Autismo e forclusao du furo

SILVIA ELENA TENDLARZ

EOL, ECF, AMP, Universidad de Buenos Aires.

silviatendlarz@gmail.com

RESUMO

Desenvolvimento do conceito de forclusao du buraco intoduzido por Éric Laurent e suas consequencias clinicas.

PALABRAS CHAVE: Autismo | Forclusion | Buraco

RESUMEN

En este artículo la autora desarrolla el concepto de forclusión del agujero introducido por Éric Laurent y sus consecuencias clínicas.

PALABRAS CLAVE: Autismo | Forclusión | Agujero

ABSTRACT

Development about the concepto of hole foreclosure introduced by Éric Laurent and its clinical consequences.

KEY WORDS: Autism | Foreclosure | Hole

RÉSUMÉ

Dans cet article, l’auteur développe le concept de forclusion du trou introduit par Éric Laurent et ses conséquences cliniques.

MOTS CLEFS: Autisme | Forclusion | Trou

Lacan falou sobre o autismo em poucas oportunidades. O diagnóstico, como tal, ainda não tinha o auge classificatório e midiático do século XXI. Ainda não havia se convertido em uma epidemia diagnóstica. Porém, seu ensino nos brinda com os caminhos necessários para entender o autismo e propor uma direção de tratamento.

Nos últimos anos, a comunidade analítica de orientação lacaniana tem trabalhado vivamente sobre o autismo, percebendo o fundamento de incluir a psicanálise como um tratamento possível. Porém, o estudo do autismo não se detém no diagnóstico e permite examinar, mais de perto, as particularidades da construção subjetiva, do modo como o vivente recebe o impacto da lalíngua e se inclui no Outro.

Breve história do autismo

O autismo tem sua história dentro do movimento psicanalítico (Tendlarz, 2016). Despojando-o de sua conotação inicial, inicialmente dada por Freud com o autoerotismo, Bleuler situa, no começo do século passado, o retraimento autista como uma modalidade da esquizofrenia, para descrever a retração do sujeito com relação a seu entorno. Leo Kanner, em 1943, descreve pela primeira vez o diagnóstico de “Autismo infantil precoce”, enquanto que, do outro lado do Atlântico, poucos anos depois, Aspeger cria a “Psicopatia autista”, logo denominada “Síndrome de Asperger”, para nomear crianças fora do laço social, mas com maior uso da linguagem. Os Manuais diagnósticos estendem seu uso com o nome atual de “Transtorno do espectro autista”, contribuindo, assim, para a grande epidemia diagnóstica.

O gosto pela solidão, a fixidez e as condutas estereotipadas são colocadas em primeiro plano por parte de Leo Kanner, dando conta de um funcionamento subjetivo singular, núcleo real que responde pelo crescimento de casos de crianças autistas, além da ampliação do espectro autista. Na realidade, a solidão não é bem assim, como indica Maleval, além disso, tratam-se mais de interesses específicos que iteram do que de condutas estereotipadas.

Os pós-freudianos e kleinianos se interessaram por esse quadro. Melanie Klein situa Dick dentro de uma esquizofrenia atípica (Klein, 1930). Nos anos 50-60, Margaret Mahler (Mahler, 1968), em New York, apresenta a necessidade de atravessar o encapsulamento autista. Durante a mesma época, Bruno Bettelheim, em Chicago, introduz a “fortaleza vazia” (Bettelheim, 1968). Nos anos 70, Meltzer examina a topologia e o uso do espaço próprio, bidimensional, resultado da identificação adesiva (Meltzer, 1968). Francis Tustin postula o “encapsulamento autista” como uma barreira protetora frente ao mundo exterior, gerada pela autosensualidade corporal que inclui o uso de objetos autistas e formas autistas de sensações (Tustin, 1972). Para todos eles, o autismo corresponde a uma patologia arcaica que leva a se defender de angústias e terrores catastróficos.

A orientação lacaniana tem seus precursores nos trabalhos sobre o autismo e a psicose de Rosine e Robert Lefort. Podemos situar dois tempos fundamentais nesta teorização sobre o autismo: o primeiro é com a publicação do livro deles em 1980, O nascimento do Outro: duas psicanálises e depois A distinção do autismo, de 2017. Entre ambos os livros, eles publicaram um terceiro, em 1988, intitulado As estruturas da psicose: o menino lobo e o presidente, em que colocam em relação o menino lobo, Robert, com o presidente Schreber, posto que consideram que têm a mesma estrutura.

