Agradeço à Viviana Berger por ter me convidado a falar hoje e, também, à Fapol pelo seu acolhimento. É um acolhimento cordial, amistoso, que conta muito com o vínculo social analítico, mas também é um acolhimento intelectual, um acolhimento para o trabalho propriamente dito: temos todos os textos, que circularam há muito tempo, que me foram enviados e que prepararam o trabalho de hoje. Apreciei muito isso. Lendo esses informes, temos a dimensão do quanto a  questão proposta sobre a liberdade de expressão nos interessa, não do ponto de vista sociológico, mas do ponto de vista da psicanálise. É uma exigência que teremos de manter, caso não queiramos nos contentar em discursar no céu das ideias.

Os Observatórios, se entendi bem sua função, sua missão, tentam responder à questão: em que contexto os sujeitos demandam uma análise hoje? A questão deve ser, seriamente proposta caso a psicanálise queira fazer uma oferta que esteja à altura da civilização. O que está em jogo implica a própria civilização, pois se trata do impacto do discurso analítico no mundo.

O contexto da liberdade de expressão hoje em día, revela um paradoxo interessante. Com efeito, funcionando como um princípio nos Estados de direito, os juristas estão de acordo em afirmar que nossa época é inédita: a afirmação segundo a qual os sujeitos são livres e iguais em direito, como homens, como pertencentes à comunidade do gênero humano, transforma-se, atualmente, em uma exaltação das diferenças para reivindicar uma diferença de identidade, assim que um pedaço de cor é transformado em ser, a cor, a sexuação, a raça. A tal ponto que, se um sujeito se sente ofendido nessa identidade, pode denunciar a ferida, “ferida a convicções íntimas”. Toda palavra, nesse contexto, é potencialmente blasfêmia, justamente como indica Eve Miller Rose na intervenção da “Grande Conversação da Escola Una” (2022). A questão se estende para todo o âmbito da sexuação, que aqui foi abordado através da questão trans.

 

O corpo no comando

Vejamos: qual é a mudança radical que nossa civilização está experimentando? É o corpo que toma o comando. O menor traço que se possa ler no corpo, transforma-se em identidade, endurecendo-se; o menor plus-de-gozo tende a se transformar em comunidade. E a lei corre atrás do corpo para tentar legislar, a cada vez que uma nova reivindicação aparece nele. Mas, de que corpo se trata? É um corpo separado da palavra: o caso do autismo é exemplar aqui. Predomínio do corpo, desaparecimento da dimensão psíquica. É o corpo que fala, um corpo em peças soltas que são escutadas sem a mediação da palavra. O mistério do corpo falante é outra coisa: o corpo é um enigma para o sujeito mesmo, um lugar de opacidade, de questionamento. A tal ponto que Lacan o converte na estrutura mesma da neurose: uma questão situada pelo sujeito a nível de sua existência mesma: “o que quer dizer ter um sexo”? (LACAN, 1956-1957). E, então, o saber misterioso do corpo falante desaparece da ideologia dominante. É um corpo paradoxalmente reduzido ao silêncio. Esse é, inclusive, o segredo da autodeterminação e de seu triunfo: o “sei o que sou, sei o que quero”; é um saber no qual o corpo está no comando, sem a mediação do desejo do Outro. A questão toca em particular no âmbito da infância, já que tendemos a fazer da criança um cidadão sem mediação parental: o tempo da infância, com os balbucios da sexualidade, tende a ser apagado, “o insuportável da infância”, silenciado.

E, através do testemunho dos observadores, podemos tomar a medida que, correlativamente, a função da palavra está afetada, escotomizada. É uma palavra na qual o dito está tomado ao pé da letra, sem incluir a dimensão do inconsciente: o sujeito se equivale estritamente ao que diz, enquanto que a psicanálise ensina que o sujeito sempre diz mais do que sabe. Quando fala, trai a si mesmo: nas falhas de sua palavra, que não domina, há um mais além do que diz. É aí que a interpretação encontra logicamente seu lugar. Hoje, a margem da interpretação não está assegurada, já que o dito se reduz ao dito. As normas plurais estão ocupando o lugar da interpretação. Por isso, a questão da verdade não se mantém, salvo como uma verdade falsa, tautológica. Fake. Sabemos qual é o lugar do fake em nosso mundo.

É por isso que o tema da liberdade de expressão se situa em um contexto inédito, no qual a questão da verdade tem um interesse especial. Nós mesmos, psicanalistas, temos que recordar essa dimensão que Lacan sustentou no decorrer de seu ensino, inclusive em em seu último momento, no qual avança sobre a verdade mentirosa. Mantém a questão do verdadeiro e o falso do fake. É importante não perder de vista que a análise é uma experiência da verdade, o sujeito deve voltar sobre o dito, sobre o que há de mentira no que diz. O tratamento é uma experiência na qual se toma posição quanto à mentira; verdade e mentira não são equivalentes. Que a verdade seja mentirosa não impede de esperar da análise uma relação direta com a verdade.

 

A mensagem freudiana: aletheia

De certa maneira, a mensagem freudiana deu um passo na civilização. No sentido de que a liberdade de expressão se tornasse um bem absoluto. Falar libertaria. A “doxa” reteve a ideia de uma catarse freudiana: se liberam ficções íntimas que seriam prejudiciais e tanto mais ativas por serem desconhecidas. Essa é uma versão da psicanálise sem fundamento, que Freud mesmo abandonou, já que ocultava a dimensão da transferência: a quem se fala? O sujeito não é o autor do que diz, é do Outro da transferência que recebe sua mensagem.

