Considerações psicanalíticas sobre a ética na regulamentação dos novos transgênicos e no uso da técnica CRISPR para manipulação de embriõnes humanos
Consideraciones éticas sobre la reglamentación de los nuevos transgénicos et el uso de la técnica CRISPR para la manipulación de embriones humanos.
Considérations éthiques sur la réglementation des nouveaux transgéniques et l’utilisation de la technique CRISPR pour la manipulation des embryons humains.
Psychoanalytic considerations on ethics in the regulation of new transgenics and in the use of the CRISPR technique for handling human embryos
ANTÔNIO TEIXEIRA
EBP, AMP, Univerdidade Federal de Minas Gerais
amrteixeira@uol.com.br
RESUMEN
Lo que impide el deseo de ser impersonal u anónimo es el hecho que su objeto no se deje encajar en las formas estandarizadas del discurso de la oferta et de la demanda. Incumbirá quizás al psicoanalista del futuro, si es que el futuro aun permitirá la existencia al psicoanalista, cuidar para que el niño encuentre su lugar en el deseo de los padres, celando por la manutención, que pese todos los progresos técnicos de la manipulación del código genético, de este lugar vacío, imposible de codificar
PALABRAS CLAVE: código genético, ética, demanda, deseo
RESUMO
O que impede o desejo de ser impessoal ou anônimo é o fato seu objeto não se encaixar nas formas padronizadas do discurso da oferta e da demanda. Caberá, talvez, ao psicanalista do futuro, se é que esse futuro ainda há de admitir a existência do psicanalista, cuidar para que a criança encontre seu lugar no desejo dos pais, zelando pela manutenção, a despeito de todos os progressos técnicos na manipulação do código genético, desse lugar vazio, impossível de codificar
PALABRAS CHAVE: código genético, ética, demanda, desejo
RESUME
Ce qui empêche le désir d’être impersonnel ou anonyme est le fait que son objet ne se laisse pas enfermer dans les formes standardisées du discours de l’offre et de la demande. Ce sera peut-être au psychanalyste du futur, si le futur permet encore au psychanalyste d’exister, de s’assurer que l’enfant trouve sa place dans le désir des parents, en veillant à l’entretien, malgré tous les progrès techniques dans la manipulation du code génétique, de cette place vide, impossible à codifier
MOTS CLES: code génétique, éthique, demande, désir
ABSTRACT
What prevents the desire to be impersonal or anonymous is the fact that its object does not fit into the standard forms of supply and demand discourse. It will perhaps be up to the psychoanalyst of the future, if this future still admits the existence of the psychoanalyst, to ensure that the child finds its place in the parents’ desire, ensuring the maintenance, despite all the technical progress in the manipulation of the genetic code, of its empty place, impossible to code
KEY WORDS: genetic code, ethics, demand, desire
Querer o bem com demasiada força e incerto jeito,
pode já estar sendo se querendo o mal por principiar…
(Guimarães Rosa: Grande Sertão: Veredas)
Ao ser chamado a discutir, nesse Simpósio[1], o problema da regulamentação ética no uso das novas técnicas de edição de genoma na manipulação de embriões humanos, achei por bem retomar alguns elementos extraídos da leitura de um artigo que me foi recomendado por Santuza Teixeira, publicado no dia 14 de março deste ano no volume 567 da revista Nature, intitulado Adopt a moratorium on heritable genome editing. Trata-se, como indica o título, da proposição de uma moratória no uso clínico da edição do genoma hereditário, relativa ao tempo necessário para a criação de uma estrutura internacional que possa regular e coibir os possíveis riscos gerados pelo uso indevido dessa nova técnica (Landers et cols, 14 de março de 2019).
Não é de hoje que reconhecemos a importância de estruturas destinadas a estabelecer limites no uso das técnicas disponibilizadas pela ciência. Todo aquele que aqui trabalha com pesquisa em medicina ou em biologia sabe da necessidade de submeter seu projeto aos comitês de ética de sua área. Mas quando aceitei abordar, na perspectiva dessa discussão, o problema da edição genômica mediante o uso da assim chamada técnica CRISPR, ocorreu-me que deveria fazer algo distinto daquilo que normalmente se espera de um membro de comitê de ética. Não se trata, bem entendido, de contestar a importância dos comitês de ética, cujo esforço de proteger a dignidade dos indivíduos envolvidos em pesquisa e promover o reconhecimento social da atividade do pesquisador é inegavelmente louvável. O que eu gostaria, todavia, de colocar em discussão nessa mesa, é a proposta de se estabelecer, para o pesquisador, um dispositivo que regule externamente sua atividade, não porque isso deva ser revogado, mas no sentido em que isso pode levá-lo a eximir-se de buscar em sua própria reflexão os meios para estabelecer a regulação do que ele faz.