Rosine e Robert Lefort retomam de uma maneira original os desenvolvimentos dos esquemas ópticos e a topologia usada por Lacan para pensar o autismo, com uma clara orientação para o furo, em contraposição à tradição kleiniana (Lefort, 1980). Em relação aos mecanismos próprios do autismo, no primeiro livro os Lefort propõem que o autismo é uma a-estrutura, ou seja, não há constituição de uma estrutura. A partir de Lacan, indicam que o significante fica como Um sozinho no real, assim como a imagem aparece no real. Inclusive, propõem que o autista “nega o furo”.

No segundo livro, acentuam a ação da pulsão de destruição e dos distintos níveis no autismo. O Outro não está furado, não falta nada, nenhum objeto é separável e não há desejo. A operação de alienação não está presente porque não há um significante inscrito no Outro. É por isso que o duplo real se torna essencial no autismo. Como não há alienação, o Outro fica como absoluto, real, sem objeto voz separado que possa ser cedido.

Por último, diferenciam o autismo da psicose, embora também proponham que a saída do autismo é pela via da paranoia. Há forclusão no autismo, mas eles se perguntam se a falha deve ser situada na metáfora paterna. É uma maneira de se perguntar se a forclusão concerne ao Nome-do-Pai. Afirmam, então, que no autismo existe uma forclusão mais radical, que está mais próxima da castração, que é a da Bejahung, a afirmação primordial. Sem essa afirmação primordial, o significante não significa nada. Por outro lado, na esquizofrenia a forclusão é do Nome-do-Pai.

A partir de 1996 os Lefort propõem uma estrutura autista, diferente da a-estrutura anterior. Levam em conta os testemunhos dos autistas de alto nível e constatam que existem níveis no autismo, que os conduz a propor uma estrutura transestrutural. Esta formulação se aproxima da noção de espectro autista, que se expande e no qual se multiplicam os casos de autismo.

Lacan, por sua vez, retoma o autismo em poucos oportunidades. Em 1953 encontramos suas pontuações sobre o caso Dick de Melanie Klein e o caso Robert de Rosine Lefort, no Seminário 1, Os escritos técnicos de Freud, que podem ser considerados autistas no sentido amplo (Lacan, 1953-54). Os Lefort, trinta anos depois da apresentação do caso, incluem Robert na paranoia e o comparam com o presidente Schreber. Lacan alude a uma criança na “Alocução sobre as psicoses da criança”, de 1967, sem mencionar o autor e o nome da criança – que era o caso Martín, apresentado por Sami Ali (Lacan, 1968). E, por último, há uma referência clara ao autismo em 1975, na “Conferência de Genebra sobre o sintoma”, em que diz: “Como o nome indica, os autistas escutam a si mesmos. Eles ouvem muitas coisas. Isso leva, normalmente, à alucinação, e a alucinação sempre tem um caráter mais ou menos vocal. Nem todos os autistas escutam vozes, mas articulam muitas coisas e trata-se, precisamente, de entender onde escutaram o que articulam […] Trata-se de saber por que há algo no autista, ou no chamado esquizofrênico, que se congela” (Lacan, 1975, p. 12-13). E acrescenta que se trata de personagens bastante verbosos.

Pode-se organizar uma série nas afirmações de Lacan ao longo do seu ensino: não há chamado e a linguagem está interrompida no nível da palavra (1953); detenção do estado nodal da palavra (1953); a criança se protege do verbo quando tapa os ouvidos, e propõe uma palavra mais primordial que qualquer mamama (1967); e, finalmente, os autistas, ou melhor, verbosos, escutam muitas coisas, e há algo que se congela neles (1975).

