei conta (realized) de que era meu Asperger tendo aquela conversa – e não eu.
Quando foi se aproximando final da Graduação, seu futuro não lhe parecia nada promissor. Enquanto seus colegas já estavam participando de entrevistas de emprego ou até mesmo trabalhando, ele estava completamente perdido. Depois que a ameaça de sua fraternidade fechar as portas não se concretizou, passou a dedicar seu tempo quase que exclusivamente para as festas e se socializar. Sua média de notas entrou em uma decrescente constante e, como ele não dava mais a menor importância em impressionar alguém pelas suas conquistas acadêmicas, passou a freqüentar apenas 20% das aulas. As drogas, nesse contexto, tomaram um lugar importante na sua vida, através do uso de bebida em excesso ou de viagens com ácido lisérgico. Esse alucinógeno lhe proporcionava um efeito incrível de normalidade, pois faziam seus amigos agirem exatamente da mesma forma que ele quando estava em perfeito estado de consciência. Assim, por exemplo, sob o efeito de LSD, ninguém achava bizarro ficar olhando para uma parede branca por trinta minutos sem piscar os olhos (NEWPORT & NEWPORT, DODD, 2007, p. 111).
Em 1969, o pai de Jerry Newport teve um infarto e faleceu. Eles já haviam se distanciado consideravelmente nos últimos anos, principalmente pelo fato de que, para Jerry Newport, seus pais desejavam filhos perfeitos e não queriam se dar ao mínimo trabalho de lidar com as falhas de sua prole. De início, a morte do pai não lhe impactou muito, mas, pouco tempo depois, outro fato fez com que o chão desaparecesse sob seus pés: estava morando com mais seis colegas em uma casa fora do campus universitário e, de repente, percebeu que havia se formado, conseguido um diploma que, entretanto, não significava absolutamente nada em sua vida, mas que o futuro já não era mais possível de ser postergado. Aliás, o futuro bateu literalmente em sua porta no momento em que se deu conta de que os colegas já haviam se mudado e um novo morador acabava de chegar para ocupar o seu lugar naquela casa onde apenas ele ainda se encontrava. Em vinte minutos, jogou todos seus pertences no porta-malas de seu carro e partiu sem ter qualquer idéia para onde ele estava indo (NEWPORT & NEWPORT, DODD, 2007, p. 111-112).
Três duplos e a função do diagnóstico
Pelos 23 anos seguintes à sua graduação universitária, Jerry Newport fez de tudo um pouco, mas nada que o levasse para qualquer lugar que fosse remotamente parecido com que ele um dia havia idealizado: foi caixa em uma Biblioteca, bibliotecário em uma Escola pública, vendedor de maconha e, sobretudo, motorista de taxi em San Diego por muitos anos. Em 1985, após perder seu emprego como taxista, ele se viu obrigado a voltar a morar com sua mãe que, nessa ocasião, vivia em Santa Monica, na Califórnia. O peso do fracasso o atormentava, assim como a falta de rumo ou de qualquer perspectiva de futuro.
Ainda assim, havia momentos em que ele podia vislumbrar no seu horizonte alguma luz e, por incrível que pareça, Hollywood desempenhou um papel fundamental em sua vida. A primeira vez foi quando ele assistiu ao filme Free Willy, que conta a história do relacionamento entre uma baleia e um garoto (NEWPORT & NEWPORT, DODD, 2007, p. 125-126). Ele adorava a forma com que esses dois se tornaram amigos, e especialmente a cena em que o garoto toca Willy pela primeira vez, pois a baleia tinha tanto vontade quanto medo de ser tocada, fazendo-o lembrar dessa mesma sensação em seus dias da infância e, assim, a baleia Willy nos parece se apresentar como um duplo para Jerry Newport. Mas nada se compara ao segundo filme que ele assistiu e do efeito que este lhe causaria quando comprou o ingresso para ver Rain Man, em 1989. Naquele dia, ele foi casualmente ao cinema, mas, depois de ver esse filme, nunca mais foi o mesmo, pois foi acometido pelo que o autor Steve Siberman descreveu no livro Neurotribes como o “efeito Rain Man”. O personagem principal desse filme é Raymond Babbit, um autista que possui habilidades matemáticas similares às de Jerry Newport. Assim que esse personagem apareceu na tela, Jerry Newport não conseguiu mais tirar seus olhos dele. Nunca antes em sua vida havia se identificado tanto com um personagem de filme, e mesmo sabendo que se tratava de uma pessoa fictícia, parecia uma sombra, uma espécie de duplo dele mesmo. Saiu do cinema como se tivesse encontrado um irmão perdido e, no caminho para casa, lhe veio a idéia de que, se soubesse mais sobre Raymond, consequentemente conheceria mais sobre si mesmo.