Queremos com isso afirmar que para nós a atividade de regulação ética não deve ser tratada como assunto restrito a um colegiado particular; ela antes deve ser axiomaticamente tomada enquanto um atributo universal, comum a todos os seres pensantes. Mesmo reconhecendo que o cálculo ético seja situacional em sua aplicação concreta, mesmo entendendo a necessidade de se referir a uma deontologia como campo de regras particulares a serem respeitadas por profissionais de áreas independentes, parece-nos equivocada a proposta de se fazer do julgamento ético o atributo normativo de um grupo determinado. Julgamos, por esse motivo, questionável a ideia de uma especialidade ética que possa ser assumida por um comitê.
Nosso ponto de partida é que todo ser pensante, seja ele um cientista especializado em pesquisa de edição genética, seja ele um médico, um músico, um advogado ou um pároco, é tão apto a julgar eticamente o que ele faz quanto qualquer membro de um comitê externo, devendo cada um deles ser considerado responsável por sua decisão. Mas é preciso enfatizar uma vez mais que esse princípio de responsabilidade ética, justamente por ser universal, não pode ser tratado como objeto de um domínio discursivo particular. Por estar universalmente presente na escolha que preside todas as formas discursivas, a dimensão ética é sempre algo que nos divide, na medida em que nos separa de nossas particularidades, de nossas identificações sociais. A angústia ética deve ser tomada como uma espécie de perturbação salutar. Ela se expressa ao modo de um conflito interno que nos impede de nos identificarmos integralmente com as funções socialmente prescritas que regem nossa identidade particular de pesquisador, levando-nos a considerar, de maneira crítica, os fatores que definem nosso modo de estar no mundo e nossa relação com a expectativa dos demais.
Assim, quando abrimos as primeiras páginas do artigo da revista Nature, acima citado, notamos, de imediato, essa divisão ética na adoção, por parte dos cientistas, de uma terminologia e uma gramática que se demarcam claramente do discurso da ciência do qual são os legítimos representantes. Ali se empregam, em relação à pertinência do emprego da técnica de edição genômica, expressões tais como “razões convincentes”, “sabedoria em agir assim” (wisdom of doing so); além de considerações acerca dos efeitos de estigmatização, discriminação e desigualdade social relacionadas a seu uso que os conduzem a mobilizar uma narrativa qualitativamente distinta do discurso direto, objetivo e factual que predomina na composição de um artigo científico. Os cientistas ali demonstram que o fato de não existir uma formulação científica da ética não os isenta, enquanto cientistas, de se haver com essa dimensão. O que torna, portanto, esse escrito louvável não é a determinação do mérito esperado como afirmação de uma competência em determinada área, mas o fato de seus autores não recuarem em se haver com algo que os divide, que os obriga a sair de sua área, que os conduz a ir além do campo em que se define sua função social.
Pode haver, no entanto – e agora entramos no ponto mais delicado dessa exposição -, situações extremas em que essa divisão se radicaliza, a ponto de obrigar o cientista a contestar diretamente o que define sua função. Nesses momentos em que o conflito ético conduz o pesquisador a questionar a própria razão de ser do seu ofício, ele deixa de ser um pesquisador, para assumir as feições perturbadoras desse personagem que o filósofo Jean-Paul Sartre nomeia de intelectual (Sartre, 1972, passim). Importa salientar que o intelectual, assim concebido, não é o pensador acadêmico às voltas com questões metafísicas, desprovidas de interesse concreto. O intelectual é, para nós, o pesquisador que deixa de fazer o que se espera de um pesquisador, em razão da tomada de uma posição crítica em relação à expectativa social que até então definia sua identidade de pesquisador. No dizer daqueles que o acusam, ele é o pesquisador que abusa de sua notoriedade acadêmica, ao colocar em causa sua função para se meter com questões que não dizem respeito a sua especialidade.
