A trilha de Narciso: narcisismo e mal-estar na contemporaneidade
El camino de Narciso: narcisismo y malestar en la contemporaneidad
The trail of Narcissus: narcissism and uneasiness in contemporaneity
MATEUS DA SILVA BOA MORTE
Graduando na Universidade Estadual de Feira de Santana (Feira de Santana). Bahia, Brasil.
boamorte54.mateus@gmail.com
ROGÉRIO DE ANDRADE BARROS
Professor Auxiliar na Universidade Estadual de Feira de Santana (Feira de Santana). Bahia, Brasil, membro da EBP/ AMP
contaterogerio@gmail.com
RESUMO
O presente trabalho tem como principal objetivo compreender as manifestações de narcisismo nas subjetividades contemporâneas em suas articulações com o mal-estar na cultura. Parte-se da especificidade da psicanálise de orientação lacaniana, onde o pesquisador encontra-se profundamente envolvido no enigma a ser investigado em sua pesquisa. Este trabalho se caracteriza como qualitativo, de objetivo exploratório, e quanto ao seu delineamento, é uma pesquisa bibliográfica. Como resultados, consideramos as manifestações narcísicas e seus desdobramentos passam a se constituir enquanto defesa possível diante da ascensão do objeto a ao zênite social, traço marcante de uma contemporaneidade atravessada pela conjunção do discurso científico-capitalista.
PALABRAS CHAVE: Narcisismo | Mal-estar | Contemporaneidade
RESUMEN
El presente trabajo tiene como objetivo principal comprender las manifestaciones del narcisismo en las subjetividades contemporáneas en sus articulaciones con el malestar en la cultura. Partiendo de la especificidad del psicoanálisis lacaniano, donde el investigador está profundamente involucrado en el enigma a ser investigado en su investigación. Este trabajo se caracteriza como cualitativo, con un objetivo exploratorio, y en cuanto a su diseño, es una investigación bibliográfica. Como resultados, consideramos que las manifestaciones narcisistas y sus desdoblamientos se constituyen como una defensa posible ante el ascenso del objeto a al cenit social, rasgo llamativo de una contemporaneidad atravesada por la conjunción del discurso científico-capitalista.
PALABRAS CLAVE: Narcisismo | Malestar | Contemporaneidad
ABSTRACT
The present work has as its main objective to understand the manifestations of narcissism in contemporary subjectivities in their articulations with the unrest in the culture. Starting from the specificity of Lacanian psychoanalysis, where the researcher is deeply involved in the enigma to be investigated in his research. This work is characterized as qualitative, with an exploratory objective, and as to its design, it is a bibliographical research. As results, we consider that narcissistic manifestations and their unfoldings become a possible defense against the rise of the object a to the social zenith, a striking feature of a contemporaneity crossed by the conjunction of scientific and capitalist discourse.
KEY WORDS: Narcissism | Unease | Contemporaneity
Introdução
O presente artigo tem como principal objetivo se ocupar dos fenômenos narcisistas na contemporaneidade, tributários da derrocada do Pai simbólico na cultura. Aqui articulamos a inflação narcísica, em sua vertente mortificante, com a queda do Outro nas considerações contemporâneas, que inaugura uma nova ordem simbólica. As transformações que marcam a cultura contemporânea provocam também mudanças na constituição do sujeito e em sua forma de fazer laço com Outro, formando na contemporaneidade sujeitos presos a um estado narcísico de subjetivação, de onde destacamos o seu caráter imaginário, onde a alteridade se homogeniza.
A tradição psiquiátrica no final do século XIX utilizava narcisismo para designar uma perversão caracterizada pela tomada do próprio corpo como objeto sexual. Trata-se de uma alusão ao mito grego de Narciso, oriunda do livro III das Metamorfoses, de Ovídio. O poeta romano nos apresenta a história do belo Narciso, filho de Liríope e Cefiso, cujo destino é marcado pela profecia do oráculo, de que morreria caso contemplasse sua própria imagem. Portador de uma grande beleza, Narciso evocava paixões devastadoras na miríade de rapazes e moças que o viam, retribuindo-as com um desprezo que lhes causava um imenso sofrimento. Incomodadas com a frieza e soberba de Narciso, as ninfas elevam as suas vozes à Deusa Nêmesis, que acolhe suas preces, lançando em Narciso a maldição do amor impossível. Narciso, confrontado com o seu reflexo, apaixona-se perdidamente por si próprio, a quem nunca poderia alcançar. Louco, abandona o interesse pelas coisas do mundo, definha perante à sua própria imagem, sucumbe e morre nas vias de alcançá-la.
