Cristiane Barreto
Os destroços não foram corpos despedaçados, nem fragmento corporal, “sob o fogo da sublime violência” (Didi-Huberman, G., 1998, p.174) restou em cinzas ou material deteriorado – massa de ausências-, a história do cinema brasileiro.
Em julho de 2021 um incêndio de grande proporção atingiu um dos galpões da Cinemateca Brasileira, criada em 1940, por um grupo de intelectuais paulistas, que haviam fundado o Clube de Cinema de São Paulo[1].
“Não houve vítimas”, foi o pronunciamento oficial, restringindo-se a este informe sem lástimas, nem promessas de proteção adequada ao acervo restante.
A vida perdura e é verdadeira quando se consegue transmitir algo, transcendendo o dado biológico, na medida em que um memorial distingue seu efêmero aparecimento dos demais (LACAN, 1953-1998). Assim, a civilização enquanto “edificação de obras duráveis que abrem um mundo e produzem sentido”, tem na arte o que permite o sujeito “entrar na esfera das obras para deixar a marca de sua presença no mundo” (MATTÈI, 2001, p. 82). Uma Cinemateca é acervo vivo. Houve vítimas.
E o que queima quando uma cinemateca nacional incendeia? Queima até mesmo a memória do que nunca assistimos. “Em cada escrito, cada fotograma carbonizado, há uma alma ultrajada, uma visão incinerada”, declaram cineastas brasileiros no texto “Incêndio não foi acidente. Cinemateca, entre o deserto e a miragem” (AMARAL, C. et ali, 2021).
A imagem ardia. A da cinemateca pegando fogo e a da cena da fumaça que subia apagando mais de 200 cópias, negativos originais de filmes, dentre eles, filmes de diretores como Glauber Rocha e Anselmo Duarte, único diretor brasileiro premiado com a Palma de Ouro em Cannes, por Pagador de Promessas (1962). Mas também marcos do cinema popular brasileiro, como Mazzaropi, matérias dos estúdios Vera Cruz e Atlântida, e parte da produção da antiga TV Tupi. Não sem destroços, a devastação incendiária foi do cinema novo à comédia ingênua de um regionalismo que apresentava um Brasil a outro Brasil que morava ao lado.
O cinema constrói cenários para serem habitados por personagens, ações, silêncios, e pelo olhar do espectador. O encontro da câmera com um objeto, produz o que se quer dar a ver. Por que uma cinemateca é um dos destinos dos filmes?
Em um corte ao estilo plano detalhe, me ocorre um evento que envolve a psicanálise e a conservação dos filmes. Em um filme doméstico, de 1931, narrado por Ana Freud, Freud passeia nos jardins da sua residência de verão, conversando animadamente com seu amigo Lowy, professor de arqueologia que o guiava em relação à sua coleção de obras de arte. As mãos de Freud se movimentam sem parar, expressivamente. (BURKE, 2010). Freud não sabia que estava sendo filmado, mas o filme sim. A conservação do filme possibilitou que as mãos de Freud chegassem até nós, – não a que jaz parada e escrevia, apontava, trabalhava, somava-, mas aquela “peça solta” que no filme se anima ao falar. Um filme transmite algo sem igual.
Truffaut (2005), em “O prazer dos olhos – ensaios sobre cinema”, ao relatar “O caso da Cinemateca” coloca em cena a figura de um homem, Langlois, fundador e diretor da Cinemateca de Paris durante muitos anos; político habilidoso, obcecado, polêmico e apaixonado por cinema, quando, a partir de uma trama para tomarem o seu lugar, mobiliza artistas, diretores, produtores em manifestações em praça pública, em pleno 1968. O engajamento de todos contra a exoneração foi tal que criaram uma associação, o Comitê de Defesa da Cinemateca Francesa. O campo de batalha se expandiu por frentes variadas e atingiu diversos níveis políticos.
Truffaut (2006, p. 115) declara guardar e compartilhar com os que vivenciaram o movimento de protestos e militância “uma lembrança emocionada de devoção a uma causa, de sacrifícios pessoais e da ausência de dúvidas que caracteriza o engajamento quando é passional”. A importância dada por Truffaut ao “caso da Cinemateca”, dá monstras da real importância de uma cinemateca. Inclusive, para ele, “com o recuo do tempo, parece claro que as manifestações em favor de Langlois foram para os acontecimentos de maio de 68 assim como o trailer é para o filme em cartaz” (TRUFFAUT, 2006, p. 113). A primeira manifestação ocorreu em 15 de fevereiro de 1968 reunindo apenas “os filhos da Cinemateca”.
