Por Blanca Musachi e Niraldo de Oliveira Santos

A queda do falocentrismo diz menos sobre o falo do que sobre o lugar central. Lacan soube ler que o véu se deslocou e que um real se manifestou, não sem angústias, mostrando-nos que a crença quanto a um lugar central (do qual a noção de falocentrismo se vale) escamoteava um vazio, um furo, servindo-se do falo que, como sabemos, é um semblante. A pluralização do Nome-do-Pai é um operador que vem dar conta dos efeitos que a queda dessa crença tem produzido na civilização.

Não se trata de dizer que as categorias neurose/psicose/perversão tenham caído, mas, certamente, perderam o lugar de referência uma vez que tomamos o rumo do ‘além do Édipo’. O que interessa hoje é o que, com Ansermet[4], podemos chamar de uma clínica das invenções, das soluções para o real do sexo.

Assistimos a uma época do empuxo ao trans? Ou trans é um dos nomes que circulam no outro social para satisfazer uma demanda de identificação? Esse termo, trans-,pode servir a alguns sujeitos para nomear algo do seu gozo?

Empuxo à transexualidade ou função de nomeação?

Quais soluções um sujeito pode construir para circunscrever o gozo, já que a fantasia não é o único organizador? A política das identidades de gênero, as passagens ao ato, acting-out, modos de gozo sem véus, etc., podem ser tentativas de soluções e, sobretudo, testemunhos da supremacia atual do gozo. Assim, alguns casos de transexualidade podem ser tentativas de localizar o gozo no corpo, uma nomeação que visa a inscrevê-lo. Nesse contexto, podem apontar para uma direção diferente dos casos de empuxo-à-mulher, bastante presentes no campo das psicoses, onde a foraclusão do Nome –do-Pai e do falo têm como efeito fazer existir A Mulher, como encarnação de um gozo sem limites, não barrado pela castração. Aponta-se, com isso, para a importância de uma clínica diferencial da transexualidade. Distinguir, no âmbito da vida sexual, soluções sintomáticas que se apresentam como arranjos a partir da ruptura fálica, e aquelas que se revelam como “desordem na junção mais íntima do sentimento de vida do sujeito[5]”.

Uma silhueta de mulher [6]

Um corpo esguio num vestido longo expõe a silhueta de mulher. Um rosto delicado se mostra parcialmente através de uma máscara que só deixa ao olhar do outro o enigma do rosto de uma mulher. O silêncio se mistura com a sensação prazerosa que essa silhueta desperta, até o momento em que um homem se aproxima para lhe dar um beijo. Eis então a resposta negativa, numa voz grave, que deixa claro que ali não há uma mulher, afastando o pretendente. Havia perdido 40kg para poder ter cintura e se adequar ao traje de Pokémon, corpo de menina exibido via cosplay.

«Não sei qual é minha posição», diz L, um rapaz prisioneiro do corpo que não reconhece como seu. Ter pelos e pênis é algo que o perturba. Demanda cirurgia para ser uma mulher, ter curvas femininas. Não solicita uma vagina no lugar do pênis: almeja apenas não possuir o órgão masculino. É com essa questão que inicia sua análise, pois vivia atormentando sua mãe para que ela lhe desse uma solução.

Apresentou, antes da análise, episódios graves de violência dirigidas a um professor e ao pai. Em ambos os casos, o disparador foi uma negativa. No episódio com o pai, ele só parou quando acertou o rosto da mãe, quebrando o nariz dela quando tentava separá-lo do pai. A polícia foi chamada e terminou internado e medicado.

Após seu primeiro cosplay, volta a engordar e suas curvas desaparecem, seu corpo perde a voluptuosidade. O que aconteceu naquela cena? Faz crer que possuir um corpo feminino havia despertado não somente o olhar de um homem, mas o desejo dele. Quando é convocado ao encontro sexual, a montagem não se sustenta. Surge a angústia.

Deixa de atormentar a mãe quanto à demanda de cirurgia à medida que fala disso em análise. Insiste, ainda, na tentativa de viabilizar a cirurgia, mas passa a questionar de que maneira vai lidar com isso diante do pai, do avô e de Deus. A independência é colocada como algo a ser conquistada antes de qualquer decisão e isso o apazigua, pois remete o que quer para um tempo futuro.