Em seu ineditismo característico, Freud (1914-1916 [2010]) torna o conceito de narcisismo um pilar importante da teoria psicanalítica ao atribuí-lo um lugar de estágio fundamental do desenvolvimento psicossexual dos indivíduos, não-privativa da perversão, mas presente também nas neuroses de transferência e na vida regular dos sujeitos. Do mesmo modo, Lacan realiza uma leitura que renova as considerações acerca do narcisismo, propondo atualizações importantes para a clínica. Para situar o narcisismo, apresentado na teoria psicanalítica como um conceito multifacetado, amplo, e com muitas lacunas, faz-se necessário um exame detalhado de suas menções nos escritos de Freud e Lacan, a fim de circunscrevê-lo. Nessa primeira parte, buscamos um resgate das formulações de Sigmund Freud e Jacques Lacan, a fim de compreender algo do que se manifesta no horizonte de nossa época. Aqui seguimos a trilha lacaniana, de não “depor suas armas diante dos impasses da civilização” (Lacan, 1967 [2003]: 349).
O conceito de Narcisismo de Freud à Lacan
Apesar do narcisismo ser mencionado em considerações anteriores, é em Introdução ao narcisismo que Freud (1914-1916 [2010]) sedimenta, já nas primeiras páginas, três distinções essenciais para a compreensão e aplicabilidade do conceito. Na primeira distinção, essencialmente diagnóstica, entre as neuroses e as psicoses, situa que nas primeiras, o amor próprio é diminuído, e nas últimas, o amor próprio é inflado. Aqui, Freud se refere principalmente às diferenças de grandeza na dinâmica libidinal nas neuroses de transferência e nas psicoses, resgatada do caso Schreber (Freud, 1911-1913 [2010]). Nas neuroses, há uma retração da libido ao Eu que conta com a mediação pela fantasia, não suspendendo por completo o investimento nos objetos, enquanto nas parafrenias não há mediação da fantasia, de modo que a libido é realmente retirada dos objetos, sendo dirigida completamente ao Eu.
A segunda distinção remonta “Totem e Tabu” (Freud, 1912-14 [2012]), onde o narcisismo é considerado em seus dois aspectos: o narcisismo primário, como um estágio intermediário, reconstituído através das fissuras erosivas percorridas retroativamente pelo narcisismo secundário, através do retorno da libido dos objetos para o Eu. Nessa conjuntura, tratar do narcisismo secundário é tratar essencialmente do retorno que traz os estigmas do patológico. Aqui o narcisismo é postulado como um estádio de desenvolvimento que pode ser remontado, apesar das reconstruções libidinais posteriores. Além de introduzir o narcisismo nas considerações sobre as civilizações, Freud lança as bases para articulá-lo à constituição do Eu, como objeto das pulsões unificadas, onde o Eu é investido como objeto.
A terceira distinção se refere à oposição entre libido do Eu e libido de objeto, que se comportam de modo inversamente proporcional. Uma vez que o preenchimento pleno das duas só é possível como extrapolação conceitual, o que existe de fato é um balanço de forças na redistribuição da libido entre o Eu e o objeto, onde o investimento objetal causa um empobrecimento do Eu e vice-versa. As primeiras satisfações autoeróticas têm de ver com os processos de autoconservação da vida, para mais tarde tornarem-se independentes destes. Nesse sentido, o narcisismo também se relaciona com o tipo de escolha de objeto: narcísica ou de apoio. No tipo de escolha narcísica a pessoa busca a si mesma como objeto amoroso. A partir disto, pode-se pensar a investidura libidinal em dois pólos: os que estão em sintonia ou distonia com o Eu. Esses últimos são aqueles que experimentam o recalque, uma vez que são percebidos como uma grave diminuição do Eu.