Sabemos, além do mais, se me permitem a digressão, que o termo “intelectual” foi um originalmente um adjetivo depreciativo criado para designar um grupo de pessoas que se uniram a Emile Zola para defender o capitão Dreyfus, injustamente condenado pelo Estado Maior das Forças Armadas. Eles eram pejorativamente chamados de intelectuais por seus detratores por se meter com coisas que não diziam respeito aos interesses particulares do cidadão francês, ao abraçar a justiça como uma causa universal do intelecto, deixando de lado as questões práticas de seus assuntos privados. Isso gerou uma imagem ao mesmo tempo insana e heroica do intelectual como figura de resistência da universalidade ética, alvo tanto de fascínio quanto de difamação. Na ocasião, aliás, em que Sartre pronunciara sua conferência sobre o intelectual, em 1966, sua insolência era ainda tolerada como uma espécie de mal necessário. Era o período de contestação francesa em que a sociedade aceitava conservar esse ser perturbador a pretexto de enriquecer a cultura com sua contradição. Nosso momento, contudo, de pragmatismo anglo-saxônico, parece querer revogar definitivamente esses questionadores inconsequentes em nome do progresso da ciência para recolocar, em seu lugar, pesquisadores objetivos e rigorosamente especializados, deixando o problema da responsabilidade ao encargo dos comitês de ética.
Mas será de fato possível subsidiar um pesquisador como fazemos em nossa universidade, sem correr o risco de vê-lo se metamorfosear na figura insolente do intelectual? Digamos provisoriamente que sim: basta que ele seja estritamente remunerado em função da atividade de produção para a qual foi contratado. Não obstante, pode acontecer que, num dado momento, esse pesquisador, digamos, um biólogo que trabalha com a produção de uma vacina, descubra que o resultado de sua pesquisa pode ser usado na construção de uma arma biológica. Ou senão, para retomarmos o exemplo de Sartre, que um grupo de físicos de um laboratório especializado na fissão do átomo, assustados com a potência destrutiva de sua investigação, resolvam produzir um manifesto contra o uso da energia nuclear. Pode acontecer também que um psicoterapeuta, remunerado para conduzir seu paciente a um comportamento socialmente adaptado, perceba que seu sofrimento mental é causado justamente por essa exigência social de adaptação. O que pensar, por exemplo, quando um pesquisador bonificado por sua alta produção de artigos, se dá conta da necessidade de longos períodos de improdutividade para realizar uma pesquisa efetivamente transformadora? Ou senão quando ele nota que o excesso de valor dado a revistas tradicionalmente bem qualificadas frequentemente condena ao ostracismo as tentativas de inovação, que a quantidade de citações mensura muitas vezes mais as posições de poder e audiência de um autor do que a qualidade de um artigo citado, e que tudo isso não raro produz uma servidão política e mercadológica do pensamento? O que disso vai resultar, é impossível prever. Sabemos, contudo, que nesses momentos o pesquisador corre o risco de deixar de ser o que é e se transformar, no mais das vezes a despeito dele mesmo, num intelectual.
Vemo-lo, então, sair do limite que define a particularidade de sua competência para meter-se com o que não é de sua conta: investigar a fissão do átomo é de sua competência, julgar quanto à legitimidade de seu uso é assunto restrito à esfera do direito e da política. Importante notar que é nesse campo do saber comprometido com a prática, e não, como se pensa, no domínio da filosofia acadêmica, que geralmente emerge o intelectual. Ele surge a partir de uma transformação do pesquisador, quando este percebe que sua pesquisa perdeu sua vocação universal ao se colocar a serviço de um particularismo ideológico, como foi o caso dos trabalhos psiquiátricos destinados a estabelecer medidas antropométricas que verificassem a inferioridade dos africanos nos tempos da colonização.