É certo que há na cura uma noção de revelação (aletheia): a psicanálise é uma experiência de verdade sob transferência, é o sentido da associação livre, mais além dos dos julgamentos do eu, da consciência tranquila: trata-se de contrariar o “não quero saber nada”. Favorecer o descongelamento da palavra mais que o silêncio ou a mentira. O sujeito que consente à deriva do inconsciente precisa voltar sobre aquilo que disse. Uma palavra que instaura uma relação com a verdade.

Mas, o amor freudiano da verdade tem um limite essencial: dizer “toda verdade” não é o melhor a dizer. Trata-se de recordar isso na interpretação: essa não equivale, de nenhuma maneira, a escancarar ao sujeito sua verdade crua.

O despertar que está em jogo na experiência da palavra, na análise, revela efetivamente, um real que está muito longe de ser pacificador e com o qual o sujeito tem que contar. O ponto que se toca é o de uma verdade mortal e, nesse sentido, não é promessa de nenhuma reconciliação harmoniosa, nem de nenhum bem.

A verdade, como ponto de horror para um sujeito fica totalmente esquecida nos chamados à liberdade de dizer tudo e de dizer toda a verdade. Promove-se uma verdade inteiramente jurídica e se esquece que a verdade subjetiva não é nem amável nem desejável.

 

Da verdade como coisa à verdade como lugar

Gostaria de destacar aqui a subversão que Lacan realiza quanto à verdade. Qual é o destino radical que Lacan lhe reserva? Esse destino radical que Lacan reserva à questão da verdade é o de não situá-la no registro do pensamento ou do conhecimento, mas de situá-la como coisa. A verdade pertence ao registro da coisa que fala. “Eu, a verdade, falo” (LACAN,1955, p.410). Em outras palavras, como dizer isso?  A verdade não passa mais pelo pensamento, mas pelas coisas, diz Lacan em “A Coisa freudiana”, comunica, por meio de rébus, como o sonho. O rébus como coisa é o signo de um dizer verdadeiro, autêntico, porque a verdade, da qual se trata, não é boa de dizer, e necessita travestir-se. “Nossos atos falhos são atos que triunfam, nossas palavras que tropeçam são palavras que confessam. Uns e outros revelam uma verdade por detrás” (LACAN, 1953-1954, p.302). No sintoma, nas imagens do sonho, manifesta-se uma palavra que traz uma verdade detrás.

Insistamos: se colocarmos, com Lacan, a questão geral, como ele o faz: Quem fala? Então, não é o sujeito, mas a verdade. “A coisa fala por si mesma”. Já que o sujeito diz mais do que sabe dizer. Não se pode obrigá-lo a dizer toda a verdade. É uma verdade que não diz, necessariamente, toda a verdade, mas o que a faz verdade, é que fala.

Lacan complexifica essa forma de abordar a verdade situando-a como lugar: passa da verdade como coisa à verdade como lugar: o lugar da verdade, como uma verdade escondida. Situando-a como lugar exterior ao discurso, pode-se entender que não pode englobar tudo, não pode ser toda e, até mesmo, pode estar, simplesmente, ausente. Só pode ser meio-dita, ser lida nas entrelinhas, fica velada porque toca o real. É uma consequência de sua conexão com o real. Quando se quer mostra-la toda, é um monstro que aparece, é uma torrente de ódio que lhe segue, na proliferação do fake. Cuidar do lugar da verdade é essencial para não saturá-lo, para deixar livre o lugar da verdade, segundo a feliz fórmula de Éric Laurent, deixar livre o lugar mais além do que se diz, de “uma verdade por detrás”.

 

Da verdade ao saber

Há um limite, então, para uma verdade toda: é o real. Mas, essa conexão com o real só adquire seu alcance na análise através do saber.

Partamos de uma ressonância clínica: podemos encontrar, na análise, alguns momentos de aparição da verdade, no que diz respeito a um sonho, que não têm verdadeiro efeito em nós, apenas se percebem as suas consequências quando passam ao saber, mais além de uma simples revelação. Essa é a diferença entre uma verdade que produz efeitos de alívio, mas de curta duração, e um progresso do saber.

O saber posto em questão em uma análise é aquele que se deposita no tratamento como um modo de gozo, através de seu aparelho fundamental: o sinthome. Trata-se de um saber distinto do universal, um saber que vale apenas para UM, pois é no corpo próprio que  pode ser apreendido, através da análise. Esse gozo se apreende em sua condição de indizível, sem forma, nem razão. Sem comparação com os ideais.

Felizmente para a psicanálise, que os partidários de todos os rechaços ou desmentidos do inconsciente o saibam ou não, somente por falar se experimenta um limite: o de poder dizer a verdade sobre a verdade. Esse limite se sustenta de um único encontro com uma experiência de gozo, que deixa uma marca indelével, à qual Lacan chama “farpa na carne” (LACAN, 1958, p.768). Jacques-Alain Miller (2021) citou essa expressão em sua apresentação de Lacan Redivivus, na livraria Mollat: essa espinha volta a nos lembrar sua presença, manifestando-se de uma maneira, mais ou menos, dolorosa. Em uma análise, aprende-se a servir-se dela.

Christiane Alberti

Tradução: Daniela Nunes Araujo
Revisão: Késia Ramos


LACAN, J. O seminário, livro 4:  A relação de objeto(1956-1957) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995

LACAN, J. A coisa freudiana ou Sentido do retorno a Freud em Psicanálise (1955). In  Escritos. Jorge Zahar Editor Ltda: Rio de Janeiro. 1998. (p. 402-437)

LACAN, J. O seminário, livro 1 : Os escritos técnicos de Freud.(1953-1954) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993. p. 302.

LAURENT, É. Parler et dire le faux sur le vrai.In: Quarto, n. 128. p.68.

LACAN, J. Juventude de Gide ou a letra e o desejo (1958). In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. p, 749-775