O sujeito erige um Ideal, com o qual mede o seu Eu atual, condição para o recalque. (Freud, 1914-1916 [2010]). O narcisismo aparece deslocado, visto que a este ideal do Eu dirige- se o amor a si mesmo, desfrutado pelo Eu real na infância. A satisfação desfrutada não renunciada se dirige ao Ideal do Eu, substituto do narcisismo perdido. O bebê é investido narcisicamente, como um pedaço que a castração não alcança, servindo como um depositário do narcisismo renunciado de seus pais, e a sua herança é a de realizar os seus sonhos através da superestimação da criança, isto é, colocando parte de si próprio fora do domínio da castração. A relação entre narcisismo e recalque fundamenta a noção do ideal nas considerações freudianas. O ideal do Eu erigido pelos sujeitos garante o recalque, uma vez que o destino do narcisismo primário é a formação de ideais que servirão como régua para medir o Eu. O Eu ideal, nesse sentido, é ter a si mesmo como ideal, no narcisismo primário, enquanto o Ideal do Eu é externo ao sujeito, ocupando o lugar de regulação do Eu real, pretendendo volvê-lo ao estágio anterior, característico do narcisismo secundário. No final da obra freudiana, a noção de ideal ganhará um importante espaço na constituição psíquica dos indivíduos.
É pela via da castração que se perturba o equilíbrio narcísico, cujo narcisismo primário é uma integridade imagética do corpo onde a castração incide. A libido sofre o destino da repressão patogênica, quando entra em conflito com as ideias morais e culturais, se submetendo às exigências que delas partem, restando o mal-estar. Em O mal-estar na civilização (Freud, 1930 [1980]), é ressaltada a tendência autoerótica do narcisista, que busca “suas satisfações principais em seus processos mentais internos” (: 55), produzindo dificuldades em sua integração na cultura. Em O instinto e seus destinos, de 1915, Freud (1914-1916 [2010b]) introduz o retorno da libido ao Eu como possível destino das pulsões, estabelecendo pares antitéticos[1] para ilustrar a passagem da agressividade, dirigida ao objeto externo ao Eu, para a passividade, com o oferecimento de si como objeto para usufruto do outro. Nesse processo autoerótico, há uma indiferença em relação ao mundo.
Esta ideia é retomada no texto Além do princípio do prazer, onde Freud instala a dualidade pulsional com a introdução do conceito de Pulsão de morte. Freud (1920 [2016]) explora uma função defensiva do narcisismo, em sua vertente mortífera, manifesta face ao desamparo fundamental da criança perante o trauma causado pelo excesso pulsional originário da pulsão de morte, contraposto pela pulsão de vida, que impele o indivíduo a investir em objetos. A compreensão do uso do narcisismo na contemporaneidade acha na virada freudiana um de seus esteios, aí mesmo onde pensamos uma deflação do desejo e da alteridade, e o recrudescimento da defesa narcísica como tributários da queda dos Ideais (Portillo, 2005) na contemporaneidade, aí onde prevalece um gozo imaginário, narcísico, egóico. Em O Eu e o isso, de 1923, no estabelecimento da segunda tópica, encontramos na noção de Supereu ecos de Introdução ao narcisismo, onde o Ideal do Eu está relacionado à “instância psíquica especial” (Freud, 1914-1916 [2010]: 28) que mede o Eu pela distância moral do seu ideal, ao mesmo tempo em que cobra a satisfação narcísica. Em Luto e melancolia, uma ideia parecida é retomada sob o ponto de vista das neuroses narcísicas, em que ocorre um esmaecimento do Eu Ideal. As noções de rechaço ao Outro e reinvestimento no Eu serão retomadas adiante para pensar a via lacaniana e o império narcísico contemporâneo.
Lacan, trilhando o seu retorno à Freud, nos apresenta diversas contribuições inovadoras para o conceito. É tratando sobre essa “nova ação psíquica” (Freud, 1914-1916 [2010]: 13), que Lacan (1998 [1949{1966}: 96-103]) faz a sua estreia na psicanálise, ao introduzir o conceito de Estádio de espelho, que equivale, nesse caso, a uma formalização do conceito de narcisismo através desta nova concepção. No estádio de espelho, o infans, carecendo do amparo paterno, já que seu corpo ainda não tem sustentação, ao olhar-se no espelho percebe uma completude da imagem presente, contrapondo a experiência do corpo repartido, concebendo-a com júbilo, assumindo-a como pertencente a si própria. A identificação com aquela imagem possibilita que a criança circunscreva o Eu (:97) que, nesse momento, pode ser compreendido como uma gestalt, uma forma que se diferencia. A confirmação encontrada no olhar dos pais sobre a veracidade desta conclusão culminará na formação do Eu ideal. O narcisismo secundário se dá no momento em que o bebê percebe o seu reflexo como uma unidade de imagem forjada no narcisismo primário, que será investida de pulsões, dando origem ao Ideal do Eu e que culminará nos ideais culturais (Lacan, 1949{1966} [1998]).