Extrai-se ainda desse relato a prioridade que uma cinemateca deve ter na política nacional, e também que seu administrador tenha a habilidade apaixonada para “comprar, trocar, roubar, salvar filmes” (TRUFFAUT, 2005, p, 117), ser amante da arte para admitir trabalhos de todo tipo. Para Truffaut (2005, p.117) o melhor cinematecário deve recusar-se a “peneirar, escolher”, decidido a que “todo fragmento de película sensibilizada” deva ser conservado “justamente para preservá-la dos caprichos de opiniões submetidas à moda da época”. Nos últimos tempos, no caso brasileiro, prevalece não opiniões caprichosas em relação à moda, mas uma concepção política, deliberada e declarada publicamente, de que a produção literária e cinematográfica deve ser banida, censurada ou virar dejeto.
“A Cinemateca é o museu do olhar”, disse Cacá Diegues (2021) em entrevista após o incêndio, apontando que “no século XXI o cinema é o instrumento básico da memória”. Para Svletsana Alpers (2001), historiadora de arte da universidade da Califórnia- Berkeley, filmes e livros são os melhores meios de oferecer educação geral sobre as culturas, mais que museus, por exemplo.
A Cinemateca Brasileira é abrigo da diversidade de produção e estilos de filmes, que refletem a imagem de como o cinema brasileiro foi tratado em cada época, não apenas do conteúdo que abordou. Filmes desapareciam nas nuvens, dessas que nada armazenam a não ser chuva e um pouco de espaço à imaginação. Mas, sobretudo, desaparece, e a passos vertiginosos, as marcas do que se pode transmitir de um passado que impulsiona ao futuro em chances de se reinventar.
Um país em chamas?
Para pensar sobre o traço dos vestígios, Didi-Huberman (1998, p. 174) constrói uma imagem bonita e aterradora, “uma floresta com todos os vestígios de uma história -, suas árvores partidas, vestígios de tempestades, suas árvores mortas, (…), vestígios de todos os raios e de todos os incêndios da história”.
Quando o Museu Nacional pegou fogo, Viveiro de Castro, excepcional antropólogo brasileiro, declarou sua vontade de que o museu permanecesse ali mesmo, destruído, se conservasse em ruinas. Transformado em um memorial. Para que todos visem, para não se esquecer, mas sobretudo para que não se tamponasse a perda irremediável. Era final de 2018, e a série de incêndios estava apenas no início.
Queimamos cenários de filmes que não poderão mais existir. A Amazonas permaneceu ardendo em chamas por meses. Depois o Pantanal proporcionou as imagens tristes dos bichos correndo para se salvarem do fogo, salvarem seus filhotes ou agarrados em um abraço animal de pura dor das fotografias de cenas apocalíticas. Mas apocalipse da política, que se deleitava em demora e indiferença.
Paralelamente, notícias que aludem a um planejamento sinistro, no mínimo uma torcida para que algumas coisas da face da terra deixassem de existir, não fossem conservadas, preservadas, e parassem de dar gastos ao governo e pouco lucro a barões dementes. Vale lembrar, que o mistério que envolve a completa destruição da esplendorosa biblioteca de Alexandria inclui a hipótese de um incêndio devastador, mas também o desinvestimento, outro tipo de ataque político, que teria feito com que ela morresse à mingua.
A noção de barbárie é propícia, ao menos como alegoria comparativa, governados que estamos por falas inarticuladas e brutas, de homens incapazes de ligarem as suas próprias humanidades ao mundo e aos outros homens (MATTÈI, 2001), abominando o produto da arte e cultura. Homens que (literalmente) “queimam o filme” do país.
Quando o Talibã quebra Budas em Bamiyan, ou nos protestos na Grécia jovens gregos queimam bibliotecas, ou quando invadem os ares e derrubam as Torres Gêmeas, abalam-se estruturas sólidas, construções que são traços de cada povo em guerra contra o estrangeiro em si mesmo ou encarnado no Outro malsoante da política.
Mas, e no Brasil? Parece que assistimos a tudo numa montagem estranhamente particular, são brasileiros contra estruturas frágeis do seu próprio país, de certo não o mesmo para cada um. Incendiando películas da própria construção. Hannah Arent (2008 p.146) aponta que o homem “só se realiza na política na forma de direitos iguais que os absolutamente diferentes garantem uns aos outros”. Essa parece cena de filme distante.
