PELA DIGNIDADE DE UMA DIFERENÇA:

CONDIÇÕES DE EXISTÊNCIA DAS PESSOAS LGBTQIA+ NO BRASIL

Relatora: Eliane Costa Dias

 

O Observatório de GBT começou a funcionar na EBP no início de 2017. O trabalho de investigação desenvolvido nos três primeiros anos, nos três eixos – epistêmico, clínico e político –, bem como a interlocução com representantes de outros campos de saber discutindo as questões de gênero, nos permitiu definir 05 linhas centrais de investigação. Assim, desde janeiro/2021 contamos com cinco GRUPOS DE PESQUISA em funcionamento:

  1. Diversidade de gênero e Saúde (coord.: Alexandre Costa Val e Anna Rogéria)
  2. Diversidade de Gênero e Educação (coord.: Oscar Reymundo e Leny Mrech)
  3. Infância, Adolescência e Famílias (coord.: Cristiane Grillo e Juliana Motta)
  4. Psicanálise, feminismos e estudos de gênero (coord.: Gabriela Malvezzi)
  5. Bibliografia e referências (coord.: Perpétua Medrado)

Na questão “Leis e Justiça”, procuramos manter um diálogo frequente com profissionais desta área que nos podem ensinar e atualizar.

Creio que «paradoxal» é um significante para tentar descrever a realidade brasileira em relação ao tema do nosso Observatório.

Nos últimos anos, assistimos a uma intensa polarização de forças políticas no Brasil, marcada por um recrudescimento de discursos ultraconservadores e religiosos. Com a ascensão do «bolssonarismo», enfrentamos agora um discurso político, e de certos campos do conhecimento e setores da sociedade civil, que ataca diretamente as teorias de gênero e as políticas públicas que garantem os direitos da população LGBT+. O resultado imediato deste discurso de rechaço à diferença e o aumento da homo/transfobia, da violência contra esta população e do feminicídio. Durante o IX ENAPOL, nosso Observatório apresentou um documento destacando, entre outros pontos, que o Brasil é a nação com a maior taxa de homicídios de travestis e transexuais, ao mesmo tempo em que é o país que mais consome pornografia com pessoas trans.

Podemos vislumbrar a complexidade desse jogo de forças políticas e sociais focalizando o campo das Leis e do Direito.

 

Legislação e Justiça: direitos e cidadania da população LGBT+ no Brasil

O Brasil ainda não conta com legislação específica em favor da diversidade de gênero: não temos uma Lei de identidade de gênero, nem tampouco de Casamento Igualitário.

Um projeto de lei visando a regulamentação do casamento igualitário foi apresentado em 1995, mas não obteve aprovação na Câmara dos Deputados. Em 2001 foi introduzido um projeto substituto com o mesmo conteúdo, que só foi aprovado no Senado em 2017, reconhecendo o casamento entre pessoas do mesmo sexo como uma entidade familiar, por analogia com uma união estável. O texto ainda depende de aprovação definitiva e continua a encontrar resistência por parte dos partidos conservadores.[1]

“O Direito visa subsidiar os anseios da sociedade em cada momento histórico”.[2] Na medida em que a contemporaneidade vem sendo marcada pela pluralização das identidades de gênero, das parcerias amorosas e das organizações familiares, embora muito atrasado em termos de legislações, o Direito vem tentando legitimar e assegurar os efeitos jurídicos decorrentes dessas novas formas de pactos e laços sociais.[3]

Nesse sentido, uma série de Decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), desdobradas e complementadas por decretos, resoluções e portarias das diversas instâncias do Judiciário, representam importantes avanços em termos de conquistas de Direitos, ainda que não tenham a mesma estabilidade das Leis:

  • Maio/2011- reconhece o casamento entre pessoas do mesmo sexo no Brasil[4]. Essa decisão do STF reconheceu às uniões estáveis homoafetivas todos os direitos conferidos às uniões estáveis entre um homem e uma mulher e abriu uma base jurídica para futura legislação sobre os direitos matrimoniais das uniões do mesmo sexo.