Jean-Claude Maleval, em O autista e sua voz (Maleval, 2009), propõe o autismo como um tipo clínico, no que o essencial permanece invariável. Retoma as características especiais descritas por Kanner: a solidão e a fixidez, e explica seu funcionamento em crianças, adolescentes e adultos, incluindo os autistas de alto nível. No seu entender, a solidão e a fixidez, que caracterizam o autismo desde cedo, pode se atenuar ou desaparecer, embora o estilo de funcionamento continue invariável. Situa duas características essenciais: o rechaço da alienação significante e o retorno do gozo sobre a borda, com um funcionamento autista singular, que se mantém ao longo do tempo.

Podemos indicar dois momentos fundamentais no seu desenvolvimento: o primeiro, nos anos 2007-2017, introduz a nova hipótese da não cessão do objeto voz no autismo e estuda os transtornos de enunciação dele decorrentes; o segundo, desde 2014, trabalha sobre os distintos tipos de bordas no autismo e diferencia claramente o autismo da psicose.

A ausência da perda é a base da teorização de Jean-Claude Maleval. Primeiro propõe, no seu livro O autista e sua voz, que no autismo não há perda, não há a cessão do objeto voz, o que acarreta os transtornos na enunciação: enunciação morta, técnica, apagada, defasada, mutismo e verborreia. Depois, amplia esta formulação inicial e destaca que, embora haja uma ênfase no objeto voz, não há perda de nenhum dos objetos pulsionais. O autista arma, então, uma borda autista, na qual inclui o duplo autista, os objetos autistas e os interesses específicos. Maleval critica os Lefort, mas os toma como ponto de partida dos seus desenvolvimentos, ao mesmo tempo que retorna ao que propõe Lacan para seu exame original do autismo.

O traumatismo do furo

Jacques-Alain Miller analisa uma sequência particular no caso Robert, analisado pelos Lefort (Miller, 1988), que dá lugar a que, finalmente, Éric Laurent introduza a “forclusão do furo” como o próprio do autismo.

Primeiro a criança isola uma mamadeira, separando-a dos outros objetos, e quando corre o risco de cair se sujeita ao pênis. Em um segundo tempo, tenta cortar o pênis com uma tesoura, produzindo uma castração no real. Ou seja, o Um aparece como “mais” e por isso se esforça para inscrever uma negativização no seu corpo, para que o órgão passe ao significante fálico. É um esforço para produzir uma castração no real.

O segundo momento corresponde à criação de um novo significante: “O lobo”. Um dia, Robert aponta com seu dedo o buraco do vaso sanitário e pronuncia pela primeira vez este significante. Até então, só havia dito: “senhora”, “sim-não”, “bebê”, e em uma ocasião gritou: “mamãe”. O significante “senhora” nomeava todas as figuras do Outro. O terceiro tempo corresponde à sessão do “batizado”. Robert faz escorrer o leite da mamadeira sobre seu corpo, até que cai sobre seu pênis, e nesse momento pronuncia seu nome. No quarto tempo, arranha a parede, enquanto diz seu nome, e em seguida arranha seu corpo.

O significante “O lobo” é essencialmente a palavra reduzida a sua medula: “Vocês vêm aí o estado nodal da palavra. O eu é aqui completamente caótico, a palavra interrompida. Mas é a partir de O lobo! Que ela poderá encontrar o seu lugar e se constituir” (Lacan, 153-54, p. 125). A detenção da palavra é uma maneira de nomear o Um sozinho do autismo que itera, que não se enlaça ao resto da cadeia significante.

Jacques-Alain Miller indica que Robert vive no real, nada falta, pois a falta se constitui como tal a partir do simbólico. No mundo pleno não está incluída a falta. Vive em um mundo onde nada pode faltar, por isso tudo lhe é igualmente indiferente e está incluído no real. Falta a falta, falta o furo. O gozo retorna como um excesso e o leva a tentar produzir uma perda no real, como uma necessidade própria da estrutura, daí os episódios de automutilação.

A partir dessas formulações, Éric Laurent aponta no seu livro, A batalha do autismo (Laurent, 2014), que no caso Robert não há simbolização do furo e nem da borda. Produz-se, então, a forclusão do furo. O encapsulamento autista surge pelo retorno do gozo sobre a borda. Este encapsulamento nomeia uma neo-barreira elástica; não há um encapsulamento duro, no que não há circuito pulsional e nem zonas erógenas. Coloca-se, assim, em jogo, o traumatismo do furo como acontecimento de corpo, que torna o autista um ser sem furo.

