Considerações iniciais e norteadoras da proposta de trabalho
A violência intrafamiliar contra a mulher sempre foi muito presente, mas normatizada na prática pela ideologia sexista. Ainda que sua existência se constituísse como um saber compartilhado, na esfera pública tal saber era silenciado. Vizinhos e familiares o segredavam e/ou abafavam. Raramente a violência era levada ao conhecimento das instituições públicas e, quando isso era feito, era mal recebida. As mulheres atingidas, com frequência, calavam-se envergonhadas ou encontravam enormes dificuldades em reportar publicamente os abusos, desencorajadas pelo pouco caso e preconceitos dos quais seriam alvo.
A questão da violência, no Brasil, deu um salto pelo qual passou, por força da lei, da esfera privada à pública. Ao admitir o caráter epidêmico da violência contra mulheres, o Estado brasileiro respondeu em duas frentes: a jurídica com a criação da Lei Maria da Penha e a política com dispositivos de saúde e assistência. Com a promulgação da Lei, a denúncia ganhou um espaço mais legítimo. Ainda assim, a princípio, muitas das denúncias eram retiradas em seguida, o que exigiu modificações no texto da lei para impedir isso. Surge assim a necessidade de um trabalho prévio com aquelas que manifestam intenção de denunciar até que estejam mais seguras quanto a isto. Muitas iniciativas possibilitaram a criação de redes interdisciplinares de acolhimento e atendimento aos casos de violência contra as mulheres. Essas redes, no entanto, têm maior atuação nas cidades grandes das regiões sul e sudeste do país do que no interior dos estados e nas demais regiões. Conta-se, nos grandes centros, com Conselhos Estaduais e Municipais que contribuem para a formulação e acompanhamento das políticas públicas referentes aos direitos da mulher. A rede se compõe também de casas abrigo, centros de atendimento, delegacias especializadas, grupos de apoio, hospitais, ambulatórios, centros de referências, entre outras iniciativas.
Houve portanto uma modificação do discurso a respeito da violência intrafamiliar. Do discurso que velava a violência encontramos atualmente seu oposto: um discurso que encoraja a verificação, contabilização, denúncia e prevenção. As cifras que mostram uma escalada da violência e tanto nos assustam, podem ser, em parte, resultado dessa mudança discursiva que deve às políticas de gênero seu fundamento teórico.
Entre o imperativo anterior ‘não se deve falar’ e o atual ‘deve-se falar’, qual a posição do sujeito? Este é um aspecto, ao nosso ver, sobre o qual a psicanálise teria algo a contribuir. Em especial, diante do fato de que o tratamento público ofertado através de tantos dispositivos de criminalização e apoio não tem diminuído, nem evitado, a violência contra as mulheres.
A partir dessa questão, gostaríamos de pesquisar a distinção entre o que se pode dizer e o que não se pode dizer. Para a psicanálise, o simbólico não esgota o registro do real do gozo que, no âmbito pulsional do corpo, comparece de forma paradoxal. Uma das mais contundentes e revolucionárias revelações da psicanálise é a de que o sujeito nem sempre procura o seu bem. Falar da violência, para os envolvidos, esbarra, portanto, na fronteira entre o que se pode e o que não se pode dizer do mal-estar, não porque seja um segredo, mas porque a linguagem é precária para isso.
Tratar a questão como se bastasse falar, denunciar, julgar e punir, não contempla os aspectos do real do gozo das parcerias que escapam à operação da linguagem. A fascinação pelas cifras e pelas confissões, assim como a corrida das práticas imediatistas e assistencialistas, não levam em conta o impossível de conceber e falar do gozo.
Talvez isso se deva, em parte ao domínio, no tratamento da questão, da concepção sociológica de sujeito articulado apenas à subjetividade discursiva de sua época, conceituação que tem valor e razão de ser, mas que não contempla a singularidade do sujeito, perspectiva psicanalítica que alcança fatores e condições próprias a cada um que marcam o sujeito para além de qualquer possibilidade discursiva. As posições tradicionais de agressor e vítima, por exemplo, não bastam para localizar os sujeitos envolvidos; as identidades de gênero não classificam a contento os tipos de violência; os dispositivos propostos, devido à sua lógica de identificação, falham mais do que tratam a divisão radical daqueles implicados em parcerias violentas.
A partir das considerações da psicanálise, será desejável, então, encontrar formas de transmitir aos diversos atores, envolvidos nesses dispositivos e modalidades de tratamento, a importância do tempo do sujeito do inconsciente e das possibilidades que lhe favoreçam formulações próprias na construção de saídas para os impasses inerentes às parcerias sintomáticas. A partir da psicanálise, cabe perguntar o que a violência revela de um gozo sintomático dos parceiros e o que poderia haver do obscuro gozo feminino tanto nas situações de denúncia como nas em que esta falta, nas exposições ao risco, assim como na falta de limite das concessões que algumas mulheres podem fazer a um homem.
Eis o nosso desafio: ler e apontar junto aqueles que trabalham com essa questão que a violência atravessa o discurso que a discute, as formas como é pensada, os dispositivos que a tratam e, em seu âmago, depende do real em jogo nos laços sociais, nas parcerias. Quanto a isso, convém lembrar que, ao tratar da articulação entre política e inconsciente, Lacan os compara frisando que não propõe que a política seja o inconsciente, mas, ao contrário, que «o inconsciente é a política» (1966-1967).
Com a perspectiva de contribuir para o debate sobre as políticas públicas a partir da teoria e da clínica da psicanálise, pensamos trabalhar essas questões privilegiando os casos de violência e as mulheres nas parcerias envolvendo desde o abuso sexual, físico, moral, entre outros, até o feminicídio.
Observatório sobre a violência e as mulheres da EBP:
Heloisa Caldas – coordenação
Cristina Drummond
Ondina Machado
Patrícia Badari