No caso Cinemateca o roteiro estava traçado. Extinguiu-se o Ministério da Cultura, talvez apenas esse dado já fosse suficiente, mas o desenrolar do enredo revela algumas outras tomadas do desfecho final: corte de verbas, rompimento de contrato com a instituição que a tutelava, funcionários denunciando perigos de incêndio do acervo abandonado sem nenhum cuidado técnico. Ainda alertam que o risco de um novo incêndio é iminente. Aliás, esse foi o quinto. Trata-se da destruição anunciada de um abandono programado. Um elemento curioso é que a matéria prima da qual eram feitos filmes antigos é o nitrato de celulose, que pode causar combustão espontânea.
As manifestações do real no mundo contemporâneo são cada vez mais desordenadas. O simbólico já não opera mais facilmente fazendo laços. Encontrarmos, então, “todas as bricolagens com o real tentadas por cada um e concebidas pela sociedade, a fim de poder ajeitar as relações entre os homens” (BRIOLE, 2014).
Briole (2014) destaca que “o real está circundado pela realidade”, e elucida que os homens aprenderam a fazer as catástrofes com os imprevistos do real”, insistindo em “acreditar que pode dominar o real, pô-lo a seu alcance, a serviço de sua felicidade”, ou do seu mando. Entretanto, Lacan (1975-2007, p. 117) para definir o real, surpreende ao se perguntar “De onde vem o fogo? O fogo é o real. O real põe fogo em tudo. Mas é um fogo frio. O fogo que queima é uma máscara do real”. De um real sem lei.
Da Cinemateca Nacional, penso nos filmes ruins ou geniais que nos faziam rir, chorar, reclamar do áudio, elogiar avanços e desempenhos, amar ou detestar, morrendo antes do tempo de os letreiros subirem e o Fim se inscrever na tela. Lá estão eles, entre Deus e o Diabo na terra do sol, ardendo de descaso e ataque.
Amaral (2021), reafirma que “o maior acervo brasileiro de cinema, que contém a memória de mais de cem anos de imagens, hoje não possui ninguém para zelar por ele”.
Li mais de uma vez um texto de Rancierè que nunca me serviu para absolutamente nada, a não ser para voltar a ele, até que uma frase se impôs durante a escrita deste: “As imagens querem realmente viver?”. Ele nomeia as imagens de “quase-corpo” (RANCIERÈ, 2015, p. 201), e afirma: “as imagens, elas mesmas, não querem nada, senão que as deixem tranquilas” (RANCIERÈ, 2015, p.200). Se amamos vê-las, é pela capacidade que temos e lhes emprestar ou de lhes subtrair ao mesmo tempo vida e vontade.
REFERÊNCIAS:
ALPERS, S. O museu como uma forma de ver. In: Ética e estética. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2001.
AMARAL, C., Uchoa, A., et ali. Incêndio não foi acidente. Cinemateca entre o deserto e a miragem. In: Le Monde Brasil Diplomatique. Disponivel em:https://diplomatique.org.br/cinemateca-entre-o-deserto-e-a-miragem/ Acesso em: Set. 2021.
ARENT, H. A Promessa da Política. Rio de Janeiro: Diefel, 2008.
BURKE, J. Deuses de Freud – a coleção de arte do pai da psicanálise. Rio de Janeiro: Record, 2010.
BRIOLE, G. Um real para o século XXI. Disponível em: http://www.congresamp2014.com/pt/template.php?file=Textos/Un-reel-pour-le-XXIe-siecle_Guy-Briole.html Acesso em: Set. 2021
DIEGUES, C. Entrevista em áudio. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/07/31/tragedia-anunciada-os-5-incendios-que-ja-consumiram-a-cinemateca.ghtml. Acesso em: Set. 2021.
DIDI-HUBERMAN, G. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998.
LACAN, J. (1953). Função e Campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar editor, 1998.
LACAN, J. (1975). O Seminário O sintoma, livro 23. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2007.
MATTÈI, J-F. Civilização e Barbárie. In: Ética e estética. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2001
RANCIÈRE, J. As imagens querem realmente viver? In: Pensar a imagem. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.
TRUFFAUT, F. O prazer dos olhos, escritos sobre cinema. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2005.
[1] O clube reunia o crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes, o crítico literário Antônio Candido e crítico teatral Décio de Almeida Prado, pertencente ao Museu de Arte Moderna de São Paulo, desligando-se em 1956, quando passa a chamar-se Cinemateca Brasileira. Em 1984 passa a ser responsabilidade do Governo Federal.