No Seminário 1, que versa sobre a metapsicologia freudiana, Lacan (1953-1954 [1986]) empreende um estudo aprofundado acerca do narcisismo, principalmente no trato das instâncias ideais. A partir do Estádio de espelho, é suposta a predominância do simbólico na constituição dessa imagem especular, que toca na própria constituição do imaginário. É a partir da nomeação realizada através de significantes, que implica a dimensão simbólica, direcionados aos pedaços da criança, tais como: “este é o seu pé; esta é a sua mão”, a criança caminha na via da separação entre seu corpo e o corpo do outro. A imagem especular se constitui a partir do momento em que a criança se percebe como uma unidade, um corpo formado com que ela pode identificar-se, constituindo ali o Eu. No entanto, aquela imagem é um engano, uma ilusão narcísica de uma imagem inteiriça e perfeita, o Eu ideal, que será ferido por ocasião da entrada no Complexo de Édipo, onde o narcisismo primário sucumbe dando lugar ao Ideal do Eu.
A fala direcionada à criança é o que possibilita a emergência do Ideal do Eu. Uma vez atravessado o Édipo, o sujeito se submete à lei paterna e às normas sociais, de modo que a ilusão infantil de perfeição e onipotência perece em favor do Ideal do Eu, gerando ali a identificação e o assujeitamento à instância civilizatória. Ali, o Eu-ideal é uma projeção, uma ilusão narcísica, situada no registro imaginário. O modo como essa imagem é constituída no estádio de espelho, a partir da nomeação do outro, orienta o olhar a partir de uma certa posição e o insere na trama dos significantes (Lacan, 1953-1954 [1986]). A emergência do Ideal do Eu possibilita a introjeção do Nome-do-Pai, que representa o advento do Outro, mas cobra um preço: a castração, o abandono da satisfação narcísica, a interdição do desejo. Do gozo interditado pelo recalque, que opera a castração, sobra um resto que aponta a falta, o que permite a instauração do regulamento desejante, fazendo girar a cadeia significante, viabilizando assim a identificação simbólica.
Consideramos a noção de estádio de espelho um dos antecedentes (junto ao objeto a) para a discussão elencada no último ensino de Lacan, lançando as bases para pensarmos o império narcísico contemporâneo. É através da lógica identificatória resultante da dissolução do Complexo de Édipo que o sujeito é inserido na linguagem, e desse modo, na cultura. A partir daí, através do assujeitamento pulsional às normativas culturais, como efeito da articulação significante, o sujeito dirige a libido do Eu para os objetos que a civilização disponibiliza em articulação aos ideais. O que resta dessa operação é o que Lacan conceitua no Seminário 10 de objeto pequeno a2, cuja função é a de delimitar o lugar do desejo. O objeto a se relaciona intimamente à noção de angústia, que nessa conjuntura representa o enigmático objeto que visa o Outro, que identificado ao sujeito, tem por efeito a seu apagamento, gerando afetos no corpo (Lacan, 1962-1963 [2005]).
Trobas (2005) indica que não há, nesse sentido, uma nova angústia, sendo ela a angústia de sempre. O que se modifica são as formas de defesa ao real, as quais se erige levando em consideração o tom da época. Partindo dessa prerrogativa, e considerando especialmente a evaporação do Pai na cultura (Lacan, 1968 [1969]), pensamos que o império narcísico contemporâneo corresponde a uma defesa imaginária, tendo efeitos de enfatuação egóica, como a trilhas que orientam a clínica em tempos de deflação do simbólico, do sujeito, e do desejo.