Fica claro que no Brasil, a legislação sobre o casamento traz embutida a noção de família e a presença social de uma criança é um elemento fundamental para a discussão. Enquanto a lei não é aprovada, as decisões ficam no âmbito do entendimento (muitas vezes subjetivo) do judiciário. E nesse campo da jurisprudência, ganha força uma nova “ficção jurídica” – a parentalidade -, termo que pretende reunir sob o mesmo significante as funções materna e paterna, pois para o direito qualquer um que esteja nessa função é capaz de oferecer e executar os cuidados aos quais a criança tem direito. Implica, portanto, na disjunção entre a identidade sexual e ditas funções, e vem sendo assentada, cada vez mais, sobre a noção de vínculo afetivo.

  • 2015 – regulamenta a adoção de crianças e adolescentes por casais LGBTQIA+.
  • 2018 – regulamenta o direito de uso do nome social, permitindo alterar nome e gênero nos documentos oficiais, independentemente de laudos médicos ou de realização de cirurgia de redesignação de sexo.
  • 2019 – enquadra os atos de homo/transfobia como crime de racismo, com pena de até 5 anos.
  • 2020 – reconhece como inconstitucionalidade as leis que proíbem debate sobre sexualidade e diversidade de gênero nas escolas.
  • 2021 – permite que pessoas trans sejam transferidas para presídios em consonância com sua identidade de gênero autodeclarada.

Como afirmou J. Butler em sua última vinda ao Brasil, as leis não são suficientes para assegurar justiça e cidadania. São necessárias uma mobilização e uma transformação estrutural nas relações sociais que, no Brasil, estão longe de acontecer.

 

Os efeitos do rechaço à diferença

O Brasil segue mantendo o 1° lugar no ranking mundial dos assassinatos de pessoas trans. Dados da ANTRA[5] registram em 2020, 175 casos no Brasil contra 44 nos EUA.

É importante destacar alguns aspectos dessa realidade de violência:

  • Esses números são absolutamente subestimados, na medida em que prevalece a subnotificação e a ausência de dados governamentais. Nas políticas e estatísticas oficiais esses corpos não contam e não têm visibilidade.
  • A maior parte desses crimes (assassinatos, tentativas de assassinatos, agressões físicas) envolvem requintes de crueldade e são cometidos, muitas vezes, publicamente.
  • A grande maioria das vítimas são travestis e mulheres trans. E jovens: 56% das vítimas está entre os 15 e os 29 anos de idade.
  • Tais dados não incluem outras formas de violência como exclusões do meio familiar, falta de acessibilidade a serviços públicos e assédio moral nos mais diversos contextos públicos.

Sintetizando, a maior parte da população LGBT+ no Brasil vive em condições de pobreza e exclusão social, com dificuldade de acesso à educação, saúde, qualificação profissional, oportunidades de inclusão no mercado de trabalho formal e políticas públicas que considerem suas demandas específicas.[6]

Uma realidade de desigualdade e segregação que se intensificou com a pandemia de Covid-19.

Pesquisas de ONGs vêm tentando mapear o impacto da pandemia e do isolamento social para essa população. As pessoas LGBT+ entrevistadas apontam como principais consequências:

  • O afastamento dos grupos e redes de apoio.
  • As dificuldades no convívio familiar, com o incremento da violência doméstica e do número de agressões e homicídios contra as pessoas trans.
  • A drástica perda de trabalho e de fonte de renda. O que obrigou grande parte da população trans a se manter nas ruas, trabalhando com o sexo profissional, numa exposição de seus corpos e suas vidas.
  • A grande maioria dos entrevistados, no entanto, apontam como maior consequência da pandemia a piora na saúde mental: solidão, crises de ansiedade, depressão, escarificações e um significativo aumento no número de suicídios. Em 2020, comparado a 2019, verifica-se um aumento de 34% nos casos de suicídio entre indivíduos transgêneros.[7]

A segregação vivenciada pelas sexualidades não hegemônicas é histórica no Brasil e na América Latina e muito anterior à pandemia e ao “ano trans” no Campo Freudiano. Mas sem dúvida, o “paradigma trans”[8], como marca da subjetividade de nossa época, coloca à psicanálise o desafio de saber posicionar-se. O “trans”, presente no caso a caso da clínica e nos fenômenos e discursos que proliferam no laço social, nos convoca, como psicanalistas, a interrogarmos nossos conceitos e pré-conceitos, nossa prática, nossa ética e nossa política.