A inexistência da borda do furo se duplica pela inexistência do corpo, pois a constituição do corpo supões a separação de um objeto. Por isso, a proposta do funcionamento de uma iteração do Um sem corpo. A iteração do Um, como é real, não consegue se inscrever como tal.

Tanto a interrupção da palavra, a detenção da palavra no seu estado nodal, ou o congelamento, que torna os autistas verbosos, corresponde ao que Lacan desenvolve no seu último ensino como o Um do gozo.

Éric Laurent aponta a necessidade de retomar este conceito desenvolvido por Jacques-Alain Miller no seu comentário sobre Lacan, para fundar uma abordagem psicanalítica renovada do autismo.

No curso El Ser y el Uno, Jacques-Alain Miller propõe que há Um como iteração significante real (Miller, 2011). Miller define o Um como a redução do simbólico para esvaziar seu real como iteração. Mas não há dois, não há relação sexual. O dois não está no mesmo nível que o Um, que se repete na iteração. O dois aparece como delírio, por isso todo mundo delira, e assim o S2 dá sentido delirante ao S1, que é a letra sem a articulação significante. Este S1 se inscreve no corpo, marcando-o como acontecimento de corpo.

O Um do gozo não se apaga no sujeito autista, diz Laurent, mas itera e o deixa como um corpo que goza de si mesmo, sob o funcionamento de todos os equívocos de lalíngua. O sujeito autista tenta, então, reduzir esta proliferação através do calculo do Um da letra que se repete, na forma vocalizada ou no silêncio, separado do corpo. Põe-se, assim, em jogo, o traumatismo do furo como acontecimento de corpo particular, que torna o autista um ser sem furo. O efeito clínico é a intolerância frente ao furo, que pode levá-lo a buscar uma saída através da passagem ao ato. Em um mundo pleno, que não inclui a falta simbólica e nem a simbolização do furo, o sujeito autista necessita produzi-la de algum modo. Frente ao Outro real furado, o A barrado, não consegue inscrever simbolicamente a borda do simbólico desse furo, que expressa o matema S(A) barrado. Dizer que não há furo no simbólico é equivalente a dizer que não há uma borda que delimita esse furo. Como o furo no Outro simbólico tem uma borda, isso não acontece quando se trata de um furo no real. Por isso que o estado autístico do furo implica a ausência real da borda.

No autismo, esse menos não se inscreve e o gozo que experimenta o vivente aparece como excesso, sem constituição de um imaginário especular. O duplo funciona, então, como uma suplência à inexistência da borda.

Clínica da borda e da extração de gozo

Isso conduz Éric Laurent a propor a clínica das bordas e da extração de gozo. Se o furo está forcluído, não há uma inscrição de uma borda que no simbólico delimite esse furo; no seu lugar há uma neoborda que pode ser ampliada. A clínica do circuito se apoia nos conceitos do circuito da demanda ou da letra dos anos 50. Porém, se não há limite, como construir um? Laurent responde que se trata de ver como se constróem com cadeias singulares que reúnem objetos, ações e formas de fazer de maneira singular, circuitos metonímicos que implicam um ampliamento na continuidade. A clínica das bordas corresponde aos fenômenos de borda e aos circuitos que podem se ampliar através da iteração, até que possa aparecer algo novo na repetição, por uma cessão do gozo. É uma clínica da cadeia e da extração. Na falta da borda, aparece o encapsulamento e o duplo cego que, funciona como uma espécie de suplência a esse furo, que não se inscreve como tal.

Por outro lado, Laurent fala de acontecimentos de corpo na direção do tratamento, da extração de gozo. Na medida em que apareça algo novo no circuito iterativo, em paralelo, há que se produzir uma cessão de gozo, que possibilite o ampliamento.