Dos tempos do Édipo ao império narcísico contemporâneo
Jacques-Alain Miller (2010) indica que o reino do pai corresponde à época freudiana da psicanálise. Para entender tal proposição, faz-se necessário retornar à sociedade onde Sigmund Freud construiu a psicanálise, entendendo a fundamentação do mal-estar em um modelo societário pautado na existência da lei que regula as pulsões. No mito científico da horda primitiva, Freud (1912-1914 [2012]) elenca o parricídio como o ato fundador da cultura. O mito retrata o reinado terrífico do pai da horda, que monopolizava o acesso às mulheres da tribo, estabelecendo-secomoodetentordeumgozosemlimites. Comoassassinatodestepai, cada filho comunga da carne do tirano em um banquete totêmico, obtendo, simbolicamente, parcelas do seu gozo. Nesse sentido, o parricídio é a dimensão que eterniza o pai, por onde a sua interdição vigora, agindo na via de reconciliar simbolicamente os filhos com a imago paterna, mediante certos níveis de restrição da satisfação pulsional, visto que, caso tentem ocupar esse lugar de exceção, compartilharão do destino do Pai. Assim como em Totem e Tabu, no Complexo de Édipo percebe-se a necessidade de que o pai seja “assassinado”, pois o Pai morto promulga a Lei: o pai como ideal é o que possibilita a introdução do sujeito na civilização (Lacan, 1957-1958 [1999]).
O ideal social, para Freud, se erige na figura do Pai, na medida em que este ocupa a função de organizador da sociedade desde a sua estrutura celular, a saber, a família. A figura do Pai está, entretanto, dissociada do Pai real, mas é definida para nós simbolicamente a partir do momento em que as instituições lhe concedem o seu nome (Lacan, 1957-1958 [1999]). Os ideais sociais detêm a função de regulação das vivências humanas, auxiliando na manutenção e proteção da cultura, seja contra intrusões externas, seja contra o próprio ser humano, que é, ao menos virtualmente, um inimigo da cultura, visto que ela lhe impõe uma série de restrições à satisfação plena (Freud, 1930 [1980]). Esses ideais consistem em realizações de natureza social que produzem no sujeito uma satisfação em integrar um grupo. A natureza dessa satisfação é narcísica, atuando no empoderamento do sujeito através das realizações de sua civilização, amainando algo do sofrimento causado pelas restrições necessárias para a consolidação da cultura (Freud, 1927 [1980]).
Com o ingresso na instância civilizatória, comparece como resto, impossível de eliminar, o mal-estar, erigido a partir do recalque e da castração (Freud, 1930 [1980]). Toda cultura produz mal estar através do impedimento do gozo irrestrito pelas normas e regulamentos culturais. Esse mal-estar flui a partir de três fontes, a saber: a impotência do homem perante a crueldade da natureza; o corpo-próprio, de onde emanam as pulsões e condenado à finitude; o relacionamento com os seus pares, com o outro, na instância civilizatória, que trazem as restrições. O mal-estar insere o sujeito no campo da realidade, na medida em que se renuncia à satisfação pulsional em troca de evitar o desprazer. Nessa conjuntura, a neurose é produto da entrada na linguagem, constituindo-se como um aparato defensivo que busca preservar a lei e salvaguardar o desejo (Lacan, 1957-1958 [1999]). As formas clínicas de manifestação do mal-estar estão divididas em Freud (1926 [2014]), em inibição, sintoma e angústia.
A angústia é a elevação exacerbada da libido sentida no corpo, funcionando como uma força motriz que impulsiona o sintoma e a inibição como defesas. A inibição é um rebaixamento da função do Eu, um prejuízo que causa um enfraquecimento, enquanto o sintoma é uma formação de compromisso, que surge em resposta à angústia da castração como modo deturpado e substitutivo da parcela de satisfação interditada pela Lei. O eixo da clínica freudiana é a dimensão simbólica do sintoma, que considera o desvelamento pela via da interpretação do significado recalcado (Portillo, 2005). O sintoma vem substituir o vazio outrora ocupado pela satisfação primordial obtida com o objeto cujo acesso agora encontra- se restrito (Freud, 1926 [2014]).