Mas são águas passadas, dirão vocês. Nosso momento é outro, a ciência adquiriu autonomia e os comitês de ética estão sempre a postos para prevenir abusos maiores. Ledo engano! Sabemos, por exemplo, se me permitem citar dados relativos a meu campo de atuação, que 56% dos psiquiatras que elaboraram os critérios diagnósticos do DSM IV mantinham relações financeiras com as indústrias de psicofármaco (Cosgrove et cols, 2006). Estamos também cientes de que os médicos universitários se tornaram, nos Estados Unidos, a própria chave desse sistema altamente lucrativo. Tecnicamente chamados de Key Opinions Leaders (KOL), esses profissionais não somente atuam enquanto docentes nas universidades como também publicam artigos em periódicos científicos moldados segundo as estratégias de marketing dos laboratórios. Suas funções universitárias, além de lhes garantir a possibilidade de publicar em revistas científicas, lhes conferem o poder de estabelecer pareceres de aceitação. Diante da dura lei do publish or perish da qual hoje depende a obtenção de verbas para realização de pesquisas, percebemos a gravidade de se deixar a avaliação docente nas mãos dos serviçais do marketing farmacológico, valendo lembrar que a criação de novas classes diagnósticas vem sendo progressivamente transferida dos médicos psiquiatras para os profissionais de merchandising. Poderíamos ainda citar inúmeros outros exemplos de abusos mercadológicos cientificamente maquiados, como é o caso dos diagnósticos criados por encomenda para gerar demandas de medicação (vide a distimia, o transtorno de hiperatividade e, mais recentemente, a síndrome de burnout), porém a lista seria imensa. Recomendamos, a quem interessar possa, a leitura do livro sobre o autismo, de Agnés Aflalo (Aflalo, 2014), assim como do artigo sobre “os vendedores de doenças”, publicado em Le Monde diplomatique (Cassels & Ray, 2006), e “Drug Companies & Doctors: a story of corruption (Angell, 2009).
Digamos, então, para voltarmos à nossa discussão, que o pesquisador na iminência de se tornar um intelectual é aquele que vê se desestabilizar sua identidade de pesquisador em razão, como diz Sartre, de uma crucial contradição. Do ponto de vista de sua consciência ética, ele se quer autônomo e universalista, no sentido em que acredita constituir e transmitir um saber não submetido a interesses privados. Mas ele ao mesmo tempo percebe que os resultados de sua pesquisa podem ser colocados a serviço de conveniências particulares. Tal como a figura da consciência infeliz descrita por Hegel, no capítulo IV de sua Fenomenologia do Espírito (Hegel, 2011, p. 136-157), ele se encontra às voltas com essa contestação recíproca do universal do saber com a particularidade de uma classe que se apropria do produto de sua pesquisa para utilizá-la em benefício próprio. Interessante notar que o poder político, na medida em que se coloca a serviço de uma particularidade, sempre vê no pesquisador uma figura eminentemente suspeita, como se nota atualmente nos ataques infringidos à Universidade pelo obscurantismo olavo-bolsonarista. Pois ainda que não o queira, o pesquisador é essencialmente um contestador, no sentido em que a contestação é uma atitude necessária à investigação científica. Mesmo quando adota posições políticas conservadoras, a própria consideração de seu objeto o obriga a contestar seu ponto de vista, visto que dessa contestação depende o próprio movimento de uma verdadeira pesquisa. Por isso dizemos que a grandeza de Freud, ao considerar a etiologia sexual das neuroses, foi de ter tido a honestidade de se contestar, de trabalhar contra si mesmo para se haver com aquilo que sua investigação lhe revelava. Sem ceder aos preconceitos particulares advindos de sua formação burguesa, ele vai dar à sexualidade uma extensão para qual ele próprio jamais nutrira nenhum tipo de estima.
Mas qual seria então a função do pesquisador transformado em intelectual? Difícil dizer, ninguém jamais incumbiu o intelectual de nenhuma função. É difícil, aliás, imaginar o que poderia ser uma greve dos intelectuais. Sua condição resulta da impossibilidade vivida por um pesquisador em se deixar determinar pela função que o define. Tudo do que ele dispõe, para se orientar, é da própria contradição que experimenta e que o obriga a questionar o contexto em que atua.
Examinemos, então, a partir da leitura do artigo referido no início, a contradição que motiva a discussão sobre a pertinência ética de uma moratória no uso da técnica de edição genômica. Embora esteja em questão, no pleito por essa moratória, a consideração dos riscos gerados por um conhecimento ainda incompleto acerca dos efeitos da aplicação dessa nova técnica na prevenção de doenças genéticas, não é sobre esse ponto que iremos nos deter. Interessa-nos sobretudo discutir o ponto crucial de contradição ligado não à insuficiência do conhecimento técnico, mas à dificuldade de se distinguir nitidamente, no que tange a sua aplicação, a fronteira que separa, por um lado, o tratamento como correção de um defeito genético a ser oferecido universalmente a todos que dele precisam, do que seria, por outro lado, uma demanda particular de um enhancement, de um aprimoramento que a disponibilidade técnica de correção pode suscitar.