Até então, Jerry Newport não tinha nenhum conhecimento efetivo sobre autismo e tampouco se sentia como se fosse um autista. Mas suas semelhanças com o personagem autista de Rain Man eram grandes demais para serem ignoradas. Pouco tempo depois, descobriu, quem havia sido o psicólogo consultor do filme e lhe escreveu uma carta contando a historia de sua vida. Duas semanas depois, o psicólogo lhe escreveu dizendo que, a seu ver, Jerry Newport tinha de fato muitas características de uma pessoa autista e o incentivou a saber mais a esse respeito. (NEWPORT & NEWPORT, DODD, 2007, p. 126-128).
Nos meses seguintes, passou a maior parte do seu tempo enclausurado nos corredores da biblioteca pública de Santa Monica, devorando livros a respeito do autismo. Para sua decepção, quanto mais lia, menos autista ele se sentia, até que se deparou com um livro escrito por Temple Grandin, intitulado Emergence: Labeled Autistic. Pela pela primeira vez, então, após ter visto Rain Main, passou a saber mais sobre a Síndrome de Asperger e. quando chegou ao final do livro, percebeu que naquelas páginas existia uma pessoa que lhe era semelhante, ou seja, mais um duplo só que, agora, efetivamente existente. Portanto, se existiam pessoas como ele pelo mundo, já não estava mais sozinho (NEWPORT & NEWPORT, DODD, 2007, p. 128).
O passo seguinte foi começar a frequentar a Sociedade de Autismo de Los Angeles e, apesar do receio inicial de ser rejeitado como participante, foi muito bem recebido e, na primavera de 1992, já estava eleito para o Conselho de Diretores dessa organização. Sua primeira idéia foi criar um grupo de apoio voltado exclusivamente para adultos, um espaço onde os autistas participantes não se preocupassem com qualquer possibilidade de cura, o que se distanciava do foco da Sociedade que estava mais voltada para as crianças. Três meses depois, 14 adultos se reuniram em um auditório em durante uma hora discutiram sobre o que aquele grupo poderia oferecer a eles, onde e quando as reuniões poderiam acontecer. Ao final do verão de 1993, o grupo foi batizado de AGUA – Adults Gathering United Autistic, e já tinha 24 membros. Pela primeira vez na vida, Jerry Newport tinha a satisfação em sentir que estava empenhado em alguma coisa pelas premissas certas. Ele não estava agindo mais para causar uma boa impressão, mas para caminhar, a cada reunião, ao lado daqueles que também passaram suas vidas enfrentando as mesmas batalhas que ele mesmo já havia enfrentado (NEWPORT & NEWPORT, DODD, 2007, p. 130-133).
O encontro com uma mulher
Era uma tarde de setembro, em 1993, Jerry Newport estava imerso na sua missão de conseguir confeccionar uma fantasia de baleia para a festa de Halloween do grupo AGUA e recebeu um telefonema que mudaria sua vida para sempre. Por estar muito concentrado nessa atividade, atendeu sem muito interesse e ansioso para que pudesse desligar o telefone o mais rápido possível. Do outro lado da linha, falava Mary Meinel, uma mulher também portadora de Síndrome de Asperger e que, por ter ouvido falar sobre o grupo AGUA, estava interessada em conhecê-lo. Jerry Newport a convidou para o Halloween, deu-lhe as direções para encontrar o lugar dessa festa e desligou o telefone (NEWPORT & NEWPORT, DODD, 2007, p. 133-134).