Lacan (1964 [1998]) considera o sintoma como um modo encontrado pelos sujeitos de se arranjarem com o seu gozo, numa articulação entre as pulsões e os objetos disponibilizados pela cultura. A inibição é tida em relação à dinâmica como um menor grau de movimento, que ocasiona uma paralisia nas funções do Eu, relacionada a uma captura narcísica da libido que impede o seu investimento nos objetos. A angústia, por sua vez, corresponde ao maior grau de movimento e dificuldade, articulando-se a presença do desejo do outro e sua impossibilidade de apreensão. Nessa perspectiva, a angústia se refere ao apagamento da distinção entre sujeito e objeto, fazendo referência ao momento primordial em que as defesas simbólicas se mostram ineficientes e o objeto se presentifica em seu estatuto real. Assim, a angústia é entendida como a falta da falta, onde aí onde deveria advir o vazio que instaura a representação significante, surge o objeto que o obtura (Lacan, 1962-1963 [2005]).
Já em 1938, Lacan (1938 [2008]) percebe que diversas mudanças na dialética social causaram um enfraquecimento da imago paterna como organizador da cultura e cerne da estrutura familiar. O Pai, sustentáculo dos ideais, é deposto do lugar de mestre discursivo, servindo apenas como mais um semblante entre tantos outros passíveis de fazer laço social (Lacan, 1975-1976 [2017]). Esse declínio do Pai pode ser considerado uma crise psicológica, relacionada diretamente com as chamadas neuroses atuais descritas por Freud (1917 {1916-1917}[1991]). Tais transformações têm como catalisadores, entre outros, a hegemonia do discurso neoliberal e o avanço científico intensificado pelas novidades tecnológicas, engendrando novas maneiras de tecer um saber específico para cada sujeito (Marcon, 2017). A ciência moderna visa dar ordem ao que é do registro do real, em um esforço de dominar e submeter a natureza, mediante um saber, em sujeito suposto universal (Rebollo, 2010). Uma vez que o mal-estar deriva da forma como a cultura edifica normas e regulamentos para dar destino às exigências pulsionais, uma modificação profunda do paradigma cultural causa transformações nos modos de subjetivação dos sujeitos, atualizando o mal-estar (Barros, 2021).
No decorrer de seu ensino, Lacan (1969-1970 [1992]) utilizou-se dos discursos, modos de aparelhar o gozo com a linguagem, como ferramenta para a compreensão do mal-estar contemporâneo, partindo dos três impossíveis freudianos: educar, governar e curar. No Seminário 17, O avesso da psicanálise, Lacan acrescenta um quarto elemento a essa lista: fazer desejar. A partir daí, inicia a sua teoria dos discursos, relacionando cada um dos impossíveis a um discurso distinto. Educar está relacionado ao discurso do universitário; Governar é o correspondente ao discurso do mestre; Curar ao discurso do analista e Fazer desejar ao discurso da histérica (Lacan, 1969-1970 [1992]). Lacan apresenta os quatro discursos como semblantes, responsáveis por organizar algo do gozo, possibilitando a formação dos laços sociais (Amorim & Barros, 2022). No entanto, um quinto discurso dita o tom da contemporaneidade: o discurso do capitalista. Atuando como mestre discursivo de nossa época, incita o enlaçamento dos sujeitos com o objeto, foracluindo o Outro dessa equação, a fim de proporcionar a satisfação imediata, ainda que efêmera (Lacan, 1972-1973 [1985]).
Segundo Miller (2005), as alterações tangentes às estruturas dos discursos de uma época impactam diretamente no modo como o inconsciente se organiza. Uma vez que o pai se encontra em franco declínio simbólico, metáfora pro enigmático desejo materno, pluralizam- se suas formas imaginárias e reais. Pulverizados, os ideais e as tradições, responsáveis outrora por fornecerem semblantes sociais para amainar o mal estar, caem por terra perante os objetos produzidos pelo discurso do capitalista, que visam preencher as lacunas do sujeito a fim de tamponar o sofrimento (Lacan, 1975-1976 [2017]). Como consequência da multiplicidade de objetos massificados e da infinidade de escolhas possíveis, o sujeito se inclui em um campo aditivo, do mais de gozo.