Neste Observatório apostamos em uma política da psicanálise que, sem abrir mão de sua extimidade, pode colocá-la na cidade, nos riscos e na invenção da interlocução com diferentes saberes e diferentes instituições sociais. Uma presença do discurso do analista que possa sustentar uma política do sintoma, como uma política que faça valer a singularidade do falasser e a dignidade de uma diferença.

 

Breve retrato dessa aposta de trabalho a partir dos Grupos de Pesquisa

3.1 No campo da educação:

Estima-se que cerca de 70% das pessoas LGBT+ no Brasil não concluiu o ensino médio e apenas 2% encontram-se no ensino superior.[9]

O GP sobre Educação destaca o Projeto de Inserção na comunidade escolar dos Alunos Trans – crianças, jovens e adultos – que vem sendo realizado através de uma parceria entre com a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, a Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e o GP-Educação do Observatório. O contato com a Secretaria tem sido viabilizado através do Núcleo de Gênero e Diversidade coordenado pela professora Ana Luísa de Castro, que é uma mulher trans.  

Inicialmente, foi estabelecido um questionário para o levantamento de dados com o objetivo de encontrar a população trans nas várias Diretorias de Ensino da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo. Logo após, as coordenadoras do projeto começaram a fazer visitas à rede da Secretaria Municipal de Educação, visando aprofundar os dados anteriormente coletados.

A experiência da equipe, em intervenções desenvolvidas a partir de situações concretas envolvendo adolescentes trans em duas escolas selecionadas para a pesquisa, sugere duas vertentes que podem ser encontradas futuramente no projeto: uma de abertura a um tratamento dos conflitos pela palavra, possibilitando a instauração de uma transferência positiva e a outra, de recusa à um saber “estranho” e externo à própria escola, se iniciando pela via da transferência negativa. Trata-se de uma pequena hipótese de trabalho a ser investigada.

3.2 No campo da Saúde:

O GP-Saúde destaca que o acesso aos serviços públicos de saúde por pessoas que não se enquadram nas normas de gênero permanece bastante precário.

No Brasil, o SUS incluiu, em 2008, o “processo transexualizador” em sua lista de procedimentos, estabelecendo um protocolo rígido que, seguindo as normas do Conselho Federal de Medicina (CFM), continua orientado por uma concepção patologizante da transexualidade, cujos tratamentos devem abarcar psicoterapia e intervenções no corpo para “adequá-lo” à identidade de gênero com a qual a pessoa se identifica. A sequência de procedimentos pré-estabelecidos engloba acompanhamento psicológico compulsório, comprovações de que o sujeito convive bem socialmente com o gênero com o qual se identifica, laudos médico-psiquiátricos, terapias hormonais, procedimentos cirúrgicos e trâmites burocráticos para mudança do prenome e do sexo nos documentos. Em 2013, uma nova portaria passou a regular esse processo, que, apesar de ter sido redefinido e ampliado (incluindo travestis e homens trans), se manteve sustentado pelo marco patológico.

Atualmente, existem apenas cinco hospitais universitários[10] autorizados pelo Ministério da Saúde (MS) para realização da cirurgia de transgenitalização, com uma média de espera em torno de 10 anos. Já os serviços ambulatoriais especializados – locais onde essas pessoas podem ter acesso, por exemplo, ao tratamento hormonal e à acompanhamento psicoterápico – parecem ter se espalhado pelo Brasil nos últimos anos. No entanto, cerca de 70% desses ambulatórios não são cadastrados no MS e não recebem qualquer tipo de recurso do governo federal.

O desconhecimento, os preconceitos, a interpretação patológica de suas experiências e o reiterado desrespeito ao nome social por parte dos profissionais são alguns dos motivos para o afastamento da população LGBT+ desses serviços, prejudicando a integralidade do cuidado.[11]

Como afirma nosso colega Alexandre Costa Val, é fundamental, que as políticas públicas de saúde sejam pensadas para além das capacitações técnicas ou das reformas legais de forma a contemplar estratégias que permitam que as diferenças componham, efetivamente, o coletivo. Um coletivo “não-todo”, paradoxal, constituído no um a um, e não a partir de particularidades que só fazem reiterar hierarquias e processos segregativos. Apostamos que essa seja uma via potente para a presença do discurso da psicanálise.