Jerry Newport acabou se encontrando mesmo com Mary Meinel menos de um mês depois desse primeiro telefonema. Foi um encontro breve, mas nem por isso pouco intenso. Ele estava usando sua fantasia de baleia, ou algo que fosse parecido com isso, e ela estava vestida de Mozart. Sua primeira impressão foi de que ela era diferente das outras mulheres que freqüentavam o AGUA, pois Mary Meinel era comunicativa, enérgica, demonstrando um genuíno interesse pelo que os outros falavam com ela. Eles se apresentaram e, logo em seguida, Jerry Newport já estava exibindo suas habilidades calculando o dia da semana em que ela havia nascido. (NEWPORT & NEWPORT, DODD, 2007, p. 134-136).
Quatro semanas depois, voltaram a se encontrar novamente, em uma reunião do grupo AGUA. No dia seguinte, ele recebeu mais um telefonema inesperado: Mary o convidava para sair. Com certa incredulidade, ele aceitou o convite e, uma semana depois, estava na porta do apartamento de Mary. Como ambos tinham um profundo amor pelos animais, o Zoológico configurou-se como um bom destino para esse primeiro encontro marcado. No caminho, ele fez todos os tipos de truques matemáticos que poderia pensar ao ver um outdoor ou placas de carros, mas não os fazia não para se exibir e, sim, para se acalmar. Por sua vez, Mary o encorajava e dizia que gostava de sua habilidade. A sintonia entre eles era quase palpável e, para Jerry Newport parecia tão natural poder, finalmente, estar ao lado de alguém que tivesse uma visão de mundo parecida com a dele. Quando já estavam no ponto de ônibus para irem embora, a emoção invadiu o corpo de Jerry. Por um momento, ele jurou que havia escutado a voz de deus em sua cabeça dizendo “Eis aqui a sua recompensa Jerry.. eis aqui a recompensa pela vida arruinada que eu te fiz suportar” (NEWPORT & NEWPORT, DODD, 2007, p. 147-148).
Eles até tentaram ir mais devagar com o relacionamento, mas o desejo de estarem perto foi mais forte. Em uma noite de Natal, duas semanas depois que haviam se beijado pela primeira vez, dormiram juntos. Pela primeira vez na vida, Jerry Newport rebaixou a importância do sexo a nada. Tudo que ele queria era uma amiga, e não uma parceira sexual perfeita que pudesse mostrar ao mundo como se fosse uma conquista e uma prova da sua masculinidade. Logo eles começaram a fazerem planos de morarem juntos, e passaram a virada do ano de 1993 para 1994 caminhando pela Hollywood Boulevard enquanto ele usava sua desastrosa fantasia de baleia, batendo por todos os lugares e tropeçando pela calçada. Dormiram juntos no apartamento de Mary e, pela primeira vez, ao acordar, ele não quis ir para casa: sentia-se desejado e a certo de que queria passar o resto da sua vida ao lado daquela mulher. (NEWPORT & NEWPORT, DODD, 2007, p. 148-151).
Na manhã de 17 de janeiro de 1994, um terremoto de grande proporção abalou Los Angeles e o apartamento em que Mary vivia não foi poupado. Como o apartamento em que Jerry Newport morava não foi atingido, a solução mais prática para o problema de moradia dela foi que passariam a morar juntos, mesmo se conhecendo há apenas 93 dias. Logo no primeiro dia, as primeiras diferenças entre o casal foram expostas. Jerry Newport saiu para trabalhar pela manhã, enquanto Mary ficou em casa se ocupando de botar um pouco de ordem no apartamento que mais lhe parecia um depósito de lixo. Quando ele chegou em casa, ficou desorientado: toda sua bagunça, que não deixava de ser sua, havia sumido – estava tudo limpo, e ele não aprovou a mudança. Tiveram, então, uma discussão acalorada. Mudanças e surpresas não eram bem suportadas por ele, mas, por Mary, ele teria que mudar e aceitar algumas, pelo menos dessa vez. (NEWPORT & NEWPORT, DODD, 2007, p. 151-154).