Com o objeto a, na sua vertente de gozo, ocupando um lugar proeminente na contemporaneidade, resta aos sujeitos da contemporaneidad eo desencontro eo desamparo. Em uma sociedade sem ideais, prevalecem os impasses frente ao gozo, o desbussolamento do sujeito frente à multiplicidade de referências fruto de uma crise no real (Miller, 2005). Segundo Portillo (2005: 6), o paradigma contemporâneo se caracteriza como o “império do Um do real do gozo sobre o Outro simbólico das regulações próprias do laço social”. Nessa nova configuração, marcada pela ascensão do objeto a ao zênite social, a solução para a angústia passa às margens do Outro. Os objetos substituem o outro nas experiências de satisfação, introduzindo um capitalismo pulsional, sem o Outro, regulador de pulsões, incidindo em um modo de satisfação solitária (Blanco, 2009). Na medida em que o discurso do capitalista ganha primazia na contemporaneidade, podemos perceber uma mudança na polaridade do mal-estar na cultura. Se antes, o mal-estar comparecia na falta e na frustração, agora se localiza no excesso e no empuxo ao gozo solitário, sem um endereçamento ao Outro (Laurent, 2012). O discurso do capitalista foraclui a lacuna e a alteridade, transformando o outro em um objeto, um bem de consumo.
Na ode à Narciso, é escassa a possibilidade de fazer laço social com o Outro, restando o caminho do júbilo com o objeto, em suma, do gozo autístico. Há uma cisão entre o Ideal do Eu e os modos de gozo, relacionada à disjunção entre a imagem de si e o organismo (Barros, 2018). Uma vez que o falo não se encontra mais marcado no campo do Outro, resta ao sujeito a via imaginária do autoerotismo, que diz respeito a uma “figuração narcísica” (: 97), para agir como defesa a fim de conter a fissura da imagem especular (Lacan, 1962-1963 [2005]). Nesse sentido, a captura narcísica age impedindo o investimento da libido em objetos exteriores ao corpo (Barros, 2018). Diante do desamparo, o isolamento narcísico pode ser pensado como anteparo do sujeito para resguardar-se das manifestações do mal-estar na contemporaneidade.
O antropólogo David Le Breton (2003), em Adeus ao Corpo, captura algo de nosso zeitgeist aointroduzira noçãodecorpocomoacessório, nãopercebidocomoumaunidadedeimagem, mas particionado, separado em partes menores passíveis de melhoramento, substituição e modificação. Através dos procedimentos cirúrgicos, os pedaços desse corpo-rascunho podem ser remodelados, trocados e aperfeiçoados. Extrai-se um coração defeituoso, substituindo-o por outro, e o mesmo vale para os mais diversos órgãos do corpo. Pode- se construir um corpo totalmente novo a partir de séries de exercícios e suplementações seguidas litúrgicamente que servem ao cultivo de grupos musculares especiais, assim como é possível modificá-lo através de tatuagens, próteses, piercings, utilizando o corpo como uma galeria artística a ser exibida.
Os argumentos de Le Breton coincidem com a hipótese levantada por Marie-Hélène Brousse (2009) de que, na contemporaneidade, o avanço científico agudiza uma ruptura entre o Ideal do Eu e o objeto a, estes apresentados em seu modo mais real, destacado da imagem una do corpo integral, possuindo ali um valor de real. Nesse cenário em que os limites entre sujeito e objeto estão borrados, evidenciando uma falha na fantasia, o narcisismo comparece como uma resposta possível ao acúmulo da angústia, sentida como falta da falta (Miller, 1997). Os ideais e tradições que serviam como uma certa barreira à angústia se esfacela, desnudando um puro real, que se desfaz de sua imagem corporal una ante a angústia, que caminha pari passu como o progresso científico, nutrindo-se do saber desvelado sobre o organismo (Brousse, 2009). Nas suas próprias palavras:
Existe uma espécie de extensão do império das imagens que não são tão reguladas pelo mundo do discurso como eram anteriormente. Elas são reguladas atualmente, não tanto pelo império da linguagem, mas sim pelo império da escritura científica, nos processos para modificar o eu ideal, como por exemplo: operar o nariz, aumentar ou diminuir os seios, modificar as rugas, etc. (Brousse, 2009: 13).