3.3 Adolescência e transexualidade:

Destacamos o que nos ensina o Projeto Janela da Escuta, programa de extensão da Universidade Federal de Minas Gerais, que tem acolhido vários casos de adolescentes que se nomeiam ou são nomeados trans ou travestis, desde 2016.

O trabalho clínico de orientação psicanalítica, interdisciplinar, visa escavar um lugar para a singularidade, não sem a dimensão política e coletiva.

A maioria dos adolescentes trans ou travestis são encaminhados ao Janela da Escuta pelo sistema socioeducativo (ou seja, com alguma restrição de liberdade por questões com a Justiça). Observam-se trajetórias marcadas pelas rupturas familiares, sociais, sem uma incidência efetiva das políticas públicas.

Se antes observávamos o apagamento dessas nomeações e desses corpos, hoje vemos uma antecipação da nomeação pelo Outro social, antes mesmo que o adolescente a sustente. A precipitação da nomeação trans coloca em marcha um protocolo: encaminhamento às políticas públicas voltadas para o público LGBT+, para o ambulatório trans etc.

Onde há uma certeza do sistema, a equipe do Janela busca a abertura de perguntas

Atualmente, numa unidade que abriga adolescentes mulheres cis e trans, homens trans e travestis, há uma profusão de cortes no corpo. Os adolescentes tiram o reboco da parede, compartilham os pedaços e se cortam. No espaço de fala, eles afirmam que se cortam porque estão presos.

Finalizando, retomo uma passagem da intervenção de É. Laurent durante o último ENAPOL.[12] Em resposta à Lisbeth Ahumada, Laurent afirma que, no debate sobre as questões de gênero, a América Latina tem um papel muito importante, pela diversidade e especificidades de suas múltiplas realidades.

Então, como transmitir à nossa própria Escola de psicanálise e ao Outro social o que recolhemos em nossa clínica e no trabalho de investigação dos Observatórios? Como transmitir o que estes corpos que lutam e sobrevivem nos ensinam sobre subversão, resistência, bricolagens e invenções?

 


 

[1] CCJ aprova projeto que reconhece união estável de pessoas do mesmo sexo… – Acesso em 11 de maio de 2017. https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2017/05/03/senado-ccj-aprova-projeto-que-reconhece-uniao-estavel-de-pessoas-do-mesmo-sexo.htm

[2] Louzada, Ana Maria G. Evolução do conceito de direito. Disponível: https://projetomedicina.com.br/blog-redacao/temas/o-que-e-uma-familia/

[3] Dra. Carmin Musachi. Entrevista ao X ENAPOL.

[4] CCJ do Senado aprova união estável entre pessoas do mesmo sexo. Acesso em 08/03/2017. https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2017/03/08/ccj-do-senado-aprova-uniao-estavel-entre-pessoas-do-mesmo-sexo.htm

[5] Associação Nacional de Travestis e Transexuais.

[6] BENEVIDES; NOGUEIRA, 2019 citado in: Dossiê dos assassinatos e da violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2020. Bruna G. Benevides e Sayonara N. B. Nogueira (Org.). São Paulo: Expressão Popular, ANTRA, IBTE, 2021.  Disponível: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2021/01/dossie-trans-2021-29jan2021.pdf

[7] ANTRA – Boletim Trans, 002-2021. https://antrabrasil.files.wordpress.com/2021/07/boletim-trans-002-2021-1sem2021-1.pdf

[8] Laurent, É. Du paradigme trans. In: Lacan Quotidien, #928, 25/04/2021.

[9] ANTRA – Ibid.

[10] A saber: Hospital de Clínicas de Porto Alegre, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre (RS); Hospital Universitário Pedro Ernesto, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (RJ); Hospital de Clinicas da Universidade Federal de Goiás (GO); Fundação Faculdade de Medicina, da Universidade de São Paulo (USP) em SP, e Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), em Recife (PE)).

[11] Bezerra, M. et al. Política de saúde LGBT e sua invisibilidade nas publicações em saúde coletiva. Saúde em debate 43, Ago 2020-Dez 2019. Disponível: https://scielosp.org/article/sdeb/2019.v43nspe8/305-323/pt/

[12] Laurent, É. Apreciaciones sobre los movimientos feministas y la cuestión trans en las Universidades. Intervención durante el X ENAPOL en 10/10/2021.