De maneira geral, Jerry Newport e Mary eram como qualquer outro casal que estava aprendendo a conviver. O que deixava a situação realmente tensa era o temperamento altamente explosivo dele. Por sua vez, Mary havia passado toda sua vida sem saber como seria seu dia seguinte, confiando no destino e na sorte para guiá-la. Outra fonte de estresse era o trabalho de Jerry Newport, pois ele passou a sentir que ser entregador de encomendas era mais um emprego que não o levaria a lugar algum, além de não gostar da idéia de que sua companheira dependesse de um mero entregador de encomendas (NEWPORT & NEWPORT, DODD, 2007, p. 155-156).
Durante a primavera de 1994, Mary conseguiu um emprego na biblioteca médica da UCLA e, atuando um pouco como lobista, conseguiu que Jerry Newport também fosse contratado pelo departamento financeiro. Para ele, esse novo emprego representava a possibilidade de sonhar e vislumbrar um futuro mais promissor. Em agosto do mesmo ano, Jerry Newport e Mary já estavam casados. Mas a idealização da convivência perfeita e até a crença de que, como portadores de Asperger, a vida em conjunto lhes seria naturalmente mais fácil não se efetivaram. O casamento começou a ruir logo de início. Mary sofria com problemas de saúde e, pouco tempo após ter se casado, pediu demissão do emprego. Jerry Newport voltou a ser uma pessoa de extrema sensibilidade tátil, não suportava qualquer tipo de distração enquanto estivesse realizando alguma atividade. Sua inexperiência em relacionamentos, aliados a sua própria personalidade, faziam com que ele guardasse todos os seus sentimentos para si, até que eventualmente eles eclodiam na forma mais crua de raiva e gritaria como reação à um fato completamente trivial, como uma simples mudança no volume da televisão. Mary, por sua vez, não tinha forças suficientes para discussões, preferindo ser deixada sozinha. Ao mesmo tempo, Jerry Newport era tanto incapaz de atender aos pedidos da esposa quanto sentia uma necessidade imediata de reparar a situação e fazer com que sua esposa o compreendesse. Um muro invisível passou a ficar mais alto a cada dia, entre eles (NEWPORT & NEWPORT, DODD, 2007, p. 167-169).
Porém, em julho de 1995, um novo capítulo na conturbada história do casal teve inicio e acabou dando mais uma chance ao casamento, pelo menos por mais algum tempo. Uma repórter do Los Angeles Times os procurou interessada em fazer uma matéria sobre eles e o autismo. Alguns meses depois, no dia 23 de outubro, a reportagem estava estampada na capa do jornal com o título “Contra as disparidades (odds): Uma História de Amor”. Ao invés de ter privilegiar o grupo AGUA e a causa do autismo, a repórter focou no relacionamento afetivo do casal. Em pouco tempo, eles se tornaram o casal mais almejado pelos diretores e roteiristas de Hollywood. Chegaram mesmo a se encontrar com Robbin Williams e Steven Spielberg para discutir a possibilidade de fazerem um filme (NEWPORT & NEWPORT, DODD, 2007, p. 169-172). O ápice da fama, nessa circunstância, foi quando gravaram um episódio para o programa 60 Minutes, representando o primeiro casal autista na televisão. No entanto, depois que toda a excitação causada pela fama passou, voltaram à mesma rotina tensa e conturbada de antes (NEWPORT & NEWPORT, DODD, 2007, p. 172-179).
A saúde de Mary passou a piorar bastante, levando-a a submeter-se a uma histerectomia. Algum tempo depois de retornar dessa cirurgia, tomou, antes de dormir, todos os comprimidos que ela conseguiu colocar em suas mãos e foi encontrada por Jerry Newport, na manhã do dia seguinte, desacordada, e levada, às pressas, para o hospital (NEWPORT & NEWPORT, DODD, 2007, p. 179). Na sequência dessa tentativa de autoextermínio realizada por Mary, as relações do casal tampouco melhoraram e, seis semanas depois, no dia dos namorados de 1997, Mary pediu o divórcio (NEWPORT & NEWPORT, DODD, 2007, p. 179).