Usa como exemplo um caso de Rouillon, de um trabalho institucional (Rouillon, 2015), no qual relata que uma criança seguia incansavelmente o seu educador, como se fosse sua sombra, situada atrás dele, por meio de uma costura topológica do espaço, diferente do campo da visão. Ao mesmo tempo que fazia esse caminho, arrancava alguns pelos do rosto, de modo que podia chegar a se machucar, por uma tentativa de produzir uma perda no real do corpo. Em um determinado momento, Rouillon percebe que seu nome começa com as letras “Rou” e que o nome do educador terminava com essas mesmas letras. Para, então, na frente da criança e diz: “você vem me ver”. Introduz, assim, um elemento novo, pelo qual a criança deixa de seguir o educador e de arrancar os pelos do rosto, já que não mais necessitava produzir esse efeito de mutilação no real, essa perda, pois consegue ceder à presença do duplo. Eric Laurent explica, então, que a falta da borda autista, do encapsulamento, funciona como uma suplência a esse furo, que não se inscreve como tal. Isso é muito próximo à proposta de Maleval sobre o lugar do duplo na borda autística. A intervenção do analista consegue deslocar a criança que detém seu percurso.

Enquanto os kleinianos propõem a existência de um furo negro Laurent, pelo contrário, propõe uma forclusão do furo. Mas este aparente paradoxo não o é como tal, conclui Laurent, pois o furo no simbólico tem uma borda e essa borda, que se inscreve no simbólico é distinta do furo no real. O furo negro de Tustin é um furo no real, mas não tem inscrição simbólica.

O exemplo que desenvolve a seguir é o da autista de alto nível chamada Donna Willians (Eric Laurent, 2014). Ela chama: “o grande nada negro” a presença da morte que a persegue e que sentia sempre ao seu lado. Era uma espécie de furo, onde podia cair, um furo no real, não simbolizado. Explica em dois de seus livros: “da minha garganta saiu um grito. Minhas pernas de criança de 4 anos correram de um lado para outro do quarto, se movimentando cada vez mais depressa com o meu corpo, batendo nas paredes como um pássaro que voava em direção à janela. Meu corpo tremia. A morte estava aqui. Não posso morrer! Não quero morrer! A repetição das palavras acabava fusionando-me em um padrão de uma só palavra: a palavra morrer. Caí de joelhos no chão. Minha mão percorria o espelho. Meus olhos buscavam freneticamente aqueles olhos que me devolviam o olhar, buscando algo com um sentido, algo com que se conectar. Nenhum. Nada em nenhum lugar” (Williams, 1994, p. 124, tradução livre).

Essa experiência que se repetia uma e outra vez dá título a seu primeiro livro. Ela explica: “o grande nada negro vinha e me agarrava várias vezes ao dia. O grito silencioso sempre explodia na minha cabeça e se espalhava pelo cômodo até que ao final compreendi que aquilo correspondia à minha morte. Aquela foi uma dura lição. No vazio não há conexões. A voz que uiva nem sequer te pertence porque não há nem você e nem há voz. Era nada. Só há olhos que não registram nada na obscuridade mental e ouvidos que ouvem sons tão distantes e inalcançáveis como se estivessem no outro lado da terra. No nada não há corpo que possa ser confortado e o toque só confirma a já dolorosa sensação dessa coisa presa a seu exterior da qual não pode escapar” (Willians, 1994, p. 124, tradução livre).

Essa experiência subjetiva explica a presença do furo no real, uma vez que está forcluída a possibilidade de simbolizá-la. Por outro lado, Donna Williams tinha múltiplos duplos: Willie, Carol, sua própria imagem no espelho, pois ela já pensava que era uma criança que a olhava. Todos eles, no seu entender, haviam-na salvado do grande nada negro. Tornam-se, assim, suplências frente à presença desse furo no real.

Em seu livro, Laurent examina distintas manifestações do Um da letra: a mesmice de Kanner, o sameness, um Um que aparece sempre igual; as frases espontâneas, que não são frases interrompidas, e sim holofrases radicais, palavras ou frases que ficam fora da sintaxe têm um sentido pleno, sem produzir novas significações; sua utilização é variável e são emissões de gozo experimentadas como automutilações; situações de corpo, que são situações tomadas no seu conjunto imaginário, simbólico e real; a literalidade é o grau zero do sentido, sem equívocos; também opera a redução de lalíngua a um cálculo discreto, sem o recurso dos cortes estabelecidos ou das rotinas da linguagem que poderiam dar sentido: é um cálculo da letra separada do corpo.

