Noite preparatória para o X ENAPOL – Amor e exílio

Seminario Latino de Paris, 26 maio 2021

Juliane Casarin

Para a discussão do tema da nossa noite, eu gostaria de propor uma articulação através de uma história de amor. Com o seminário Mais, Ainda (1972-1973)[1], Lacan nos precisa que o amor pode exercer função de suplência à não relação sexual. E esta proposta implica a presença do corpo real.

A ideia do corpo no ensino de Lacan pode ser abordada a partir da lógica do enlaçamento dos registros subjetivos, real, simbólico e imaginário. Temos, assim: o corpo simbólico e suas marcas significantes; o corpo imaginário e suas representações que dão a ilusão da unidade corporal[2] e o corpo real, sede das pulsões e do gozo. Com o enfraquecimento do Nome-do-Pai, que outrora organizava verticalmente a economia libidinal, Lacan nos apresentou diversas orientações diante da pluralização dos modos de gozo. Uma delas é uma bússola preciosa para o trabalho psicanalítico e me incentivou para esta intervenção. Trata-se de ter como horizonte alcançar a subjetividade da época[3].

Partamos da seguinte premissa:  ter um corpo é um efeito de linguagem. Diferentemente das ciências biológicas, para a psicanálise, ser homem, mulher, transexual, intersexo, queer, coloca em evidência a função do semblante. Isto é, trata-se de uma construção subjetiva, misto de imaginário e simbólico. No que concerne a sexuação dos seres falantes, o sexo biológico não determina a posição sexual.

O último ensino de Lacan nos fornece uma orientação que coloca em evidencia a função do gozo Uno, do corpo próprio. Do encontro traumático (troumatique) com a linguagem, cada um é confrontado ao real das marcas da alíngua sobre o corpo, que configura o exilio próprio de cada falasser[4].

O casal formado por Genesis Breyer P-Orridge e Lady Jaye nos ensina que, no inconsciente, não existe à priori para se posicionar enquanto homem ou mulher. Do encontro contingente, fulgurante, entre esses dois seres falantes, surgiu uma história de amor. Desse amor, nasceu um projeto, a Pandrogenia. Este projeto é uma construção sinthomática que uniu o casal em seu exílio singular.

Genesis, artista de origem inglesa, fez parte do movimento de criação da música industrial a partir da década de 1970. Membro do COUM Transmissions, dos grupos musicais Throbbing Gristle e Psychic TV, Genesis, incialmente uma personagem mulher transexual, é fruto de uma invenção de Neil Magson. Um processo de mudança de nome foi realizado quando Neil Magson tinha vinte e um anos.

Assim, Genesis se fez um nome próprio, lançou-se numa busca por sua identidade e gostaria de ter podido utilizar o termo não binário em seus documentos. Em seu percurso, Genesis não apresentou o desejo de realizar a cirurgia de redesignação sexual e teve duas filhas de um primeiro casamento com Paula P-Orridge.

Após algumas performances controversas terem provocado conflitos com o governo inglês, Genesis se exilia para os Estados Unidos e se instala em Nova York. Ela se sentia fora dos costumes e da moral inglesa desde sua infância.

Em terras americanas, durante ume festa libertina, Genesis e Jaye se encontram. Jaye tinha uma dupla jornada de trabalho: enfermeira de dia e dominatrix à noite. A fluidez das posições sexuadas, homem/mulher, esteve presente ao longo da história deste casal. Por exemplo, Genesis inventou uma forma de utilizar os pronomes pessoais em inglês, ela (she) e ele (he): S/HE.

O encontro delas é descrito por Genesis como um amor à primeira vista. O corpo de Jaye provocou em Genesis uma captação imaginária que ressoou em seus registros simbólico e real. Jaye incarnou um eu-duplo, suporte imaginário, sobre o qual Genesis pôde se apoiar para tentar fazer existir, para dar forma, contorno, ao seu corpo. Uma identificação imaginária que desencadeou uma busca pelo corpo dA mulher.

O projeto Pandrogenia encontrou inspiração na técnica literária do cut-up[5]. Ele foi definido por Genesis como a criação de um terceiro ser, um terceiro espírito[6], ou entidade, a partir de dois corpos e almas. De certa forma, como no mito doa androginia apresentado por Aristófanes no Banquete[7] de Platão. Contudo, a invenção do casal foi de realizar transformações no corpo, através das cirurgias estéticas. O objetivo delas era que Genesis e Jaye se tornassem idênticas fisicamente, numa tentativa de se fusionar. O corpo de Jaye foi o modelo para as mudanças físicas de Genesis.

Para Genesis e Jaye, o corpo físico não passava de um simples saco de transporte do espírito. Para as duas, não havia limites para a realização do experimento, pois, para elas, o amor era capaz de tudo. Dessa forma, com o projeto Pandrogenia, Genesis e Jaye, nos apresentaram uma tentativa de fazer existir, no real, com o corpo, a relação sexual.


[1] Jacques Lacan, (1972-1973), Le Séminaire, Livre XX, Encore, Seuil, Paris, 1975.

[2] Jacques-Alain Miller, “L’inconscient et le corps parlant”, Présentation du thème du Xème Congrès de l’AMP à Rio em 2016, Le corps parlant – Sur l’inconscient au XXIème siècle, Scilicet, Ecole de la Cause Freudienne,  Paris, p. 26.

[3] Jacques Lacan, (1953), “Função e campo da fala e da linguagem”, Escritos, Zahar, Rio de Janeiro, 1998, p. 321.

[4] Marie-Hélène Brousse, “L’exil et la guerre”, Exils, regards psychanalytiques, 2019, p. 93.

[5] Técnica literária criada por Brion Gysin e Williams Burroughs, que consiste a criar um terceiro a partir de dois pedaços.

[6] Inspirados nos trabalhos do artista e escritor americano William Burroughs (1914-1997).

[7] Platon, Le Banquet, traduction et présentation par Luc Brisson, Paris, Flammarion, 2016.