Jerry Newport sofreu muito após esse divórcio. Ele sentia falta de sua companheira e se entristecia muito ao constatar que o sonho de constituir com ela uma parceria que, inclusive, parecia desafiar o que em geral se esperava dos autistas, embora lhes estivesse ao alcance de suas mãos, parecia, de repente, desaparecer. Após alguns meses pedindo para voltar e sempre sendo recusado, Jerry Newport se inscreveu para uma aula de observação de baleias. Foi uma atividade que o recolocou em contato com esse animal com que ele sentia ter uma importante conexão, porque, assim como ele, as baleias passavam a maior parte de suas vidas sozinhas e isoladas. Essa sua fixação por baleias começou quando, ainda criança, assistiu ao filme Willie, a baleia cantora, que contava a história de uma baleia que sonhava em se apresentar no New York Metropolitan Opera. Sua identificação com a personagem era de que, mesmo tendo algo muito especial dentro de si, ninguém o compreendia ((NEWPORT & NEWPORT, DODD, 2007, p. 38 e 198).
Ele continuava a realizar suas conferências como porta-voz da causa dos autistas, destacando como a vida de um autista, assim como de qualquer outra pessoa, era repleta de fases. De fato, naquela ocasião, ele estava vivendo uma fase bastante difícil. Seu emprego já havia se tornado frustrante e até mesmo AGUA não o entusiasmava tanto mais, porque não via perspectiva de que o grupo existiria sem sua presença, embora sua expectativa fosse de que isso pudesse acontecer. Sua situação se agravou quando Mary lhe ligou em um dia de outubro de 1998, pedindo para que fosse até Tucson buscar os pássaros dela, sob a alegação de que não teria dinheiro para alimentá-los durante o inverno que já se aproximava. Relutante, Jerry Newport atendeu esse pedido e, depois de passar uma hora na casa de sua ex-esposa, voltou para Venice Beach na companhia de nove aves. Algumas horas depois desse retorno, ficou sabendo que Mary havia tentado se matar novamente. O fato de que havia estado com ela apenas algumas horas antes e não conseguiu perceber o quanto ela estava sofrendo o devastou ainda mais. Alguns meses depois, ele próprio faz uma tentativa de autoextermínio, ingerindo o que acreditava ser uma quantidade fatal de soníferos, mas que, de fato, não o mata. (NEWPORT & NEWPORT, DODD, 2007, p. 204-207).
Mais de um ano se passava, Jerry Newport continuava mal e, ainda, cada vez mais cansado de viver na agitada Los Angeles. Por sua vez, a situação financeira de Mary se torna ainda mais catastrófica, com o débito crescente de uma hipoteca e um despejo cada vez mais prestes a se efetivar. Como também pensava muito no ex-marido, decide, então, ligar para ele um dia antes da linha telefônica ser cortada. Conversaram sobre suas respectivas situações e Mary lhe fez uma proposta de que ele fosse para Tucson, morar com ela, como uma última tentativa e com a possibilidade de a casa passar para o nome de Jerry Newport. Em março de 2001, ele vai para o Arizona, mas, dessa vez, convencido de que as coisas seriam diferentes, inclusive porque “conhecia todos os truques dela”(NEWPORT & NEWPORT, DODD, 2007, p. 209).
A segunda chance que se deram como um casal procurou se valer do que cada um sabia sobre seus próprios afetos e o funcionamento de suas mentes, mas, ainda assim, parecia que estavam se conhecendo pela primeira vez. Logo eles se sentiram de novo apaixonados e se viam aprendendo a lidar tanto com as semelhanças quanto as diferenças um do outro. A mudança de Los Angeles para a pacata Tucson aliviou bastante Jerry Newport e ele, inclusive, chega a compor, nessa nova cidade, um grupo de apoio para autistas. Com Mary sustentando a casa trabalhando como pizzaiola, ele pôde, finalmente, se dedicar a escrever um livro. Desde que o programa 60 Minutes foi exibido, inúmeras editoras o procuraram para que ele produzisse uma biografia. Estava decidido a escrever um livro que pudesse ajudar outros autistas a partir das experiências recolhidas ao longo de sua vida e, em Tucson, isso se realizou: em setembro de 2001, é lançado Your Life is Not A Label (NEWPORT, 2001).