Como chega, então, o sujeito autista a fazer uso da linguagem? O sujeito pode começar a se inserir no mundo com muitos poucos significantes, com alguns Uns, muito poucas palavras; depois, eventualmente, ficam mais complexas, como em um circuito. O Um itera em um circuito da letra que se repete, ou em um cálculo da letra. A necessidade da ordem é uma maneira de reduzir o efeitos alucinatório dos equívocos de lalíngua.

Éric Laurent destaca que a repetição do mesmo é um obstáculo para o desenvolvimento do vivente. O autista, por um lado, necessita repetir o mesmo para calar os equívocos de lalíngua, mas, ao mesmo tempo, essa solução do funcionamento iterativo implica uma detenção. A direção do tratamento trabalha sobre essas repetições, esse mundo fixo e imutável, para que possa deslocar-se. Favorece, dessa maneira, o devir do vivente.

Laurent diferencia, no seu livro, a psicose do autismo. Na psicose há um transtorno na cadeia significante, pela ruptura na articulação significante, com fenômenos de rompimento da cadeia significante. A cadeia significante está holofraseada, não pode haver dialética ou retroação. Por outro lado, no autismo não há interrupção da mensagem: se não há Outro a quem possa se dirigir um chamado, a mensagem não pode ser interrompida. No seu lugar, se produz a repetição do mesmo significante, S1, separado de outro significante, que produz um efeito de gozo por sua própria repetição, pura iteração, sem corpo, do Um, sem que se inscreva como tal. O Um do gozo não se apaga, por isso qualquer palavra pode produzir terror: aparece mais, não se pode negativizar. O significante impacta o corpo sem uma mediação

Diferente da alucinação na psicose, em que se produz uma transferência do simbólico ao real, a alucinação no autismo concerne à impossível separação do ruído de lalíngua, que se torna um real insuportável. A criança autista, então, tapa os ouvidos frente a esse ruído no real que, às vezes é confundido com hipersensibilidade aos sons.

O autista está incluído na lalíngua integralmente, a todos os equívocos, sem o funcionamento da estrutura da linguagem, e no seu lugar aparece a repetição do Um da letra. O modo no qual o sujeito autista trata a proliferação da lalação consiste em querer reduzi-la ao Um da letra que se repete, afirma Laurent.

Na psicose, alguns significantes retornam no real pela transferência do simbólico ao real. Por outra parte, no autismo, todos os significantes estão no real e iteram. No autismo, pode-se propor um simbólico real, um imaginário real e o real do real. São três registros que funcionam como consistências separadas. O sujeito autista, imerso no real, utiliza invenções, remendos, construções, para enganchar esses registros.

Em “Variedades del baño del leguaje en el autismo”, Laurent afirma que o banho de lalíngua inclui distintos elementos (Laurent, 2014). A iteração do Um se manifesta não só através da letra, como também através de números, cifras, músicas, imagens, que funcionam como Um iterativos, que impactam sobre o corpo, produzindo o acontecimento de corpo do autista, sem extração de gozo.

Em suma, na neurose há cadeias significantes heterogêneas de equívocos; na psicose há uma construção de uma língua pessoal e privada, que inclui alguns equívocos; no autismo há uma construção e uma ampliação da borda, junto com o que se chama do “cálculo da letra”, que funciona sem equívocos.

Laurent critica os tratamentos que simplesmente tentam fazer ceder estas repetições, para substituí-las, em seguida por uma repetição comportamental e adaptativa. Na realidade, suas próprias repetições, que estão na base do funcionamento do sujeito autista, podem ser mais fecundas, se não são tomadas somente como déficit, e sim como produtivas, dentro da sua busca por uma solução, de uma invenção subjetiva. A partir disso, o autista pode encontrar formas fecundas de se inserir no mundo.

As crianças repetem o mesmo, mas em cada oportunidade, com uma ligeira diferença, constroem sequências, que são as mesmas, mas em um momento são diferentes. Esses circuitos têm a ver com a maneira com que o sujeito consegue entrar no simbólico, um simbólico real, e consegue lidar com a imagem. O circuito ou sequência da letra permite que o sujeito entre na linguagem e fale, não através da ação de metáforas e de metonímias, como na neurose, e sim pela construção de circuitos da letra cada vez mais amplos.

 

Tradução: Cynthia Gonçalves Gindro
Revisión de traducción: Marcus Andre Vieira

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