Mônica Hage*

O pequeno fragmento, “Canteiro de Obras”, da obra de Walter Benjamin, nos traz à tona o que Miller desenvolveu de forma tão precisa no seu texto “A criança e o saber”: a questão do saber da criança e o que ocorre quando ela é tomada como um sujeito a educar. Diz Miller: “a criança é o nome que se dá ao sujeito, desde que o enviamos para o ensino, sob a forma de educação.”[1] A criança é o sujeito entregue ao discurso do mestre.

Interessante o que aponta Miller ao destacar a etimologia da palavra “pedagogo” – o nome do escravo encarregado de conduzir as crianças.[2]

Benjamin destaca que desde o Iluminismo “uma das mais borolentas especulações dos pedagogos” era essa de “elucubrar pedantemente sobre a fabricação de objetos que fossem mais apropriados às crianças”.[3] E, desta forma, acabavam tornando-se cegos para o real interesse dos pequenos, cuja atenção se volta para o “lugar de trabalho onde visivelmente transcorre a atividade sobre as coisas”[4], as pequenas coisas do dia-a-dia que estão ao seu redor. Com o interesse voltado para esses pequenos resíduos, as crianças formam seu mundo de coisas.

Ao querer criar para as crianças é preciso ter em mira, aponta Benjamin, as normas desse pequeno mundo de coisas. Penso que, também, poder–se deixar aprender por elas.

Esse pequeno fragmento nos permite dialogar com o referido texto de Miller onde ele nos traz que “o mestre está escondido sob a aparência de um saber-amo, que é somente saber de escravo para conduzir as crianças que são elas, de alguma forma, os escravos do escravo”.[5]

Com Lacan, tomando Hegel e a dialética do senhor e do escravo, sabemos que o saber está justamente do lado do escravo. É ele quem sabe. O senhor nada quer saber.

Para Agamben, “todo poder começa com o poder sobre as crianças. E não valerá a pena viver entre os homens, enquanto as crianças não forem libertadas de sua escravidão.”[6]

Aqui entramos no campo do que está em jogo hoje quanto à infância e o poder. O que se quer, de fato, são “sujeitos” ou “assujeitados”? Assistimos a uma concorrência de saberes sobre a criança e a corrida gira em torno de qual prevalecerá sobre ela. “Sobre qual domínio cairá a criança”?[7] pergunta Miller. E aqui ele aponta o Estado, a família e as mídias.

Podemos fazer uma articulação com o que vimos discutindo no Observatório sobre as adoções, e sobre o lugar que a criança é colocada durante todo esse processo. Estaria ela no lugar de objeto sobre o qual os profissionais teriam algo a dizer? Como pensar aqui a questão da infância e o poder?

Como a Psicanálise poderia contribuir ao campo do Direito? Penso que ao apontar para o fato de que a criança é também um “ser de saber”, como diz Miller, e não apenas “ser de gozo”[8] e, por isso, “seu saber deve ser respeitado em sua conexão com o gozo que o envolve”[9], contribuiremos para o campo das leis introduzindo o princípio de que a criança deve ser tomada como “um sujeito de pleno exercício”, e não um “sujeito a vir”[10], tal como insiste ainda algumas disciplinas.

No dia 01 de maio de 2021, o Observatório Infâncias realizou uma Conversação sobre o tema Infância e Literatura. Infância e Poder”, com Maria Carolina Fenati – fundadora e editora, desde 2011, da Chão de Feira, responsável pela publicação da Revista Gratuita. A partir do texto do filósofo italiano Giorgio Agamben[11], sobretudo da frase “todo poder começa com o poder sobre as crianças”, o Observatório se perguntou pelas relações entre poder e infância.

 Agamben afirma que “devemos parar de fingir que sabemos o que é uma criança. A cultura, ou seja, a educação funda-se sobre essa ficção. Tudo o que sabemos da criança é que ela torna inútil tudo aquilo que acreditamos saber sobre o homem”.[12]

Pensando com Agamben, e articulando com as palavras de Maria Carolina Fenati, de que “a infância é promessa de começo, testemunho do eterno retorno do novo e...Talvez seja por isso que todo poder conservador busque domesticar a infância…”,[13] qual seria o lugar da literatura?

Poderíamos tomar a literatura como instrumento de resistência, que nos apontaria alguns impossíveis: educar, domesticar…? Com Freud, sabemos que existe no humano algo que não é domesticável, posto que é da ordem do pulsional. Estaria a literatura, pulsante e viva, nos mostrando esse ponto, o que transborda nos textos, justamente o que escapa a qualquer tentativa de normatização, tão cara ao campo do Direito e da Educação?

 


 

  • A autora  é psicanalista, membro da EBP/AMP. Participante do Observatório de Infâncias

[1].MILLER. J-A. A Criança e o Saber. In Cien-Digital, n 11., p. 6. Disponível em:https://ciendigital.com.br/wp-content/uploads/2018/11/CIEN-Digital11.pdf. Acessado em 30/6/2021.

[2] Idem, p.6

[3] Benjamin. W. Obras escolhidas, vol II. Rua de Mão Única. São Paulo, editora Brasiliense, 1987.

[4] Idem

[5] Miller. J-A. A Criança e o Saber. In Cien-Digital, n 11, p.6. 

[6] Agamben. G. In Revista Gratuita, vol. III

Disponível em https://chaodafeira.com/catalogo/gratuita-v-3-infancia. Acessado em 30/6/2021

[7] Miller. J- A. A Criança e o Saber. In Cien-Digital, n 11, p. 7.

[8] Idem, p. 9.

[9] Idem

[10] Idem

[11] Agamben. G. In Revista Gratuita, vol. III.  https://chaodafeira.com/wp-content/uploads/2017/11/Gratuita3-PDF-Site.pdf

[12] Idem.

[13] Fenati. M.C. Revista Gratuita, vol. III.