Diante da insistência para ter um corpo de mulher, L constrói uma personagem feminina nos jogos digitais: “Aqui eu posso ser a mulher que eu quiser”. Sua personagem é poderosa, uma “Mestra” que faz dos homens seus escravos: “A escolha é deles, se querem ser masoquistas; não sou eu quem peço”. Ele tem jogado cada vez mais online, deixando o outro acreditar que por trás da personagem tem uma mulher.

Não suporta ficar num grupo, acha que sempre estão falando mal dele. Então, faz aulas de Kumon para aprender japonês, e diz que, por serem aulas individuais, ele consegue aprender melhor. Voltou a pegar transporte sozinho e relata estar mais suportável conviver com os homens.

A invenção de L: tentativa de se fazer um corpo?

L procura, de início, estabilizar sua imagem por meio do cosplay na tentativa de se fazer idêntico a um personagem. Não tendo conseguido unificar sua imagem corporal, situa-se como reflexo de uma imagem que vem de fora. A solução falha quando entra um outro (o homem que o aborda) e a imagem emprestada mostra-se insuficiente perante a inconsistência do simbólico.

Trata-se de uma impossibilidade de localizar o gozo por meio do falo, resultando num gozo disperso e sem limites. L parece ter encontrado uma via possível para o gozo no mundo virtual, onde cria para si a imagem de um corpo feminino que mantém a exterioridade. Tem-lhe sido possível também que, nesse universo, a aproximação do outro não lhe resulte invasiva.

Logo, o “osso” do caso é a questão de se fazer um corpo. O que acontece com o imaginário? Qual solução ensaia o sujeito com o recurso da personagem nos jogos digitais? Perguntamo-nos se ele consegue dar um valor de semblante a esse recurso, ainda que isso lhe pareça frágil. O importante é que está há mais de 5 anos em análise, e que cessou a demanda imperiosa de cirurgia com a qual chegara. Outra perspectiva importante é o interesse de L pela língua japonesa, pela sua singular escrita. Ainda precisaremos verificar se esse recurso servirá para inventar alguma solução, por precária que seja, para o real do sexo que o atormenta.

O sintoma trans na contemporaneidade

Preferimos falar de “sintoma-trans” e não de “empuxo ao trans”, no contexto da pluralização do Nome-do-Pai e da prevalência do gozo do UM, evidenciando-se na pretendida “autogestão” do sexo, uma tentativa de autonominação do Um-sozinho, onde o ser sexuado se autorizaria apenas de si-mesmo, prescindindo do Outro, sem dele se servir. Lembremos que Lacan, na lição de 09.04.1974 do Seminário Os não tolos erram, ensina que “o ser sexuado não se autoriza senão de si-mesmo…e de alguns outros”. Mas também temos que considerar a aspiração ao Um da identidade veiculada pelo discurso do Mestre atual, por meio das políticas de identidade bastante presentes em tentativas de organização do laço social contemporâneo, opera um verdadeiro empuxo ao Um da identidade, deixando com frequência a sexuação em suspenso, quando se trata das identidades de gênero.

Torna-se portanto decisivo verificar, nos “casos trans”, como cada um se localiza em relação ao gozo opaco, tendo em vista uma “clínica diferencial do trans” mais além da política das identidades, na política do sintoma.


NOTAS

  1. Trabalho desenvolvido como produto de elaboração coletiva dos integrantes do Observatório de Gênero, Biopolítica e Transexualidade da FAPOL e apresentado durante o XXII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano – A queda do falocentrismo, em nov/2018.
  2. Membro da EBP/AMP. Coordenadora do Observatório.
  3. Membro da EBP/AMP; integrante do Observatório.
  4. Ansermet, F. “Eleger o próprio sexo: usos contemporâneos da diferença sexual”. Opção Lacaniana online. Ano IX, julho de 2018. Número 25/26. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/texto7.html
  5. LACAN, J. (1957-1958). “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. p. 565.
  6. Caso atendido por Maria de Fátima S. Luzia, participante do Observatório.