Os novos sintomas manifestos na clínica psicanalítica estão localizados no âmbito do gozo, nãofazendoapeloà decifração, umavez queo Nome-do-Pai nãose presentificacomo Mestre discursivo (Miller, 2010). Numa época em que o Outro não existe, os sintomas deixam de aludir a uma significação recalcada, sustentando-se nas nomeações inseridas pelo discurso científico, pelas tendências da moda, numa vertente do consumo (Barros & Leite, 2019). Há ali uma mudança na relação do ser de fala com o seu gozo. Nessa conjuntura, o objeto se faz presente de modo excessivo, gerando no sujeito uma demanda convulsiva de satisfação que se encontra dissociada da dialética do desejo, sendo suprida na ilusão de que os objetos disponíveis no mercado podem ocupar esse espaço, o que gera um encerramento do sujeito em si mesmo (Recalcati, 2004).
Em RSI, Lacan (1974-1975/inédito) promove uma releitura do estádio do espelho, dando ênfase ao seu caráter um imaginário, indicando que a identificação a imagem promove uma contenção pulsional. Nesse sentido, o investimento na imagem virtual promove um circuito para a pulsão, dando a ela um trilho. A inibição comparece aqui como um Nome-do-Pai decorrente da amarração borromeana realizada pela duplicação do imaginário para dar consistência à realidade psíquica.
Sabemos que há uma íntima relação entre a inibição e o narcisismo: a detenção de uma função do eu decorre dos impasses no investimento em objetos externos, sendo na imagem narcísica mesma o lócus onde se encerra o investimento. Essa consideração nos leva a propor uma articulação a trilha de narciso na contemporaneidade e a deflação do desejo como alteridade que produz o movimento. Os objetos a ofertados pelo discurso do capitalista e seu modo de produção produzem um curto-circuito, convocando uma resplandecência egóica aí onde o sujeito e sua falta encontram-se apagados, tamponados pelo massivo gozo sem lei da oferta de mercado.
Conclusão
Em uma época em que o Outro, tesouro dos significantes, perde a sua força, as barreiras erigidas no simbólico ante ao aparecimento da angústia se esfacelam. Nesse sentido, a dimensão “novos sintomas” apresenta uma possibilidade de reinvenção do fazer clínico que vá para além do Édipo, em direção ao Real. A clínica psicanalítica, em suas dimensões teóricas e práticas, nos possibilita acompanhar os desdobramentos do uso do narcisismo enquanto defesa imaginária diante da queda dos semblantes e das tradições, onde só resta os impasses frente ao gozo (Miller, 2005: 12).
Nesse sentido, entender o horizonte da nossa época é compreender algo do próprio fazer analítico (Lacan, 1998: 321). O esforço de nossa escrita consiste em abarcar as mudanças discursivas presentes na contemporaneidade, pautadas principalmente na hegemonia do discurso do Capitalista como mestre discursivo de nossa época. Desse modo, buscamos compreender a trilha atravessada pelo narcisismo se constitui com um dos fundamentos na compreensão dos fenômenos relacionados com a ascensão do objeto a ao zênite social (Portillo, 2005), observados na época do Outro que não existe.
Seguimos na linha proposta por Marie-Hélène Brousse (2009), que pensa na ideia de um real desnudo, caracterizado pela extensão do império da imagem, promulgada pelo discurso da ciência. Nesse sentido, ali onde há uma exacerbação da presença do objeto, se reduz as possibilidades de significantização, diante das nomeações prontas advindas do discurso científico. Vale salientar que o proposto aqui não esgota a necessidade de considerações posteriores com relação ao tema, sendo extremamente necessária que a questão seja investigada a posteriori.
[1] Sadismo versus masoquismo e voyeurismo versus exibicionismo
[2] A construção do conceito de objeto a na teoria lacaniana pode ser considerada um dos pontos de ruptura conceitual com a práxis psicanalítica vigente na época em que Lacan ministrava os seus seminários, situada especialmente no referido seminário. O objeto a é um resto da operação simbólica que funciona como causa de desejo, fazendo circular a cadeia significante. Tal conceito é o primeiro passo para encaminhar a clínica analítica para além do Édipo. A noção de declínio do Nome-do-Pai, e consequentemente, dos ideais do paradigma antigo está articulada à introdução do objeto na teoria psicanalítica, uma vez que este se configura como um efeito de linguagem, não relacionado ao Pai freudiano. Para aprofundar-se na questão, indicamos a leitura do seminário, livro 10, A angústia.
REFERENCIAS