O fato, para irmos diretamente ao ponto, é que a oferta enseja a demanda, e não existe uma linha que separa claramente a oferta da cura da criação de uma demanda pelo aprimoramento. Os autores do citado artigo não desconhecem esse problema, e falam abertamente que nenhuma possibilidade deve ser excluída. No seu entender, algumas sociedades irão aceitar a demanda por correção genética para casais sem outra alternativa, e excluir todas as formas de aprimoramento genético, enquanto outras irão endossar seu uso limitado, e outras ainda irão autorizar o uso ilimitado do aprimoramento. Preocupa-me, de todo modo, pensar que a despeito de todo esforço por uma moratória, a terceira possibilidade irá cedo ou tarde triunfar sobre as duas primeiras. A história recente da medicina nos mostra que o tratamento que evita a alguém ficar abaixo dos padrões considerados salutares, termina por elevar o nível desses parâmetros, gerando patamares cada vez mais exigentes de demanda terapêutica. É assim que a cirurgia plástica, criada inicialmente para tratar de lesões faciais no hospital militar de Aldeshot durante a 1ª guerra, se viu pouco tempo mais tarde utilizada para embelezar rostos saudáveis daqueles que estivessem dispostos a pagar por um aperfeiçoamento estético, provocando uma busca por ideais corporais que se tornaram, sobretudo no Brasil, uma fonte altamente rentável de intervenção médica. Podemos dizer o mesmo a propósito do uso da sidenafila, no tratamento da disfunção erétil, ou da ritalina, para os assim chamados déficits de atenção, numa lista que se estende infinitamente.
Vemos, portanto, com ceticismo a eficácia de uma moratória na edição do genoma hereditário, embora consideremos justificados os motivos citados no artigo para sua proposição. Concordamos, de certa maneira, com o que prediz o historiador Yuval Harari, para quem o futuro parece desenhado: existe um caminho sem volta e é provável que daqui há algum tempo a humanidade terá que se haver com uma geração marcada pelos efeitos da intervenção técnica no aprimoramento genético (Harari, 2018, p. 111).
Mas se vocês me permitem, agora, falar desde o lugar em que me situo não enquanto intelectual, mas como pesquisador e clínico, que é o lugar do psicanalista, eu diria que o que me preocupa, mais imediatamente, não é propriamente a distopia imaginada por Aldous Huxley de uma comunidade governada por alfas superdotados, e separada em classes geneticamente manipuladas de betas, gamas e ípsilones. O que inquieta de imediato o psicanalista é a possibilidade de se produzir crianças sob encomenda, por mínima que essa possibilidade se apresente, seja na escolha do sexo ou na eleição de um traço que pode não ser mais do que a curva da sobrancelha ou a cor dos olhos. A ideia de se estender, através da manipulação genética, o estatuto padronizado da forma mercadoria à produção de vidas humanas nos parece particularmente inquietante, na medida em que o que está em questão na oferta de um produto em sua forma mercadoria, é a possibilidade de reduzir o desejo à demanda. Pois contrariamente ao que ocorre com o objeto da demanda, que o sujeito pode adquirir, verificar e comparar, o objeto do desejo se manifesta como aquilo que a demanda não alcança, no sentido em que ele se apresenta, na experiência do sujeito, como algo para o qual não há representação discursiva.
Se isso nos preocupa particularmente, é por saber que o que impede o desejo de ser impessoal ou anônimo é justamente o fato seu objeto não se encaixar nas formas padronizadas que o discurso da oferta e da demanda autoriza. Caberá, talvez, ao psicanalista do futuro, se é que esse futuro ainda há de admitir a existência do psicanalista, cuidar para que a criança encontre seu lugar no desejo dos pais, zelando pela manutenção, a despeito de todos os progressos técnicos na manipulação do código genético, desse lugar vazio, impossível de codificar.
NOTAS
[1] O presente texto é a transcrição de uma conferência proferida a convite da comissão responsável pela organização do Simpósio Edição de Genomas por CRISPR, ocorrido no Instituto de Ciências Biológicas da UFMG, no dia 11 de junho de 2019.
REFERENCIAS