Quando recebeu o primeiro pagamento por esse livro, Jerry Newport deu uma risada desesperada ao ver que a quantia não era de modo algum suficiente para que pudessem ter uma vida confortável. Mary sugeriu-lhe que ele voltasse, então, a trabalhar como taxista e para a surpresa do próprio Jerry Newport, que já havia jurado nunca mais exercer tal atividade, a idéia não lhe soou tão ruim. Uma empresa de Tucson o contratou imediatamente e, dessa vez, ele não sentia vergonha alguma de seu emprego. Passou a sentir que havia adquirido um passado do qual ele podia sentir orgulho de toda sua trajetória e não havia mais lugar para frustrações ou inferioridade. Voltar a dirigir um taxi passou a ser quase uma meditação para ele. Sua primeira descoberta foi de que ele havia sido refém de seu complexo de inferioridade durante toda sua vida e, de repente, todas as vozes que gritavam em sua cabeça que nada do que ele fazia era suficiente se calaram e foram levadas pelo vento. Ele também tinha certeza de que a principal responsável pela sua evolução era Mary: o amor jamais seria capaz de curar as dores um do outro, mas criava a condição necessária para que cada um pudesse se curar sozinho ((NEWPORT & NEWPORT, DODD, 2007, p. 219-223). Passaram, então, a compartilhar mais suas habilidades autísticas, sem as deixarem guardadas apenas para cada um. Para Jerry Newport, sua esposa fez com que ele convivesse cada dia melhor consigo mesmo, e convencido de que jamais integraria o chamado “mundo normal”, ele pode fazer amizade com a pessoa mais incrível que ele conheceu em sua vida: o próprio Jerry Newport (NEWPORT & NEWPORT, DODD, 2007, p. 238-248).
Jerry Newport continuou escrevendo livros e fazendo palestras em nome da causa autística: redigiu Autism-Asperger’s sexuality: puberty and beyond, juntamente com sua esposa (NEWPORT & NEWPORT, 2002) e também Mozart and the whale. (NEWPORT & NEWPORT, DODD, 2007), de caráter mais biográfico. Em seus dois primeiros livros, encontramos dicas e conselhos para os autistas e para as pessoas que de alguma forma convivem com eles. Esses conselhos englobam desde os assuntos mais banais da vida cotidiana como dinheiro, a vida no colégio ou a locomoção dentro de uma cidade, até as questões mais subjetivas vividas por um autista, como a aceitação de si próprio, as dificuldades nas relações interpessoais, formas de terapia (inclusive com uma menção explícita à Terapia Cognitiva Comportamental em sua função de redimensionamento dos autistas à chamada “realidade”).
Ao lermos os dois primeiros livros (NEWPORT, 2001 e NEWPORT & NEWPORT, 2002), verificamos o quanto suas recomendações vão em direção oposta ao que em geral se encontra na experiência autística: eles se apresentam como um espécie de manual, ensinando comportamentos de uma pessoa considerada normal e com exortações que não deixam de evocar o que encontramos em livros de autoajuda muito característicos do estilo norte-americano de se conceber o mundo e a vida. Ainda assim, para Jerry Newport, não existe a menor possibilidade de um autista ser de fato uma pessoa dita “normal” e caberá a cada autista encontrar os próprios meios para viver em um mundo que não mudará seus parâmetros de “normalidade” apenas para inclui-lo, ou seja, caberá a cada autista o peso de ter que descobrir como se incluir nesse mundo. O princípio, então, passa a ser o de que o autista não deve rejeitar sua diferença, mas abraçá-la e transformá-la efetivamente em um modo de ser na vida. Assim, por exemplo, na introdução de Your life is not a label, Newport (2001) sustenta que, em geral, as dificuldades apresentadas pelos autistas são chamadas “tecnicamente” de “inabilidade (disability)”, mas que ele tem “sempre pensado” a si mesmo como “’diferentemente-habilitado’” (“differently-abled”). Nessa mesma direção, em uma entrevista dada para uma revista, ele foi perguntado sobre o conselho que daria aos autistas para terem sucessos em relações interpessoais e sua resposta foi direta: “Você não tem que ser normal. Você tem que ser a mais validada versão de você (the best available version of you. (NEWPORT, 2001, p. 168).
Os três livros aqui resenhados nos permitem constatar, então, que Jerry Newport, em última instância, acabou conferindo uma excelência para o que ele mesmo tem enfrentado, inclusive com conflitos consigo e não apenas com os outros, em grande parte da sua vida: ser o autista que ele é.